Edição 301 | 20 Julho 2009

Horizontes da crise: nova globalização e trabalho sem emprego

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Giuseppe Cocco

Na visão de Giuseppe Cocco a crise financeira acaba tendo consequências violentíssimas sobre os resíduos de “industrialismo” e “imperialismo”

“Longe de implicar a volta do setor industrial (esfera real), a crise determina um ulterior aprofundamento das dimensões cognitivas e imateriais da acumulação e a afirmação de uma governança imperial: não mais centrada no “imperialismo” norte-americano, mas em formas de soberania supranacionais. Isso implica, por um lado, que a sustentação do crescimento chinês deverá encontrar elementos de equilíbrio internos (no crescimento do mercado doméstico) e determinará – com a multiplicação das lutas e das revoltas às quais já estamos assistindo - a necessidade de passar a tolerar as pressões salariais; pelo outro, o enfraquecimento possível da pressão negativa sobre os salários mundiais (gerada pela hiperexploração dos gigantescos contingentes de forças de trabalho chinesas) pode traduzir-se no aprofundamento e generalização dos elementos cognitivos e imateriais da produção e do consumo, quer dizer do trabalho”. A opinião é do professor da UFRJ, Giuseppe Cocco, no artigo inédito, feito especialmente a pedido da IHU On-Line, e que publicamos a seguir. Para ele, “uma das possibilidades de realizar um efetivo deslocamento pós-capitalista está na capacidade que os movimentos sociais terão de articular à resistência anticapitalista com propostas de ruptura da convenção que liga entre eles trabalho e emprego”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciências Políticas pela Università degli Studi di Padova e pela Université de Paris VIII. Cursou mestrado e doutorado em História Social na Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes e das revistas Lugar comum e Global Brasil. Também é autor de diversos livros, entre os quais citamos Trabalho e cidadania: Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), este último em parceria com Antonio Negri.

Confira o artigo.

Para além da “Chimérica”: um multipolarismo qualificado pelas relações Sul-Sul
Para discutir a crise do capitalismo financeiro global, precisamos colocar uma questão: a quem está se fazendo pagar os “custos” da crise, quem já está pagando pela crise? A questão dos “custos” tão cara à retórica econômica neoliberal pode ser, dessa maneira, articulada de outra maneira e reformulada pelo menos parcialmente.

O presidente Lula já afirmou de maneira nítida: “a crise é o fato dos banqueiros louros de olhos azuis”: a crise é da responsabilidade do Norte e de seus bancos e banqueiros, bem como de uma governança global dominada pelo critério do poder dos mais ricos (o G8), moldada nas relações de dominação imperialista (centro – periferia), oriundas da Segunda Guerra Mundial.

O que significa dizer, em uma linguagem bem simples, que não são nem os países do Sul, nem os migrantes internacionais que devem pagar pela crise. Em relação à governança global, a crise traduziu-se em algumas aberturas interessantes. É cedo para tirar conclusões, mas não é difícil ver alguns deslocamentos e horizontes abertos: o G8 foi declarado moribundo, dessa vez não apenas pelas manifestações de rua, como em Seattle e Genova, mas também pelo ministro Celso Amorim durante a última cúpula (em Áquila, Itália); o G20 e o grupo de países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) já indicam um caminho alternativo de governança multipolar qualificada por fortes relações horizontais, Sul-Sul.

De maneira mais estrutural, as relações Sul-Sul têm pela frente a possibilidade (e também o desafio) de afirmar caminhos de crescimento alternativos àquele que hegemonizava a globalização neoliberal e financeira.

Por um lado, há o espaço para romper com a divisão internacional do trabalho que, sob o domínio da relação entre China e América (Chimérica), estava por trás de um modelo de crescimento global que articulava o superconsumo a crédito dos Estados Unidos, a super-produção com deflação salarial chinesa e os superávits comerciais em commodities agrícolas e de minério da América Latina (principalmente do Brasil).

Por outro lado, há espaço para que essa redefinição da hierarquia econômica global se traduza não apenas – como dissemos - na reformulação do marco político da governança (o G20, o BRIC, uma redefinição dos equilíbrios de poder no FMI e no Conselho de Segurança da ONU), mas também numa revolução das convenções sociais que sustentaram esse modelo de acumulação: estamos falando das convenções do consumo (norte-americano) e de emprego industrial (chinês) que se traduziram em processos gerais – imediatamente globais - de inflação de crédito (para sustentar o consumo) e deflação salarial (para controlar a produção).

Podemos avançar na hipótese de que, curiosamente, a crise “financeira” – contrariamente às análises que vêem na crise a oportunidade de uma redução das finanças como esfera fictícia separada daquela real (da produção) – acaba tendo consequências violentíssimas sobre os resíduos de “industrialismo” e “imperialismo” (a China como planta industrial do mundo, o poderio militar dos Estados Unidos como base do dólar, como moeda de referência global) que sobravam no capitalismo global e cognitivo.

Longe de implicar a volta do setor industrial (esfera real), a crise determina um ulterior aprofundamento das dimensões cognitivas e imateriais da acumulação e a afirmação de uma governança imperial: não mais centrada no “imperialismo” norte-americano, mas em formas de soberania supranacionais. Isso implica, por um lado, que a sustentação do crescimento chinês deverá encontrar elementos de equilíbrio internos (no crescimento do mercado doméstico) e determinará – com a multiplicação das lutas e das revoltas às quais já estamos assistindo - a necessidade de passar a tolerar as pressões salariais; pelo outro, o enfraquecimento possível da pressão negativa sobre os salários mundiais (gerada pela hiperexploração dos gigantescos contingentes de forças de trabalho chinesas) pode traduzir-se no aprofundamento e generalização dos elementos cognitivos e imateriais da produção e do consumo, quer dizer do trabalho.

Crise do valor

Com efeito, o horizonte está aberto e indeterminado. Uma das possibilidades de realizar um efetivo deslocamento pós-capitalista está na capacidade com que os movimentos sociais terão de articular a resistência anticapitalista com propostas de ruptura da convenção que liga entre eles trabalho e emprego.

No regime de acumulação da grande indústria e do maquinismo, trabalho e capital estavam numa relação de interdependência dialética: era o paradoxo do socialismo na Rússia pós-revolucionária onde Lênin queria compatibilizar os “sovietes” com a eletricidade e o taylorismo, quer dizer, com a disciplina da grande fábrica. Aqui, a convenção que liga o trabalho ao emprego (industrial) diz respeito a uma relação social de produção que – com base no direito absoluto da propriedade estatal (ou privada) e do controle separado (pelos trabalhadores intelectuais) da ciência aplicada à técnica – faz com que o trabalho vivo (o capital variável), para se tornar produtivo, tenha que subordinar-se ao capital fixo (maquinaria, tecnologia: trabalho morto e ciência). Esse é também o paradoxo das sociedades “afluentes”, como dizia J.K. Galbraith, quando apontava o absurdo das sociedades “afluentes”, ou seja, o fato de que nelas é preciso produzir bens inúteis para poder distribuir renda, pois é o emprego que funciona como aparelho de distribuição da renda: “Ao passo que nossa energia produtiva (...) serve à criação de bens de pouca utilidade – produtos dos quais é preciso suscitar artificialmente a necessidade por meio de grandes investimentos, sem os quais eles não seriam mesmo demandados – o processo de produção conserva quase integralmente seu caráter de urgência, como fonte de renda”. Onde é o homem unidimensional que domina, o trabalho vivo deve submeter-se ao capital fixo para ter acesso à renda e, pois, integrar-se socialmente pelo consumo (massificado e sem qualidade).

É o paradoxo que encontramos naquela fábrica na qual os operários lutam contra a exploração (por mais salários) e na qual, quando a fábrica está sob risco de fechar, os operários lutam para que não feche, ou seja, para que continuem a ser explorados. Assim, para salvar o “emprego” da indústria automobilística, o governo cria subsídios (por exemplo, reduzindo o IPI) para que se mantenha ou aumente a produção de carros que – além de participar do efeito estufa – ficarão engarrafados nas cidades congestionadas, a começar por São Paulo. Os paradoxos são na realidade o fato da inevitável contradição entre “valor econômico” e “significação social” da mobilização produtiva. O mecanismo fundamental deste quebra-cabeça é a convenção – capitalista – que nos impõe reduzir trabalho (produção social de significação) como atividade assalariada e dependente, redução da significação social a dois elementos dialéticos: o salário (custo a ser reduzido) e o lucro (objetivo instrumental a ser maximizado). No segundo pós-guerra, durante a hegemonia do fordismo, essas duas dimensões encontravam sua “síntese” na dinâmica do consumo: estatal e militar no caso dos países socialistas, militar e de consumo no caso do bloco ocidental. Mais estruturalmente, o trabalho vivo (capital variável) não sabia como tornar-se produtivo sem juntar-se ao capital fixo e, ao mesmo tempo, a dinâmica de seu salário real (resultado mesmo dessa subordinação) funcionava como elo articulador (e legitimador) entre a produção em massa e o consumo em massa.

No capitalismo cognitivo globalizado, o trabalho – como veremos – foi “saindo” do chão de fábrica, descolando-se do emprego e, com isso, perdendo sua capacidade de funcionar como padrão de mensuração (tempo de trabalho, custo do trabalho) das atividades produtivas e de consumo. Essa perda se traduziu – como sabemos – em perdas salariais e de direitos dos trabalhadores (enfraquecimento das organizações sindicais, diminuição da parte dos salários sobre a renda total, aumento do desemprego e da precariedade). Mas saindo da fábrica, o trabalho perdeu – potencialmente - aquela subordinação dialética que o identificava ao “emprego” (assalariado) e o mantinha numa relação inquebrantável de interdependência com o capital.

Retomamos um pouco nosso raciocínio. Saindo do chão de fábrica, o trabalho se difunde nos diferentes estatutos do emprego (informal, precário, temporário) e na vida (quando temos um emprego é nossa alma que é mobilizada e quando não temos um emprego, trabalhamos por conta própria, como prestador de serviço e/ou como consumidor). A produção passa a se organizar dentro das próprias redes de circulação. Por isso, a privatização dos serviços que dizem respeito ao funcionamento das redes é tão importante para o capital (e o neoliberalismo foi a retórica dessa investida capitalista de nossas vidas). O que caracteriza o capitalismo cognitivo, financeiro e globalizado é a desconstrução da relação salarial como operador do processo de produção e, ao mesmo tempo, sua manutenção como convenção extenuada de reconhecimento – necessariamente insuficiente – do trabalho. Por um lado, o trabalho explode em um sem número de estilhaços; pelo outro, só os estilhaços, que mantêm uma forma e um estatuto com a antiga relação de emprego, dão direito à renda e proteção social. A crise, como bem sabemos, tem em seu bojo esta contradição: o trabalho é cada vez mais difuso e o salário cada vez mais estilhaçado no espaço e no tempo: só a relação de débito - crédito permitiu deslocar esse impasse para frente e manter os níveis de consumo necessários à realização dos lucros e a manter a pressão das lutas sociais, até a bolha do subprime estourar. A crise do padrão de valor baseado no trabalho assalariado (no tempo de trabalho) acaba aparecendo pelo que é: um subvalor, uma desclassificação do valor.

Com efeito, a crise permite (ou até obriga) uma ressignificação da relação entre consumo e produção que passa necessariamente pelo enfrentamento do enigma do valor, ou seja, pela redefinição da convenção que junta dialeticamente trabalho e emprego, trabalho e capital. É nesse sentido que a crise é crise da ilusão financeira. Só que a ilusão não está do lado financeiro, mas daquele de uma produção real que não tem mais um padrão objetivo de valor e de exploração (o tempo de trabalho) de referência e o procura nas finanças. As finanças ofereciam uma dupla – ilusória – solução: a manutenção dos níveis de consumo por meio da expansão do crédito e a afirmação de um padrão de valorização atrelado ao processo de titrização (o fato de fatiar os ativos de crédito e espalmá-los no sistema bancário mundial, multiplicando as transações a partir de uma mesma e única operação de crédito-débito), que sustentava essa expansão do crédito.

Por trás da “ilusão” financeira há algo ainda pior e mais ilusório: a mistificação da acumulação capitalista organizada diretamente sobre a cooperação social e suas dinâmicas cognitivas, quer dizer, sobre um trabalho que corresponde às formas de vida que produzem formas de vida, diretamente dentro de uma cooperação social que não cabe mais na relação salarial. A crise obriga a pensar outra convenção. Dito de outra maneira, os conflitos que atravessam a crise dizem respeito à constituição de outras convenções, de outra sociedade e de outra economia.

O Comum como novo padrão de valor

Do lado do poder e do capital, isso parece organizar-se em torno do discurso do “crescimento ecologicamente sustentável”, bem nos termos do debate que aconteceu diante da falência das montadoras norte-americanas: aquelas que sobreviverão (graças à intervenção estatal) deverão tornar-se mais enxutas (com menos empregados!) e produzir carros sustentáveis, mais compatíveis com o combate ao aquecimento global. Essa parece ser a orientação do Presidente Obama, inclusive nos fóruns internacionais, em que sua administração está revertendo por inteiro a posição dos Estados Unidos na luta contra o efeito estufa. Do ponto de vista capitalista, trata-se, ao mesmo tempo, da definição de um novo motor de crescimento e, sobretudo, da tentativa de restabelecer um critério de valor ao qual ancorar uma nova dinâmica da acumulação.

Esses deslocamentos estão longe de ser definidos, estáveis e fechados, e nada diz que essa ressignificação possa acontecer sem uma redefinição radical dos próprios alicerces do capitalismo, quer dizer, do regime jurídico da propriedade privada. Por definição, a procura de uma economia sustentável não garante em si nenhum padrão objetivo-natural. Pelo contrário, passa-se a reconhecer as dimensões qualitativas e sociais da atividade econômica e, portanto, a desnaturalizar seus recursos (a água, o fogo, a terra, o ar). Esses passam a ser atravessados por critérios de valoração social que não cabem mais na simples contabilidade dos “custos”. De repente, a privatização do domínio público como direito irrestrito de usufruto de um bem precisa ser profundamente revisada, e acontece para os bens materiais exatamente o que já está acontecendo para os bens imateriais: a propriedade privada tem dificuldade de sustentar economicamente as posições adquiridas (por causa, por exemplo, da pirataria) e torna-se (na forma do copyright e das patentes) um obstáculo às políticas públicas (como no caso da quebra das patentes dos remédios para a luta contra AIDS) e até à própria dinâmica da cooperação criativa (que encontra novas formas de propriedade comum: o copyleft e o software livre).

Os paradoxos da empregabilidade

Voltemos à questão inicial: quem está pagando a crise?

Já vimos que, por enquanto, quem paga são os “trabalhadores” em geral. As empresas – em âmbito mundial – estão aproveitando a crise para aprofundar e acelerar o processo, há muito tempo em andamento – de “enxugar” a produção, reduzindo ao mínimo a relação de emprego, encolhendo ainda mais uma relação salarial que já foi estilhaçada por quase três décadas de neoliberalismo. Tudo isso parece ter um agravante: o enxugamento está hoje acontecendo sem nenhum nível de reestruturação inovadora, segundo uma lógica de acumulação absoluta de mais-valia. Por um lado, como vimos, um dos primeiros efeitos da crise é um ulterior aprofundamento da precarização do estatuto do trabalho; por outro, é claro que esse caminho não é viável, pois ele alimenta o próprio mecanismo da crise.

No entanto, o trabalho continua a descolar-se do emprego, e o emprego continua a tornar-se, como dissemos “empregabilidade”. O que é a empregabilidade? Uma transação entre o capital, que compra a força de trabalho, e o trabalhador, que a oferece, nunca garante ao “vendedor” um retorno e uma proteção estável. O “vendedor” deve sempre estar em condições de ser “vendível”: empregável. A transação está sendo, na tendência, continuamente negociada e reaberta: a transação implica um custo que depende das condições de informação da procura (de mão de obra) e da oferta (de mão de obra). O efeito retórico mais visível (e mais visado) dessa noção é aquele que privilegia o discurso sobre a informação, quer dizer a afirmação de que os “desempregados” são na realidade “não empregáveis”, porque não sabem nem onde, nem quem está procurando por eles ou não sabem o que deveriam saber para serem procurados. O desemprego é, assim, atribuído aos próprios desempregados e, en passant, ao mau funcionamento do mercado: as políticas públicas deveriam ir no sentido de informar (fazer circular as informações com as agências de emprego) e formar (com os cursos de capacitação profissional), para que o mercado funcione melhor. Mas o efeito material, aquele mais importante, é que se a transação é um custo, o menor custo será – a rigor - aquele de “transação nenhuma”, quer dizer de uma relação de emprego (salarial) que não acontece. Dito de outra maneira: por um lado, o capitalismo cognitivo diz respeito à mobilização das formas de vida em suas próprias dinâmicas sociais, inclusive reprodutivas. A vida se torna produtiva, sem mais passar pela relação salarial e confere ao desenvolvimento das forças produtivas uma potência nova e libertadora.

Por outro lado, a relação salarial (sua convenção) continua em vigor, baseada na continuidade da propriedade privada e no trabalho subordinado. Só que esse trabalho subordinado - constituído pelas próprias formas de vida – é, na realidade, um trabalho cuja dimensão produtiva já é dada antes da relação salarial. Isso se resolve no paradoxo que desenvolve pelo avesso o novo potencial de liberdade: o trabalho, tendencialmente, descola-se do emprego, mas, em troca, reduz-se à execução de um projeto cuja duração ideal será instantânea! A imensa potência produtiva do trabalho social se transforma assim em nova miséria para o trabalhador individual, cujo trabalho sem emprego não é mais reconhecido.

O fato de a crise financeira global fazer pagar seus efeitos aos trabalhadores, impondo o horizonte da “empregabilidade” não apenas como discurso, mas como condição, indica que a crise ainda está diante de nós, pois a “empregabilidade” e seus “custos” se encontram em seu bojo: um capital que não emprega mais ninguém não consegue mais se valorizar. Ao mesmo tempo, no deslocamento do trabalho para fora de qualquer transação na execução de um projeto instantâneo, pois que essa é sempre um custo que deve ser reduzido a zero, o potencial de libertação do trabalho encontra um horizonte tão potente quanto o nível de socialização autônoma que passa a caracterizá-lo.

O “custo-Brasil” está nu!

Se não fosse trágico, seria até ridículo o que estamos assistindo desde o final de 2008. Ao longo de uma década (1990), o conceito neoliberal de “custo-País” (que foi aplicado em todos os países: lembremos o “custo-Brasil”) pautou as políticas de privatização, reestruturação e enfraquecimento dos sindicatos operários. Alem disso, reduziram-se os serviços públicos a mercadorias às quais se passava a ter acesso (e não mais direito!) com base no mercado. Um racionalismo absurdo afirmava que o País (o Brasil) era um custo, como que um peso morto, para as empresas que seriam a única coisa viva. A lógica da acumulação (privada) era assim alçada a um estatuto inquebrantável, praticamente divino: o imperativo do “custo Brasil”, dizendo-nos que os interesses dos poucos (o lucro e a acumulação das empresas, portanto dos capitalistas, dos ricos), deverá ser a base da racionalidade dos muitos (os trabalhadores e mais em geral dos pobres). Ao paradoxo tradicional da inversão do sentido da produção de riqueza - o País (os muitos) é finalizado aos interesses das empresas (os poucos) para a produção de riqueza destinada a aumentar o poder dos ricos (e não para diminuir a pobreza dos pobres) – se desdobrou esquizofrenicamente: o próprio País (tendo ele se tornado um “custo”) deve ser reduzido, até eliminado. A fonte da riqueza: o País e sua população se tornam um obstáculo para uma acumulação que perdeu completamente os estribos, ou seja, uma âncora, um padrão, para seu “valor”.

Os paradoxos do mercado do trabalho no Brasil, onde encontramos altas taxas de desemprego aberto e, sobretudo, embutidas no emprego informal de baixa qualidade, e ao mesmo tempo as dificuldades de encontrar determinados tipos de “profissionais” são emblemáticos do fato de que a qualidade do trabalho acaba dependendo da qualidade de vida. No modelo industrial, eu precisava ter um emprego para, com base nisso, ter acesso a um padrão de consumo e serviços e, assim, educar meus filhos e participar da reprodução do ciclo de acumulação. No capitalismo contemporâneo, eu preciso de um telefone celular no bolso para me conectar, de transportes públicos de qualidade para circular, de boa educação para me articular de maneira cognitiva dentro das redes de produção e consumo. Tudo isso é chamado pelo jargão econômico neoliberal de “empregabilidade”, custo de transação, custo de oportunidade, externalidades, capital social, capital humano, capital intangível, etc. De repetente, a fragmentação social se torna um obstáculo: o acesso proporcionado pelo mercado não funciona, a não ser de maneira intermitente, pela própria lógica do mecanismo que caracteriza a acumulação no capitalismo cognitivo. É o debate sobre “reduzir gastos de custeio” para “aumentar “investimentos”. Para além das questões eleitoreiras, temos aí a inadequação (e a mistificação) do discurso: numa economia do trabalho imaterial, os gastos em serviços e distribuição de renda são investimentos ... em capital humano... sem os quais não haverá as forças de trabalho necessárias, apesar do desemprego estrutural que caracteriza o Brasil. A substituição de tudo isso pela lógica do mercado (a privatização dos serviços) leva direto para o impasse da crise dos subprimes: o crédito acaba se substituindo à renda, mas o débito se torna impagável.
 
Hoje, essa inversão aparece em sua dimensão irônica e insustentável: as empresas (leia-se: o capitalismo contemporâneo) entraram em crise pela própria contradição estrutural (a esquizofrenia que apontamos acima), gerada pela lógica que transforma as bases da riqueza em “custos” que devem ser diminuídos, fragmentados, estilhaçados. Necessariamente, a redução do “custo” (as bases da riqueza) traduziu-se num drama da própria realização do valor: crise das bolsas e valores e tornar-se tóxico dos ativos financeiros. O quebra-cabeça típico do subdesenvolvimento (quer dizer uma pilhagem da população e da natureza que acaba reduzindo as próprias condições de “desenvolvimento”) apareceu no cerne mais avançado do capitalismo contemporâneo. Se, no curto prazo, isso funcionou graças ao processo de financeirização, no longo prazo, isso deu necessariamente na crise atual. A ampliação desmedida do crédito deu a ilusão de equacionar um descompasso que, na realidade, era apenas adiado (financeirizado), para depois estourar de maneira ainda mais violenta.

O sistema não foi direto por água abaixo só porque os bancos centrais (os Estados) despejaram nos mercados mais de uma dezena de trilhões de dólares liquidez que será paga pelos... muitos. Por que não se fala, nesse momento, de custo-empresa? De custo-banco, de custo-mercado-financeiro? Porque isso significaria pegar pelo avesso a teoria e a política dos custos de transação. Se a melhor transação possível entre forças produtivas e capital é aquela de custo zero, quer dizer, aquela que não acontece, então é preciso que o trabalho vivo (sem o qual qualquer valorização é impossível) contenha o capital (fixo). Dito de outra maneira, se para o capital, a transação de custo zero era proporcionada pela sua financeirização (uma acumulação autorreferencial, tautológica, que a crise nos mostra em toda sua nudez) para o trabalho, isso funciona, potencialmente, pelo avesso: o trabalho que se torna produtivo sem passar pela transação é aquele que consegue socializar-se se passar pela relação salarial. É o trabalho (capital variável) que integrou o capital fixo, quer dizer a cooperação social e o conhecimento, bem como acontece nas redes sociais e técnicas. Mas essa não é uma transformação linear e determinista, pelo contrário, ela implica uma dimensão política, em particular no que diz respeito à questão da propriedade, por um lado, e o reconhecimento da dimensão produtiva de todo o tempo de vida que esse tipo de trabalho mobiliza, por outro. Sem a subversão de todo o dispositivo jurídico da propriedade de maneira a reconhecer, justamente no âmbito jurídico, a integração recíproca entre trabalho e capital, a mudança se dá como não reconhecimento do trabalho, logo como uma crise permanente.

Algumas conclusões provisórias:
Rumo ao salário universal como base de construção do Comum

Como dissemos, a crise não tomou proporções ainda maiores e dramáticas só porque os governos desempenham um papel essencial. Ao mesmo tempo, as intervenções públicas não conseguem evitar o impacto do aumento dramático do desemprego e da indefinição do modelo futuro. Ninguém sabe ainda quem e como pagaremos os trilhões de dólares emitidos para salvar o sistema bancário mundial.

Diante disso, temos três linhas de reflexão.

Em primeiro lugar, o aumento do desemprego se transforma em um drama social – inclusive nesse caso da crise – porque o “emprego” continua sendo a forma “convencional” de reconhecimento do trabalho e, por consequência, de determinação das condições de acesso à renda (isto é, ao salário) e ao próprio sistema de proteção social, ao passo que o trabalho se mobiliza de outras formas.

Em segundo lugar, a dimensão sistêmica da crise do capitalismo globalizado e financeiro tem sua origem exatamente nesse descompasso crescente. Por um lado, a vigência da “convenção” dominante que continua a identificar o trabalho ao emprego (assalariado, de tipo industrial), portanto, a subordinar a distribuição de renda à forma-salário (ter um emprego); por outro, no capitalismo que valoriza os elementos cognitivos (design, marketing, logística) dos bens, o trabalho investe a vida: nossas atividades de consumo (nos hipermercados, na internet, nos caixa-eletrônicos dos bancos), de comunicação (nos transportes e nos telefones celulares) e de produção (no chão de fábrica e nos call centers, onde é nossa alma que é explorada). Ou seja, por um lado, a convenção dominante apenas reconhece o trabalho que acontece sob a forma de emprego e nós temos a impressão de que o trabalho diminui, porque pensamos na “transação” salarial que é objeto de uma contínua diminuição; por outro, o trabalho, que se difunde na sociedade e confunde com a própria vida, não é reconhecido, a não ser nos estilhaços sem fim da fragmentação social, do trabalho precário. Eis a crise do subprime: uma força de trabalho precária e mal paga de jovens e imigrantes precisa de moradia de qualidade para acrescer o que a ideologia neoliberal chamou de “empregabilidade”, quer dizer, seu “capital social”. Só consegue pelo mercado, isto é, comprando uma casa que sua renda não alcança pagar e deve, pois, recorrer a um crédito cujas prestações não consegue pagar e, enfim, a um empréstimo para pagar o empréstimo inicial (subprime): o debito já é impagável. A contradição fundamental é mesmo aquela desenhada pela difusão social do trabalho vivo e a permanência da convenção do emprego. Por um lado, o trabalho vivo, nossa própria vida, é mobilizado e essa mobilização não é reconhecida: a distribuição de renda continua atrelada ao fato de ter ou não um emprego. Assim, nós precisamos investir na qualidade produtiva dessa “nossa” vida, mas isso é ao mesmo tempo considerado um “custo” que deve ser eliminado. No lugar de nosso investimento aparece a especulação financeira: teremos acesso aos serviços (e não direito a eles) por meio do cartão de crédito e outros empréstimos. Por outro lado, o trabalho vivo se torna imediatamente produtivo porque integra e conta o capital fixo. Entretanto, essa hibridização de capital variável e capital constante é diversamente atravessada pelos dispositivos jurídicos do direito de propriedade. Ao passo que, na produção de saber, dentro das redes, a nova qualidade do trabalho consegue estabelecer domínios do comum (cf. o movimento do copyleft ou dos pré-vestibulares comunitários), os Estados continuam proporcionando – com consequências desastrosas das quais a crise é uma ilustração – o controle privado dos serviços, da terra, da cidade, das empresas.

Chegamos assim à terceira linha de reflexão, aquela que diz respeito ao Brasil. A brincadeira do Presidente Lula sobre as responsabilidades dos banqueiros “loiros e de olhos azuis” não poderia ter sido mais adequada para expressar de maneira popular um dos grandes sinais (invertidos) da crise: os países centrais, a começar pelos Estados Unidos, experimentam, enfim, a condição e as consequências das receitas que a tecnocracia imperial aplicou ao Sul ao longo de duas décadas de hegemonia neoliberal. Ao mesmo tempo, a relativa “estabilidade” da economia brasileira na crise tem um custo muito alto: as dimensões conservadoras de sua política monetária; a extrema flexibilidade de seu mercado do trabalho ultrainformal; a fraca democratização do crédito e do consumo popular. O governo brasileiro deve tirar todas (e não apenas algumas) as lições da crise: ela não somente demanda e determina uma maior intervenção pública (que já aconteceu), mas, sobretudo, uma reformulação da convenção que liga entre si trabalho e emprego. É preciso reconhecer, como uma renda de cidadania, a dimensão produtiva da vida, a começar pela vida dos pobres. As políticas sociais têm que ser um eixo estratégico da intervenção pública. A implementação de uma renda universal de cidadania é um momento fundamental: o Bolsa Família é, nesse sentido, um pequeno “grande passo” nessa direção.

Enfim, do ponto de vista do trabalho, tudo depende do que as lutas serão capazes de determinar e criar. Nesse horizonte, seria um erro para os sindicatos operários se limitar a defender os interesses dos trabalhadores do chão de fábrica ou os servidores, seria um erro pensar que a saída da crise significaria uma volta à “economia” real. Há somente uma economia, da qual as finanças são, ao mesmo tempo, um instrumento de controle (e de exploração, não mais do tempo de trabalho, mas do tempo de vida) e uma expressão da dimensão imediatamente social, cooperativa e horizontal da produção.

A resistência sindical é fundamental para afirmar que não cabe aos trabalhadores e aos pobres “pagar” por essa crise. Os sindicatos dos trabalhadores têm nessa conjuntura uma importância estratégica, juntamente aos outros movimentos sociais. Mas, essa dimensão será realmente estratégica se conseguirão juntar a defesa do emprego com a defesa da distribuição de renda independentemente do emprego.

Nesse sentido, a reabertura de um horizonte pós-capitalista traz, em seu cerne, a necessidade de se pensar a democratização, a conquista pelo trabalho vivo, das próprias finanças. Se os operários de fábricas visaram conquistar o palácio de inverno e socializar os meios de produção (a revolução russa), os trabalhadores imateriais hoje devem conquistar (quer dizer constituir) a dimensão comum, radicalmente democrática, da moeda e da “empresa”, a começar pelos fundos de pensão!

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Giuseppe Cocco.

Entrevistas:

* Política do comum. Uma alternativa à crise econômica mundial?, publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU, em 26-01-2009.  
 
* O ‘fazer multidão' diz respeito à própria constituição da esfera pública – publicada na revista IHU On-Line, número 266, de 28-07-2008.

* Já saímos da sociedade salarial - publicada na revista IHU On-Line, número 216, de 23-04-2007.

* O império e a multidão no contexto da crise atual - publicada na revista IHU On-Line, número 293, de 18-05-2009. 

Artigo:

* Uma crise sistêmica do capitalismo flexível, globalizado e financeirizado - publicado na revista IHU On-Line, número 291, de 04-05-2009. 

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