Edição 301 | 20 Julho 2009

Biocapitalismo. A vida no centro do crescimento econômico

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Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger

Para Christian Marazzi, vivemos a crise de um modelo de capitalismo que vem se afirmando a partir da crise do capitalismo fordista-industrial dos anos 1970

A partir da análise que faz da atual crise financeira mundial, o economista francês Christian Marazzi considera que os pilares do capitalismo financeiro que hoje se encontra em crise, são os seguintes: “um ataque sistemático à classe operária, com redução dos salários, flexibilização do trabalho e aumento da extração de mais-valor na esfera da distribuição”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, Marazzi afirma que “o modo capitalista de governar está (...) em crise num plano global. Estamos assistindo a uma proliferação de centros de poder em escala mundial (asiático, latino-americano, europeu, estadunidense) que impede uma regulação concertada da saída da crise. Chama-se ´globo-esclerose´ e significa que nenhum polo capitalista regional está em condições de assumir o comando do crescimento econômico mundial”. Ele constata que “assistimos (...) a um deslocamento à direita em quase todas as partes do mundo, a uma crise da globalização (ou seja, a uma ‘desglobalização’) com impulsos autárquicos e com a ascensão de movimentos de direita e racistas por toda a parte”.

Christian Marazzi é professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade della Svizzera Italiana. Também foi professor na Universidade Estadual de Nova York, na Universidade de Pádua, em Lausanne e Genebra. Entre suas obras, citamos Autonomia (Cambrigde: Mit Press, 2007) e Capital and language (Cambrigde: Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt e Gregory Conti.

A obra O lugar das meias. A virada linguística da economia e seus efeitos na política (São Paulo: Civilização Brasileira, 2009) foi traduzida para o português neste ano.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O capitalismo está mesmo em crise ou vivemos apenas uma crise nas finanças? O que caracteriza essa crise?

Christian Marazzi - Esta é a crise de um modelo de capitalismo que vem se afirmando a partir da crise do capitalismo fordista-industrial dos anos 1970. Os pilares do capitalismo financeiro, hoje em crise, são os seguintes: um ataque sistemático à classe operária, com redução dos salários, flexibilização do trabalho e aumento da extração de mais-valor na esfera da distribuição. É o assim chamado biocapitalismo, que põe no trabalho a vida inteira dos trabalhadores, fazendo-os trabalhar gratuitamente na esfera da reprodução e da circulação, mas sem pagá-los. A globalização, por sua vez, estendeu este processo de “colonização” capitalista, dos processos de valorização do capital, para além dos portões das fábricas. Mas uma característica específica deste capitalismo hoje em crise é a centralidade das finanças e do débito privado (o endividamento das famílias). Num certo sentido, o estado social (Welfare State) “delegou” à economia privada e às finanças algumas das suas funções fundamentais, em particular, a criação de uma demanda aglutinada com o mecanismo do déficit spending keynesiano. Ou seja, a economia financeira criou rendimentos necessários ao crescimento econômico, por meio de débitos privados, dos quais os subprimes americanos são somente um exemplo. É este “modelo” de capitalismo que não funciona mais, e é com base na crise deste modelo que o capitalismo está hoje procurando se reestruturar. Entretanto, a crise será particularmente longa e corre o risco de durar uma dezena de anos.

IHU On-Line - O capitalismo ainda tem força para governar nossas vidas? Onde deverá estar o poder a partir deste cenário de crise?

Christian Marazzi - O capitalismo governa hoje as nossas vidas através da crise, das demissões, da pobreza difusa, do medo e do sentimento de culpa (a culpa de ter se endividado e de dever reconstruir o próprio balancete familiar!). O modo capitalista de governar está, no entanto, em crise num plano global. Estamos assistindo a uma proliferação de centros de poder em escala mundial (asiático, latino-americano, europeu, estadunidense), que impede uma regulação concertada da saída da crise. Trata-se da “globo-esclerose” e significa que nenhum polo capitalista regional está em condições de assumir o comando do crescimento econômico mundial. Nesse sentido, é possível que as lutas sociais possam aprofundar a crise do governo capitalista sobre as nossas vidas.

IHU On-Line - O senhor também identifica a crise da teoria neoliberal?

Christian Marazzi - Certamente o neoliberalismo está conhecendo uma crise de legitimidade política, além da econômica. Mas não estou certo de que seja o fim do liberalismo. Assistimos, ao invés disso, a um deslocamento à direita em quase todas as partes do mundo, a uma crise da globalização (ou seja, a uma “desglobalização”) com impulsos autárquicos e com a ascensão de movimentos de direita e racistas por toda a parte. Nos próximos meses e anos, os movimentos de luta serão confrontados com estes impulsos neoliberais e populistas e deverão organizar-se para reconstruir uma frente de resistência contra a restauração do liberalismo reacionário.

IHU On-Line - Que alternativas podemos imaginar neste momento, do ponto de vista econômico?

Christian Marazzi - É preciso lutar contra a pobreza, contra o desemprego, contra a perda das aposentadorias. É preciso lutar pela abolição dos débitos privados das famílias e pela criação de novas formas de consumo social nos quarteirões, nas cidades, em regiões inteiras. Creio que a luta contra o conceito capitalista de “crescimento econômico” seja a próxima fase: inventar formas de “crescimento ecológico”, abolir o uso capitalista do território, dos espaços urbanos. Isso me parece ser o horizonte alternativo que se delineia para nós.

IHU On-Line - Quais os riscos e limites de uma economia real internacional globalizada?

Christian Marazzi - Os riscos estão ligados ao uso capitalista da internet como “dispositivo de comando” (o olho do poder). Mas creio que a digitalização do capitalismo seja um bem para a luta política anticapitalista, no sentido de que permite generalizar o conhecimento crítico e coordenar as lutas sociais.

IHU On-Line - Em que medida a crise financeira internacional transforma o capitalismo cognitivo?

Christian Marazzi - O capitalismo cognitivo está atravessando uma fase crítica, no sentido de que, para reduzir os custos de produção, o capital está licenciando uma parte importante dos knowledge workers. Haverá, nos próximos meses, processos de concentração do capital cognitivo e a eles deveremos saber responder com processos de dispersão da inteligência inovadora. Unir os knowledge workers às lutas dos pobres, eis o que devemos tentar.

IHU On-Line - Qual o valor que adquire o biocapitalismo e a política do comum neste momento de crise?

Christian Marazzi - O biocapitalismo põe a vida no centro do crescimento econômico. A própria vida, a vida nua, se torna fonte de valor, ou melhor, um mais-valor absoluto que não é reconhecido pelo capital e, portanto, não é pago. Por essa razão, o rendimento garantido  é a forma de reconhecimento da força produtiva da vida colocada no trabalho.

Leia mais...

>> Christian Marazzi já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.

Entrevista:

Política do comum: uma fonte direta de valor econômico. Publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU, em 23-03-2009. 

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