Edição 300 | 13 Julho 2009

Não fomos criados à semelhança de Deus: ele é que foi criado à nossa semelhança

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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

Daniel Dennett frisa que somos apenas uma das espécies vivas do planeta, mas a única que tem o conhecimento de protegê-lo contra desastres. Deus foi criado à nossa semelhança, e não o contrário

A hipótese Deus não é necessária para explicar o fato de estarmos aqui, e a teoria da evolução, de Darwin, demonstra isso muito bem, pontua o filósofo norte-americano Daniel Dennett, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Além de termos sido desbancados do nosso antropocentrismo após a formulação da teoria da evolução, precisamos, ainda, diz o filósofo, conviver com a constatação de que existe uma “incompatibilidade profunda” entre o processo “desprovido de propósito, mecânico e descuidado” que cria as coisas e a concepção de um design inteligente. “Não há tarefa na criação da biosfera para a qual a inteligência seja necessária”, sentencia. “Nós somos apenas uma espécie neste planeta maravilhoso, mas somos a espécie que tem o conhecimento que poderia protegê-lo contra desastres. Nós não somos ‘criados à semelhança de Deus’ (não, Deus foi criado à nossa semelhança), mas temos efetivamente uma versão imperfeita do poder, análogo ao divino, de providência e boa vontade, sendo, portanto, responsáveis pela segurança de todas as espécies”.

Dennett é conhecido mundialmente por sua pesquisa voltada à filosofia da mente e da biologia. Ele entende a evolução por seleção natural como um processo algorítmico. Esta ideia está em conflito com a filosofia do paleontólogo evolucionista Stephen Jay Gould, que preferiu salientar o “pluralismo” da evolução, ou seja, a sua dependência de muitos fatores cruciais, dos quais a seleção natural é apenas uma. Em A perigosa ideia de Darwin: a evolução e os significados da vida (Rio de Janeiro: Rocco, 1998), Dennett mostrou-se ainda mais disposto a defender o adaptacionismo de Richard Dawkins, dedicando um capítulo inteiro a uma crítica das ideias de Gould. Ateu assumido, escreveu inúmeras obras influentes do pensamento atual, entre elas Tipos de mente: rumo a uma compreensão da consciência (Rio de Janeiro : Rocco, 1997); e Quebrando o encanto (Rio de Janeiro: Globo, 2006). Sobre esta última obra, leia a entrevista com o autor, Daniel Denett, intitulada “Proponho interceptar o pressuposto que diz que não se pode pesquisar a religião”, publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 11-10-2007.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a fé na criação divina e a teoria de Darwin são incompatíveis?

Daniel Dennett - Antes de Darwin, parecia óbvio para todo o mundo que só uma entidade inteligente e dotada de propósito pode criar algo intrincado, algo que tem uma função ou finalidade. Um tufão pode causar um grande estrago, mas esse estrago não mostra sinais de projeto. E o nome dado a essa entidade criadora inteligente era Deus. Darwin mostrou que isso é um erro. Um processo desprovido de propósito, mecânico, descuidado pode criar coisas que tenham um projeto requintado. Esta é uma incompatibilidade profunda. Não há tarefa na criação da biosfera para a qual a inteligência seja necessária.

IHU On-Line – As teorias de Darwin podem ser pilares na construção do diálogo entre fé e ciência? Por quê?

Daniel Dennett - O mais importante tema que a ciência deixou não resolvido é a ética: o que deveríamos fazer? Como deveríamos viver? Esta não é uma pergunta factual, mas também não é uma pergunta que pudesse ser respondida pela fé, independentemente da razão. O fato de algum texto sagrado dizer “Não farás...” ou “Sempre farás...” não poderia determinar que todo o mundo (ou qualquer pessoa) deveria ou não deveria fazer o que quer que o livro tenha dito. Mas qualquer imperativo desses é um bom candidato para nossa consideração. Se imaginarmos uma comunidade de persuasão mútua, em que cada crença religiosa – e também todo moralista secular ou ateísta – tenta convencer todos os demais a respeito de como se deve viver moralmente, então a ciência poderá oferecer muitas informações valiosas sobre as disposições e fraquezas humanas, e a história poderá oferecer muitas informações valiosas sobre a maneira como vários credos éticos funcionaram no passado, e, juntas, todas essas informações deveriam enriquecer e fortalecer a tomada de decisões, em última análise políticas, que pode, em princípio, levar a uma ética universal ou quase universal. E, de fato, é uma versão não organizada desse processo, que já vem ocorrendo há vários milênios, que nos deu a moralidade a respeito da qual todos tendemos a concordar atualmente. Ninguém vive segundo a moralidade do Antigo Testamento, ou iria querer fazer isso. A ética evoluiu, culturalmente, ao longo dos séculos.

IHU On-Line – Com Darwin a humanidade percebeu que não é o centro dos organismos vivos. Como essa percepção altera a ciência e a sociedade atualmente?

Daniel Dennett - Deixe-me citar o falecido Paul MacCready,  um engenheiro excelente e visionário: “Ao longo de bilhões de anos, sobre uma esfera singular, o acaso pintou uma fina cobertura de vida – complexa, improvável, maravilhosa e frágil. Subitamente nós, seres humanos [...], crescemos em termos de população, tecnologia e inteligência, chegando a uma posição de poder terrível: somos nós que agora empunhamos o pincel.” Nós somos apenas uma espécie neste planeta maravilhoso, mas somos aquela que tem o conhecimento que poderia protegê-lo contra desastres – incluindo aqueles pelos quais nós, humanos, seríamos responsáveis. Nós não somos “criados à semelhança de Deus” (não, Deus foi criado à nossa semelhança), mas temos efetivamente uma versão imperfeita do poder, análogo ao divino, de providência e boa vontade, sendo, portanto, responsáveis pela segurança de todas as espécies.

IHU On-Line – Pode-se falar num novo paradigma da ciência depois de A origem das espécies? Por quê?

Daniel Dennett - Darwin mostrou como o pensamento teleológico – sobre funções e finalidades – pode se tornar coincidente com as ciências não teleológicas da química e da física. O mundo biológico está fervilhando de funções, em todas as escalas, desde a tromba do elefante até as enzimas revisoras de provas em nossas células que corrigem erros de cópia em nosso DNA, um trilhão de vezes por dia. A biologia estuda isso pela “engenharia reversa”, descobrindo para que serve cada parte e cada característica. Essa engenharia reversa não é, num certo sentido, um paradigma novo – Aristóteles  era entusiasticamente teleológico em suas próprias análises pioneiras de coisas vivas –, mas a ideia de Darwin torna essa perspectiva coerente e compatível com o resto da ciência.

IHU On-Line – Darwin “matou” Deus, ou sua teoria apenas comprovou um fato ainda não constatado?

Daniel Dennett - Nem uma coisa, nem outra. Não há uma única ideia de Deus hoje em dia; para algumas pessoas, Deus é, como disse Tillich,  “o fundamento de todo o ser” (seja lá o que possa significar isso!); para outras, Deus é um agente humanóide gentil, mas, às vezes, punitivo, que literalmente olha sobre nós como um titeriteiro.  E há mil outras ideias. Se Deus é apenas a excelência (por nossas luzes) do universo (o que nos tornou possíveis), então Ele existe tão certamente quanto a gravidade existe. A ideia de Darwin mostra que nenhuma outra concepção de Deus é necessária para explicar o fato de estarmos aqui.

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