Edição 300 | 13 Julho 2009

Epigenética e teoria da evolução. Suas compatibilidades

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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

Herança comportamental na evolução se apresenta de várias maneiras, sobretudo por meio de tradições, acentua a geneticista Eva Jablonka. Mecanismos epigenéticos recém descobertos ampliam noções de hereditariedade, variação e evolução

A “epigenética é uma abordagem usada para estudar o desenvolvimento que enfoca as interações de todos os insumos que afetam o processo de desenvolvimento do indivíduo, do nível molecular em diante”, analisa a cientista Eva Jablonka, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo a pesquisadora, “a existência de variações epigenéticas, ‘desenvolvimentais’, está em consonância com as ideias do próprio Darwin sobre hereditariedade, pois Darwin acreditava que a variação induzida ‘desenvolvimentalmente’ pode ser herdada”. Essa herança comportamental na evolução se apresenta de inúmeras formas, “mas da maneira mais direta na forma de tradições”.

Docente na Universidade de Tel Aviv, no Cohn Institute for the History of Philosophy of Science and Ideas, Jablonka é polonesa e imigrou para Israel em 1957. De suas obras, citamos: History of Heredity (Israel: Ministry of Defence Publishing House, 1994); Epigenetic Inheritance and Evolution: the Lamarckian Dimension (Oxford: Oxford University Press, 1995), e Animal Traditions: Behavioural Inheritance in Evolution (Cambridge: Cambridge University Press, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é epigenética?

Eva Jablonka - Epigenética é uma abordagem usada para estudar o desenvolvimento que enfoca as interações de todos os insumos que afetam o processo de desenvolvimento do indivíduo, do nível molecular em diante. O estudo da plasticidade (como um genótipo pode gerar muitos fenótipos diferentes) e o da canalização (como indivíduos com genótipos diferentes têm o mesmo fenótipo) são de interesse especial, porque são as interações entre os diferentes fatores, genes, seus produtos, células, etc. que constituem o foco dessa abordagem. No nível celular, os processos epigenéticos que são de interesse especial são os processos implicados na determinação e diferenciação das células. Em níveis mais elevados da organização biológica, mecanismos epigenéticos geram as interações dependentes do contexto e autossustentadoras que levam à persistência fisiológica, morfológica e comportamental. A herança epigenética é um componente da epigenética. Ela ocorre quando variações fenotípicas não provenientes de variações em sequências de bases no DNA são transmitidas a gerações subsequentes de células ou organismos. Um exemplo é a herança durante o desenvolvimento em linhagens de células dentro de um organismo. A hereditariedade celular em células que se dividem mitoticamente subjaz à persistência de estados determinados em organismos multicelulares. Isto é, as células tronco do rim de um indivíduo e as células tronco de sua pele geralmente produzem prole com as características dos pais, embora suas sequências de DNA sejam idênticas e os estímulos “desenvolvimentais”  que acarretaram os fenótipos celulares diferentes tenham terminado há muito. Ela também inclui a herança de variações desenvolvimentais entre indivíduos.

IHU On-Line - Qual é a sua relação com a teoria da seleção natural de Darwin?

Eva Jablonka - A variação epigenética hereditária pode proporcionar uma variação adicional para processos evolutivos, inclusive a seleção natural. Assim, a existência de variações epigenéticas hereditárias amplia o escopo de variações e proporciona focos adicionais para a seleção. Não há conflito entre a epigenética e o darwinismo. De fato, a existência de variações epigenéticas, “desenvolvimentais” está em consonância com as ideias do próprio Darwin sobre hereditariedade, pois Darwin acreditava que a variação induzida “desenvolvimentalmente” pode ser herdada.

IHU On-Line - E o que é herança epigenética? Poderia nos dar alguns exemplos de seres vivos que possuem essa herança?

Eva Jablonka - Ela se refere à herança (transmissão) de variações que não dependem da variação da sequência de bases no DNA. Há muitos tipos dessa herança, incluindo a herança epigenética celular e gamética, a transmissão que implica a reconstrução de variações “desenvolvimentais” somáticas e não passa pelos gametas, a transmissão comportamental e, no caso dos seres humanos, a transmissão de informações baseada em símbolos. Darei um exemplo de herança epigenética celular onde a variação epigenética é transmitida através dos gametas.

Skinner  e seus colegas injetaram em ratas grávidas (8 a 15 dias após a cópula) vinclozolina, um fungicida que também é um antagonista do receptor do andrógeno. Eles constataram que as consequentes anormalidades no testículo, no sistema imune e em outros tecidos de crias do sexo masculino eram herdadas por quatro gerações, pelo menos. Quinze sequências diferentes de DNA com padrões de metilação alterados (uma modificação epigenética) nos machos F1 eram transmitidos da geração F1 para a F3. Gal Raz e eu pesquisamos a literatura e resumimos mais de 100 casos de herança epigenética celular entre gerações (veja Quarterly Review of Biology, v. 84, n. 2, 2009).

IHU On-Line - Como se apresenta a herança comportamental na evolução?

Eva Jablonka - Ela se apresenta de muitas maneiras, mas da maneira mais direta na forma de tradições. Estamos cientes das tradições culturais humanas, que são transmitidas e mudam através da evolução cultural (baseada em símbolos). Os animais também têm tradições comportamentais que são passadas de uma geração a outra através do aprendizado social. A transmissão de comportamento através do aprendizado social também influencia a evolução genética porque os comportamentos dos animais (inclusive, é claro, dos seres humanos) alteram o ambiente em que eles, seus descendentes e seus genes são selecionados.

IHU On-Line - Como a ênfase de sua pesquisa em formas de evolução não genéticas amplia o escopo do darwinismo?

Eva Jablonka - Os mecanismos epigenéticos recentemente descobertos estão ampliando e atualizando nossas noções de hereditariedade, variação e evolução. Eles podem acrescentar novas respostas a perguntas como as seguintes: como e por que são geradas variações hereditárias? O que é selecionado e como? A ênfase de minha pesquisa amplia o escopo do darwinismo porque mostra que a evolução implica descendência com modificações genéticas e epigenéticas, bem como a seleção natural de variações epigenéticas induzidas e cegas.

IHU On-Line - Qual é a influência de Lamarck  em sua pesquisa?

Eva Jablonka - Lamarck era um ótimo biólogo, de modo que seu trabalho sempre é uma inspiração. Sua influência sobre minha pesquisa não é direta – não são suas teorias específicas que me influenciaram, mas o tipo de problemática que ele definiu. A questão da relação entre desenvolvimento e hereditariedade, que ele acreditava ser direta (ele via a hereditariedade com um aspecto do desenvolvimento) e do efeito disso sobre a evolução influenciou gerações de biólogos, inclusive a mim, que investigaram essa relação dentro do marco da biologia de sua respectiva época.

IHU On-Line - Por que o pensamento de Darwin continua influenciando a ciência?

Eva Jablonka - A teoria de Darwin constitui a base da biologia moderna, incluindo, é claro, a moderna biologia evolutiva. Seus princípios básicos – a descendência com modificação e a importância primordial do processo de seleção na evolução – são os dois pilares nos quais se baseia a moderna biologia evolutiva. Cito o que Marion Lamb e eu escrevemos num pequeno artigo intitulado Os pilares do darwinismo: “A teoria evolutiva repousa sobre dois pilares: a teoria da descendência com modificação e a teoria de que a seleção natural é necessária para explicar características funcionalmente complexas. Primeiramente, Lamarck e, 50 anos mais tarde, Darwin propuseram que os organismos vivos em nosso mundo são produtos de um longo processo histórico de transformação, que eles são descendentes de ancestrais antigos, muito mais simples, de linhas ininterruptas de hereditariedade que se iniciaram na origem da vida. Dados que se estendem desde o estudo de fósseis antigos até as mais recentes descobertas da biologia molecular dão sustentação à teoria da descendência com modificações. A segunda ideia vigorosa de Darwin, de que a seleção natural é necessária para a explicação da adaptação funcional, proporcionou percepções essenciais para a explicação científica de características complexas como o olho do mamífero, a asa do pássaro, a capacidade das plantas de transformar luz em açúcares. Muitos exemplos atestam a operação da seleção natural no mundo vivo.

Os dois pilares da teoria evolutiva se baseiam em interações dinâmicas entre os mais distintivos processos em organismos vivos: reprodução e multiplicação (indivíduos biológicos produzem prole em forma de indivíduos), hereditariedade (iguais fazem surgir iguais) e variação (às vezes a prole é diferente de seus progenitores). Quando alguma variação afeta as chances de reprodução, a seleção natural resulta disso. E quando as variações que afetam a reprodução são hereditárias, o resultado disso é a evolução por seleção natural. A seleção cumulativa numa direção particular, por exemplo para se movimentar com eficiência pelo ar, pode fazer surgir estruturas complexas, como asas, e os processos coordenados de vôo.”

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