Edição 299 | 06 Julho 2009

O ressurgimento dos povos indígenas na América Latina

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Na visão do líder indígena Paulino Montejo, a forte mobilização indígena ensejou uma mudança da mentalidade integracionista, homogeneizante e autoritária dos estados latino-americanos.

Além de assessor de instituições que trabalham com povos indígenas, Paulino Montejo é indígena maia, da Guatemala, e fala com a propriedade de quem vive a realidade dos povos indígenas desde o nascimento. Com base em sua experiência, ele identifica que “todos os segmentos sociais que têm algum vínculo com a terra, não só os índios, mas os quilombolas, os trabalhadores rurais do campo, os sem-terra, todos no atual momento, e particularmente agora com o agravo da crise econômica mundial, têm que se voltar para criar condições para se organizar e para defender, inclusive com a própria vida, o pedaço de chão ou o território, que nesse novo modelo de desenvolvimento é agredido e ameaçado”.

Na entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone, Paulino afirma que “nesses últimos vinte ou trinta anos os povos indígenas tomaram a consciência da necessidade de resgatar a sua identidade e de se reafirmar como povos étnica e culturalmente diferentes” e que “essa movimentação dos povos indígenas, em primeiro lugar, tem muito a ver com a necessidade de se afirmarem como povos diferentes, com uma identidade, uma cultura e uma filosofia de vida, um modo de ser, de agir, de pensar distinto da cultura dominante ocidental cristã”. Para ele, “quaisquer projetos que impactam a natureza, a terra, os recursos físicos, a floresta, a biodiversidade, os espaços socioculturais sagrados, o ambiente natural que os povos indígenas milenarmente têm preservado evidentemente confrontam uma questão de essência da vida destes povos”.

Representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Paulino Montejo foi assessor da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) por muitos anos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - É possível falar em um ressurgimento dos povos indígenas no continente?

Paulino Montejo – Há um ressurgimento em vários sentidos. Um deles podemos chamar de ressurgimento étnico. No Brasil, esse movimento considera alguns povos como “ressurgidos”. Em outros lugares da América, chamamos de processos de reetnificação. Nos últimos vinte anos, os povos indígenas do mundo inteiro começaram a avançar nas suas lutas além fronteiras, saíram do cerco artificial, das fronteiras artificiais constituídas pelos estados nacionais, e partiram para as lutas de caráter regional, no caso da América Latina, e inclusive de caráter mundial, ocupando espaços em organismos internacionais, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU), via comissão de direitos humanos, via grupos de trabalho sobre populações indígenas e atualmente do Fórum Permanente da ONU para os Povos Indígenas. Percebemos que nesses últimos vinte ou trinta anos os povos indígenas tomaram a consciência da necessidade de resgatar a sua identidade e de se reafirmar como povos étnica e culturalmente diferentes. Isso teve evidentemente alguns antecedentes fundamentais em avanços no que diz respeito à mudança na mentalidade de cientistas sociais, particularmente dos antropólogos, e todo o mundo acadêmico, o que, de alguma forma, incidiu em uma nova mentalidade, um novo pensamento no movimento indígena, que veio junto com as lutas de libertação na América Latina.

Essa movimentação dos povos indígenas, em primeiro lugar, tem muito a ver com a necessidade de se afirmarem como povos diferentes, com uma identidade, uma cultura e uma filosofia de vida, um modo de ser, de agir, de pensar distinto da cultura dominante ocidental cristã. Essa emergência notadamente repercutiu nas mudanças das leis das constituições da América Latina, como foi no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, no Equador e na Bolívia. A forte mobilização indígena indígena fez mudar a mentalidade integracionista, homogeneizante e autoritária dos estados latino-americanos. Isso foi muito bem vindo e significou um estímulo para a auto-estima e para o fortalecimento da perspectiva organizacional política dos povos indígenas do continente. Só que a história dos últimos dez, quinze anos mostrou que uma coisa é a teoria e outra é a prática, a realidade. O que foi considerado um grande avanço em termos jurídicos, reais e práticos está muito aquém do que se conquistou nas constituições da América Latina.

Um modelo econômico que confronta a natureza

Outro fator determinante e que está mais em discussão no momento, é o modelo econômico de desenvolvimento imposto aos estados na América Latina, que é ecossocialmente confrontativo a um estilo de vida, a uma mentalidade relacionada a um pensamento de equilíbrio, de convivência harmoniosa, de respeito à natureza, à mãe terra. Temos conhecimento pela mídia e pela sociedade em geral de que o que importa é o desenvolvimento econômico voltado para o lucro a qualquer custo. Se tiver que implantar grandes barragens, transpor rios, como o São Francisco, se tiver que privatizar a água, tudo vale. Essa é a lógica dos grandes empreendimentos, por exemplo, embutidos no PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, muito almejado pelo governo brasileiro. O PAC tem essa mentalidade que atende aos interesses do agronegócio, da grande indústria. Trata-se de uma mentalidade desenvolvimentista, que tem no seu bojo um modelo de desenvolvimento depredador, que agride a mãe natureza e que mexe com o elo fundamental da sobrevivência sociocultural e física dos povos indígenas na terra. Quaisquer projetos que impactam a natureza, a terra, os recursos físicos, a floresta, a biodiversidade, os espaços socioculturais sagrados, o ambiente natural que os povos indígenas milenarmente têm preservado evidentemente confrontam uma questão de essência da vida destes povos. Sabemos que a relação dos povos indígenas com a terra é uma relação só de sobrevivência física. Não é só uma questão de ter um espaço para subtrair meios de sobrevivência material. É um espaço de suporte, de sustentação de uma identidade física, mas também espiritual e sociocultural. Nesse sentido, percebemos que todos os segmentos sociais que têm algum vínculo com a terra, não só os índios, mas os quilombolas, os trabalhadores rurais do campo, os sem-terra, todos no atual momento, e particularmente agora com o agravo da crise econômica mundial, têm que se voltar para criar condições para se organizar e para defender, inclusive com a própria vida, o pedaço de chão ou o território, que nesse novo modelo de desenvolvimento é agredido e ameaçado.    

IHU On-Line - Quais têm sido os principais desafios e limites da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil?

Paulino Montejo – Na conjuntura do momento onde os direitos indígenas estão gravemente ameaçados, sobretudos os direitos territoriais, só cabe aos povos indígenas se organizarem melhor ainda pelo que fizeram até agora. E com uma diferença: para os povos e as organizações indígenas hoje não basta só ter qualidade no discurso político. Eles precisam se qualificar, se formar, se capacitar para conseguirem sucesso nos processos políticos e institucionais que definem o seu destino, tanto com relação às políticas públicas voltadas a eles, quanto com relação à formulação de suas próprias demandas, suas próprias propostas para resolverem as situações na área da saúde, da educação, da sustentabilidade ou na área da defesa dos seus territórios e da sua cultura. Esses sãos desafios a serem enfrentados. Os povos indígenas hoje precisam se estruturar, de fato, para poder reconhecer a sua mobilidade, para reconhecerem que eles são, de fato, protagonistas e precisam ser reconhecidos como sujeitos políticos capazes de pensarem e decidirem sobre o seu destino. Já se passou o tempo em que o Estado, o poder público, as ONGs e as Igrejas vêm e determinam o que deve ser feito com os povos indígenas.     

IHU On-Line - Qual a distância que o senhor estabelece hoje entre a teoria e a prática no que se refere às leis criadas no Brasil para proteger os povos indígenas?

Paulino Montejo – Há uma distância grande entre a teoria e a prática, um abismo na verdade. A dificuldade de demarcar terras indígenas no Brasil é grande, inclusive há uma tentativa hoje no Congresso Nacional, em forma de projetos de lei, que tentam reverter direitos indígenas já conquistados. Falta muito, apesar de alguns avanços que o governo objetivou, como foi o caso da homologação do Território Indígena Raposa Serra do Sol, para colocar a questão indígena numa situação de centralidade política do Estado. A questão indígena ainda está condicionada a interesses poderosos, econômicos, políticos no congresso, no poder legislativo, nas estruturas do estado, no poder público e no judiciário.     

IHU On-Line - Como o senhor define a relação dos povos indígenas com a FUNAI e com o governo brasileiro?

Paulino Montejo – O próprio presidente Lula admitiu, no início do seu segundo mandato, que ele estava com uma dívida, com um saldo negativo grandíssimo em relação ao que não fez pelos povos indígenas no seu primeiro mandato e que tinha se comprometido a fazer. No segundo mandato abriu-se uma situação de diálogo e negociação que foi impedida, dificultada no primeiro mandato. Em termos gerais, essa relação sempre foi tensa entre a FUNAI, o governo e os povos indígenas, uma vez que o governo demora muito para atender as demandas dos povos indígenas. Um caso típico é a demarcação das terras indígenas.

IHU On-Line - Em que andamento se encontra o Estatuto dos Povos Indígenas? 

Paulino Montejo – O Estatuto está engavetado há 14 anos e no último mês se fechou a sua proposta no âmbito da Comissão Nacional de Política indigenista, depois de o texto ter sido referendado na sua maioria. Agora está na parte de revisão de técnica legislativa, depois vai para o executivo, que o encaminhará ao Congresso Nacional. A forma como isso será incorporado vai depender do processo que conseguirmos deslanchar no congresso. Esperamos que isso aconteça o mais rápido possível, ainda este ano, para que qualquer medida e iniciativa legislativa que tente reverter os direitos indígenas no congresso nacional pare de tramitar.   

IHU On-Line - Que diferenças o senhor aponta em relação aos valores de suas raízes como indígena maia, da Guatemala, e os valores dos povos indígenas brasileiros?

Paulino Montejo – As diferenças são apenas de língua entre os povos indígenas da América espanhola e brasileira, não só com relação ao português e o espanhol, mas em relação às mais de 600 línguas indígenas do continente. Na verdade, todos esses povos, historicamente, foram, da mesma forma, vítimas de um processo que os massacrou, exterminou ou dizimou seus membros. Aqui nesse ponto vemos mais semelhanças do que diferenças. Nessa parte da resistência, da organização e da mobilização, da luta também são todos semelhantes. Vemos que há vínculos milenares de caráter espiritual, de visão de mundo entre os povos indígenas do continente. É isso que a macroeconomia e que o capital têm que admitir. As crises hoje do mundo, que aparecem como crise econômica basicamente ou, sobretudo, financeira, no fundo, é também uma crise de valores, onde falta aspecto espiritual, a dimensão da pessoa humana e da natureza.

IHU On-Line - O que significa, na sua opinião, a frase do cacique Anildo Lulu, da Aldeia Tereguá, no episódio de cárcere privado na Funai em Bauru no mês passado, que disse: “estamos preparados para a luta, não temos medo de morrer”?

Paulino Montejo – Essa é uma frase que não é só ele quem diz. Eu já ouvi isso de muitas lideranças indígenas. Para eles, a terra não é qualquer coisa. Ninguém vende a sua própria mãe. E eles sentem a ameaça de perder o que eles têm de mais caro, que é a terra mãe, onde nasceram, onde estão enterrados seus ancestrais, e onde mora o futuro das outras gerações. Na medida em que os povos indígenas sentirem a ameaça de perder a sua terra ou sua própria identidade, eles estarão sempre dispostos a lutar, mesmo sacrificando a própria vida. Isso é muito profundo.  

IHU On-Line - O que sua experiência como assessor do CIMI e da Coiab mais lhe ensinaram até então sobre a força e a garra dos povos indígenas latino-americanos?

Paulino Montejo – Os ensinamentos são muitos. Mas, concretamente, começando pelo meu povo, aprendi que podem vir modelos econômicos de dominação, exploração, genocídio, mas enquanto os povos indígenas estiverem vivos, não desistirão de se manterem vivos. A resistência, a perseverança, a persistência, o sonho de estar sempre atrás da terra prometida, ou proteger a terra garantida é o maior ensinamento deles. O valor da vida, não só de mim enquanto gente, mas da vida toda no universo, da natureza, da mãe terra, é o maior ensinamento que tive deles. Não se pode nunca abdicar da esperança. Os povos indígenas me ensinaram a nunca abdicar dos maiores desafios. Sempre há um motivo para continuar lutando e correndo atrás dos nossos direitos.

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