Edição 298 | 22 Junho 2009

A angústia como fonte da delinquência juvenil

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Márcia Junges

A psicanalista Conceição Fleig examina a delinquência juvenil pelo ângulo da angústia, e evoca Sade para explicar o mal como princípio de uma ameaça perpétua, que pode irromper a qualquer instante, sob forma de violência

“Tenho procurado examinar a delinquência sob um outro ângulo, que é justamente o da angústia. Considero que Sade tocou no mais fundo da alma humana ao falar do princípio da ameaça perpétua: conforme Klossowski, ‘o mal que pode irromper a cada instante, embora não irrompa jamais. Esta possibilidade do mal que não irrompe jamais, mas que pode irromper a cada instante, é a angústia perpétua de Sade’. A solução para essa angústia seria: ‘Numa palavra, é preciso fazer reinar o mal de uma vez por todas no mundo, a fim de que ele próprio destrua e que o espírito de Sade encontre afinal a paz’. Talvez aí pudéssemos dizer que, para os personagens de Sade, o mal irrompe. Encontramos aí a angústia pelo mal que não acontece de todo, o que viria a suspender a repetição e que também não se acaba, não se esgota.” As afirmações são da psicanalista Conceição Beltrão Fleig, na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.

Psicanalista e psicóloga, ela é membro da Escola de Estudos Piscanalíticos, no Brasil, analista membro da Association Lacanienne International, e especialista em Psicologia Clínica e Psicologia Escolar. Organizadora do livro Adolescente, sexo e morte (Porto Alegre: CMC, 2009), é autora do texto "Le gamin qui a brûlé", publicado em La culture des surdoués (Paris: Erès, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o binômio desejo e violência se apresenta em crianças e em adolescentes?

Conceição Beltrão Fleig - Para situar a questão no seu nascedouro, podemos recorrer ao auxílio de Santo Agostinho  em As confissões, quando relata o amargo olhar de inveja (amaru aspectu) que dirigiu a um outro bebê que estava sendo amamentado por sua ama. A inveja tem consequências sobre o outro, mas também sobre quem a dirige e pode possuir destinos diferentes, ou se mantém como uma força destrutiva, ou se transforma em desejo, o que é a grande virada. A inveja de ver outro na posição que deveria ser minha é uma das manifestações primeiras que funda a fraternidade. A fraternidade tem sua face violenta que é a rivalidade, e sobre qual Santo Agostinho tanto nos esclarece. Essa seria uma forma de violência, mas não a única, que é exercida entre iguais, os da mesma geração por exemplo. A violência, penso poder nomeá-la nesses dois sentidos: em direção ao outro e no retorno sobre si próprio, sendo peculiar ao contemporâneo de cada período. Existem outras, mas me detenho na primordial.

O paradoxo do desejo

Inicialmente, o conceito de desejo e de seus desdobramentos em psicanálise e que está presente ao longo da obra de Freud, diz respeito a uma contradição: o desejo se funda em um paradoxo. Não podemos compará-lo a uma vontade ou a um querer, justamente porque nos escapa. No cotidiano, costumamos dizer que se tem um desejo ou que “eu fiz o que desejava”. Dentro do rigor do conceito, poder-se-ia dizer que se cumpriu uma vontade. Nos casos sobre histeria e nos casos de neurose obsessiva, Freud situa o desejo de acordo com a estrutura psíquica. Vale a pena ler o famoso sonho descrito por Freud e que Lacan retomou, chamando-o de “O sonho da bela açougueira”. No sonho, ela queria dar um jantar. Aparentemente, estava aí seu desejo, mas, no desdobramento da análise do sonho, o desejo que se apresenta de fato era de que não pudesse dar o jantar. Há, ainda, um outro desdobramento: que o seu desejo de dar o jantar se mantivesse em suspenso, não realizado. No que se refere às crianças, Freud se refere à sua filhinha Ana, que havia sido privada de certos alimentos durante o dia e que, durante o sono, nomeia em sequência algumas frutas, e entre estas insere seu próprio nome, entre as frutas queridas que lhe haviam sido privadas pelo pai. Para concluir, o olhar amargo de inveja é captado, por exemplo, pelos pintores renascentistas. Basta reparar no olhar enviesado que as crianças endereçam para aquele que está no colo. No caso, para o menino Jesus.

IHU On-Line - Qual é o laço que une desejo e violência nesses grupos? Por que irrompe a violência entre eles?

Conceição Beltrão Fleig - Em uma clínica para crianças e adolescentes de comunidades carentes, na qual recebi muitas crianças e adolescentes não-leitores que apresentavam quadros de violência, encontro a seguinte estrutura discursiva na fala de uma mulher (também com filho não-leitor). Ela diz que pede emprestado para a vizinha o filho pequeno para ir na sinaleira esmolar, e que na volta paga para a mãe um tanto pelo aluguel da criança. Esta mesma mulher, na sequência desta fala, menciona um programa social de nosso governo, onde recebeu a instrução de que ela só terá direito ao dinheiro da Bolsa Família se trouxer o filho na escola. Entendido pela mãe: “Empresta-me teu filho para meus objetivos e receberás dinheiro em troca”. Esta mãe assim considerava a exigência feita pelo Programa Bolsa Família: ela o emprestava, e com isso recebia o dinheiro. Não coloco em questão a validade do Programa, nem a válida pressão feita aos pais para que estas crianças fiquem na escola e alimentadas, ao invés de estarem nas ruas, o básico do básico em situação de tanta penúria. O que coloco em questão é o discurso, o mesmo em relação à posição da criança como não-sujeito. Morte em vida! Nos trabalhos sobre hiperatividade associada à impossibilidade de aprender a ler, nos deparamos justamente com a angústia frente à morte, que tem como efeito uma posição de violência da criança com relação a si mesma (o machucar-se, o colocar-se em perigo. Já encontrei casos em que a automutilação chegava a ser confundida com maus-tratos por parte de um adulto). Nos adolescentes, a resposta vem sobre o outro, mas também sobre o próprio corpo. Quando nada é suposto à criança, quando não lhe é atribuída vida e tratada como um objeto, ela está privada da segunda vida, a vida simbólica. E não seria isso precisamente estar endereçada à segunda morte? Temos uma importante bibliografia a este respeito nos seminários do Dr. Jean Bergès.

IHU On-Line - Acredita que a delinquência juvenil está ligada a uma violência originária do desejo? Por quê?

Conceição Beltrão Fleig - Estou me perguntando por que falar em violência originária do desejo, e é isto, sim. Quanto ao desejo, não temos saída, no máximo o contornamos por meio dos sintomas, dos atos falhos, dos sonhos ou dos chistes. Uma das facetas é justamente o imperativo de cumpri-lo. E, já que a questão se dirige à delinquência juvenil, cabe retomar as voltas possíveis do sadismo, como, por exemplo, quando este se volta contra si próprio, ou seja, o sadismo da instância do supereu. E, para tal, nos referirmos aos criminosos por sentimento de culpa, cujo crime não gera culpa, mas é a culpa que leva ao crime, este que já seria o segundo crime motivado pela angústia de um crime primeiro, que seria justamente o não cumprimento do mandato superegoico.

Violência e angústia

Tenho procurado examinar a delinquência sob um outro ângulo, que é justamente o da angústia. Considero que Sade  tocou no mais fundo da alma humana ao falar do princípio da ameaça perpétua: conforme Klossowski,  “o mal que pode irromper a cada instante, embora não irrompa jamais. Esta possibilidade do mal que não irrompe jamais, mas que pode irromper a cada instante, é a angústia perpétua de Sade”. A solução para essa angústia seria: “Numa palavra, é preciso fazer reinar o mal de uma vez por todas no mundo, a fim de que ele próprio destrua e que o espírito de Sade encontre afinal a paz”. Talvez aí pudéssemos dizer que, para os personagens de Sade, o mal irrompe.  Encontramos aí a angústia pelo mal que não acontece de todo, o que viria a suspender a repetição e que também não se acaba, não se esgota. Temos, então, a ameaça permanente da possibilidade do mal como o motor para a própria execução do sadismo, ou seja, a tentativa de esgotar o mal. E o que significaria esgotar o mal? Por que isso seria preciso? Volto ao ponto que já abordei sobre as crianças e adolescentes jurados de morte por um discurso, por uma formação discursiva contemporânea, uma jura de morte que não se esgota.

IHU On-Line - O que podemos entender por “função paterna”, recuperando um conceito de Frege? E qual é a importância da função paterna na humanização da criança (sua entrada na linguagem e socialização)?

Conceição Beltrão Fleig - Tomemos inicialmente a questão visceral: o filho vem das entranhas da mãe, é parte dela, não lhe é um estranho (salvo nos casos de psicose materna em que o corpo do filho é tido e visto como um objeto perseguidor. A consequência destas alucinações povoou a unidade do antigo manicômio judiciário, com mães que haviam matado seus bebês). Entre ambos, não há nenhuma separação inicial. É um terceiro que vem solicitar algo a um ou a outro e, desta forma, separa (aí temos uma função que nem sempre é exercida pelo pai biológico, mas a atenção à função precisa ser exercida por alguém de carne e osso, e não serve para este fim o trabalho da mãe, ou similares). Se nos detemos mais especificamente no pai, que é o caso clássico, para ele o filho é um estranho. Ele precisa adotar a criança, e assim é sempre um pai adotivo nos dois sentidos. Ele adota o filho daquela mulher, mas sob a condição de ser adotado como pai pela mulher para seu filho (dela) e a mãe transmite isto à criança. Parece complicado? Pode ser sutil, mas tem muito homem que nunca foi adotado como pai. Para a mãe, o filho nunca é ele (pronome pessoal). A relação se dá no eu-tu. É o pai que introduz o “ele” – ele, o filho, ela, a criança. A função paterna introduz a terceira pessoa, ele não é eu, nem tu - é outro. Em casos de psicose, nos quais falha a entrada do terceiro, falha a função e se mantém a unidade eu-tu. Podemos ouvir a criança se referir a si mesma como ele/ela. Ou, então, a fulana (quando se refere a si mesma, ausência do eu). Este ele/ela ao se referir a si é uma forma de introduzir de alguma forma um outro na relação com a mãe.

IHU On-Line - Nesse sentido, como o declínio da autoridade paterna, a sua dilapidação, pode ser relacionado à violência juvenil?

Conceição Beltrão Fleig - Não me arriscaria a estabelecer uma relação de causa e efeito tão estreita. Talvez o futuro venha a comprovar estar relação, mas considero que no momento não podemos dizer. Tenho observado que a autoridade paterna vem se transformando em algo similar com uma corrida de revezamento. Para ilustrar, conto rapidamente o cotidiano de um menininho de cinco anos, alegre, que tem seus amiguinhos, é muito amado pela família, brinca, passeia, fala com riqueza de vocabulário, é amável. No final de semana, ele vai para a casa do pai e é recebido por este, pela madrasta e o recém-nascido maninho. No domingo, a mãe e o padrasto passam para buscá-lo, e entre o portão da casa e o carro é “passado o bastão”. A mãe viaja e lá vai ele para a casa dos avós. Novamente é “passado o bastão”. Todos são educados, convivem bem, dizem estar vivendo esta nova experiência muito bem. O avô organiza viagem com o menino e nem sombra de perguntar aos pais se pode, ou não. O avô está inteiramente autorizado, é só uma questão de organização. O menininho já aprendeu a arte do bom viver. Da casa do pai ou da casa da mãe, nada conta quando está na outra casa. É extremamente discreto, muito sábio. Mas a avó ouve nele “um suspiro sentido” e se pergunta sobre o que se passa na cabeça do netinho. Vejam que a autoridade paterna se dilui, a mãe é um centro de referência, mas no que concerne à administração dos tempos e dos movimentos no cotidiano. Nova organização familiar? Sim. Autoridade paterna? Existe, mas partilhada, administrada e ninguém parece estar incomodado. É muito similar a várias outras crianças que têm mais de uma casa, mais de um quarto. No revezamento da autoridade se “passa o bastão”.

IHU On-Line - Como essa nova economia psíquica pode ser relacionada com a nova economia mundializada?

Conceição Beltrão Fleig - Andam de braços dados e será uma das questões prementes discutidas no Colóquio promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Escola de Estudos Psicanalíticos, Association Lacanienne Internationale e a Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Lacan introduziu quatro discursos possíveis, o do amo, o da histérica, o do analista e o chamado discurso do capitalista. Creio que seja com estes quatro que vamos nos haver no Colóquio no que consiste a ética da psicanálise. A mundialização é uma das consequências e já sofremos disto em nosso cotidiano, mas, como esta não é minha seara, vou à sua incidência na clínica. Volto ao menino saudável, que pertence a uma família acolhedora, mas cujo único senão é “o suspiro sentido” que a avó atenta e transitivista  interpreta quando o ouve “suspirar fundo”. O menino, como tantas outras crianças, é um migrante, dentro do conceito de um ir e voltar. Ele migra semanalmente para novas casas. Qual é seu endereço, qual é seu quarto, qual é seu cachorrinho (tem um no pai, outro nos avós). Os adolescentes migram (mesmo que já em Goethe as viagens formem a juventude) para o estrangeiro no aprendizado de uma nova língua, na busca de aventuras de trabalho, as famílias migram, a trabalho, a estudos. Todos migram via internet, quantas vidas? E quem ainda não está precisa ser incluído! E nestas migrações se dá o enriquecimento de experiências, conhecimento, lazer, novas línguas, novos costumes, uma abertura para habitar o mundo, o que é fascinante. De tudo isto me fica uma pergunta que vem pela clínica. Por que cada vez menos crianças sabem interpretar o que leem e, muito pior, na escrita? Por que se dá a confluência de casos de violência juvenil, e automutilação na infância associados a quadros de angústia em crianças e adolescentes não-leitores? Temos novas formas de escrita? O que se apresenta neste sintoma referente à nossa contemporaneidade em que muitos adolescentes e crianças não conseguem entrar na lógica do escrito, mas são brilhantes com os ícones?

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