Edição 298 | 22 Junho 2009

A violência é constitutiva do ser humano e determina a sua subjetividade

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Márcia Junges

Recuperando temática freudiana, Rosane de Abreu e Silva afirma que a violência funda a civilização, é determinante de nossa subjetividade e se divide em fundamental, constitutiva do ser humano, e exacerbada, como experiência de excesso

“A violência fundamental é aquela a qual todo o ser humano tem de ser submetido para se tornar sujeito”, esclarece a psicanalista Rosane de Abreu e Silva na entrevista que concedeu com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail. De acordo com ela, “a violência primária se instaura no ser humano, desde os primeiros tempos de vida, desde o seu nascimento”. Com base na obra de Sigmund Freud, ela explica que a violência é fundadora da civilização, determinante de nossa subjetividade. Por outro lado, a violência exacerbada é a experiência do excesso, quando “o sujeito se encontra abandonado as suas próprias pulsões. Não se trata mais, então, da violência primária ou fundamental, mas sim de um movimento contrário”.  E completa: “A violência exacerbada é o que silencia a dor que não encontrou na palavra, o seu apaziguamento”. Rosane detecta, ainda, uma relação entre a violência juvenil, tema na qual é especialista, e o declínio da função paterna. Mas alerta: “Não é mais suficiente fazermos esta relação para pensarmos sobre a violência juvenil. O declínio da função paterna é uma teoria que não dá mais conta da questão da delinqüência”.

Graduada em Serviço Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), é especialista em Terapia de Casal e Família, pelo Domus Centro de Terapia de Casal e Família. Cursou mestrado em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutorado em Psicologia na Universidade de Paris XIII (Paris-Nord), na França, com a tese La délinquance juvénile et la question de l'objet.

É coordenadora do Laboratório de Psicopatologia da Fundação Escola Superior do Ministério público (FMP), membro da Escola de Estudos Psicanalíticos (EEP), da Associação Universitária de Pesquisa Em Psicopatologia (AUPPF) e do Laboratório de Psicopatologia da Universidade de Provence, na França. Atua como psicanalista em clínica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como poderíamos conceituar a violência?

Rosane de Abreu e Silva - Creio que é importante fazermos a diferença entre a violência que é constitutiva do sujeito, portanto, fundamental, ou ainda violência primária tal como a denomina Piera Aulaigner  (1975), da violência exacerbada, ou o que eu chamaria de inominável. A violência fundamental é aquela a qual todo o ser humano tem de ser submetido para se tornar sujeito. E, aqui, é importante observar que a construção do sujeito vai para além do orgânico ou do fisiológico. A violência primária se instaura no ser humano, desde os primeiros tempos de vida, desde o seu nascimento. Podemos trazer aí a desilusão da unicidade, a contínua ilusão e desilusão do desejo de completude e de ser um na fusão à mãe. O bebê humano vem ao mundo em uma completa dependência e o adulto, ao atender as necessidades deste bebê, introduz a noção de exterioridade. Este mesmo ser que o cuida também o priva, na sua ausência, enunciando suas carências e sua extrema dependência. Portanto, ao mesmo tempo em que atende suas necessidades, a mãe violenta o bebê, ao dar-lhe aquilo que ele precisa.

IHU On-Line - Por que a considera constitutiva do sujeito?

Rosane de Abreu e Silva - Porque ela se dá, inevitavelmente, desde o início da vida do ser humano. Ao ser iludido e frustrado, continuamente, no desejo de completude e de ser um na fusão à mãe, ao descobrir que esta mãe não está apenas a serviço de suas necessidades pulsionais, pois ela também se ausenta, o ser humano inicia sua vida, submetido a uma violência que o constitui. E é justamente esta violência fundamental que introduz a noção de exterioridade, indispensável para o reconhecimento do outro, da concepção do objeto separado do sujeito. Este outro exterior, fonte de satisfação das necessidades, quebra o sentimento de unicidade, necessário para o advir do sujeito.

Freud também nos mostra que a violência, enquanto fundadora da civilização, é determinante da subjetividade. Suas reflexões sobre o Supereu se estendem a um Supereu coletivo construído em torno da morte do pai da horda em Totem e tabu (1912) ou na de Moisés (1939) pelo povo hebreu. O amor reaparece com o remorso em relação ao crime e torna-se o motor da constituição do Supereu pela identificação ao pai morto, encarregado de punir este ato e de impedir seu retorno. É desta forma que o pai simbólico, aquele que podemos dizer que está morto, desde sempre, organiza o passado e o torna presente criando a lei universal e as leis que humanizam, mas que só podem se estabelecer ao preço de uma renúncia. O laço social nasce, então da morte do pai primitivo da horda selvagem e se sustenta, essencialmente, na separação deste drama fundador. 

IHU On-Line - E o que é a violência exacerbada? Por que esta seria uma violência inominável?

Rosane de Abreu e Silva - Poderíamos dizer que a violência exacerbada se caracteriza pelo excesso, com fins destrutivos, visando o aniquilamento do outro, a supressão ou subtração do objeto. Nesta experiência de excesso, o sujeito se encontra abandonado as suas próprias pulsões. Não se trata mais, então, da violência primária ou fundamental mas sim de um movimento contrário. É uma ação impulsiva sem saber o que faz retorno, portanto, não está articulada na linguagem. A violência exacerbada é o que silencia a dor que não encontrou na palavra o seu apaziguamento.
 
IHU On-Line - O que há por trás dessa violência exacerbada?

Rosane de Abreu e Silva - Penso que há uma inconsistência entre os limites do dentro e fora, da percepção do objeto, do reconhecimento do outro. Poderíamos inferir que violência exacerbada se dá na impossibilidade de assumir a violência fundamental, uma vez que é a negação da presença do outro. E, quanto mais o sujeito nega a presença do outro, mais se vê abandonado aos seus próprios impulsos. A aniquilação, a destruição ou a subtração torna-se aí necessária para a afirmação da existência do sujeito que se torna ameaçada, uma vez que o limite entre sujeito e objeto não encontra consistência.

IHU On-Line - Em que sentido o nascimento é uma espécie de violência?

Rosane de Abreu e Silva - O nascimento de todo o sujeito implica em uma perda da estabilidade, perda da unicidade que será reiterada nas sequentes desilusões de fusão com o Outro materno. O ser humano vem ao mundo em uma situação de desamparo. O nascimento implica em uma primeira ruptura, a separação mãe-bebê. É importante observar que aí se dá uma perda não só para o pequeno ser humano, mas também para a mãe que deve renunciar ao seu bebê como objeto de sua posse ou objeto de completude. A mãe deve dar o seu bebê como um objeto perdido, supondo nele um sujeito.

IHU On-Line - Como a delinquência juvenil está associada à violência?

Rosane de Abreu e Silva - Seria interessante, aqui, considerarmos a etimologia da palavra. O termo delinquente deriva-se da palavra em latim linquere ou relinquere, cuja significação seria deixar, abandonar, romper um laço, separar-se. O verbo linquere introduz a noção de movimento ou de uma atividade radical que poderia ser entendida como atividade da pulsão, ao mesmo tempo em que expressa uma forma de abandonar, de renunciar e ultrapassar uma forma de ligação. Porém, a composição da palavra delinquente se produz pela inserção do prefixo “de”, o qual implica em dois sentidos ao mesmo tempo: a intensificação da ação podendo introduzir a ideia de uma passagem transgressiva pelo excesso, ou a transformação em ação contrária (Kinable, 1999). Neste caso, o delinquere corresponderia a uma forma de demonstrar a impossibilidade de “romper”, “separar-se”.

Encontramos, então, na própria etimologia da palavra, a ideia de excesso, de exacerbação, revelando a dificuldade de renunciar, dificuldade de separação. Não teríamos aqui alguma intersecção com a questão da violência exacerbada? Com a dificuldade posta no que a violência primária impõe ao sujeito?

IHU On-Line - Poderia ser estabelecida uma relação entre essa violência juvenil e o declínio da autoridade paterna na pós-modernidade? Por quê?

Rosane de Abreu e Silva - Sem dúvida, existe uma relação entre a violência juvenil e o declínio da função paterna. Porém, não é mais suficiente fazermos esta relação para pensarmos sobre a violência juvenil. O declínio da função paterna é uma teoria que não dá mais conta da questão da delinquência. É importante ressaltar que a função paterna se introduz, em primeira instância, no discurso materno. A mãe, através do seu discurso, é o agente introdutor da dimensão paterna, como terceiro separador, sustentando o lugar imaginário do pai, condição essencial para que a metáfora paterna funcione. É preciso ter uma certa prudência, ao fazer constatações generalizadas, uma vez que precisamos tratar cada caso em sua singularidade. Mas creio que algumas observações são inevitáveis. Na minha experiência de trabalho com adolescentes delinquentes, percebo que, com frequência, o discurso materno desqualifica a função paterna. Costumo dizer que estes jovens estão encarcerados no continente materno, o que já é uma violência imposta ao sujeito, uma vez que é a função paterna que possibilita a saída deste continente, portanto, é libertadora. Da mesma forma, a função paterna abre as vias para o sujeito do desejo, o que implica na renúncia de ser o objeto de desejo materno. Renúncia que deve ser operada tanto pela mãe quanto pela criança. O que pode estar contribuindo, como fator agravante, é que no discurso da pós-modernidade encontramos um grande estímulo ao ideal de completude, investido, por sua vez, em objetos de realidade. A pós-modernidade se conduz no discurso do ideal de completude, na supressão da falta, reenviando, então, ao continente materno.

IHU On-Line - Que relação você traçaria entre desejo e violência e entre a constituição do sujeito, a formação do objeto, e a passagem na criança da necessidade à demanda, e da demanda ao desejo?

Rosane de Abreu e Silva - Traria aqui, como exemplo, o que os jovens inseridos na questão da delinquência nos fazem escutar quando justificam sua transgressão ou violência. Há, constantemente, a demanda de um outro, que o impulsionou a esta prática. Então, que demanda é esta que ele anuncia? De que outro ele nos fala? Não há, neste ponto, reconhecimento de um outro, mas sim a presença de um grande Outro de uma suposta demanda. Demanda de suprimir o objeto, seja pelo aniquilamento ou pela subtração. Cumpre-se então a demanda de fusionar com o objeto primário. É o que parece se colocar em cena nesta questão. Enquanto submetido a esta suposta demanda, não encontramos aí a possibilidade de enunciação para o sujeito do desejo.

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