Edição 296 | 08 Junho 2009

A exacerbação como traço fundamental de Dostoiévski

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Márcia Junges

Obra do autor russo tem a exacerbação como marca da estilização, pontua a crítica literária Aurora Fornoni Bernardini. Análises psicológicas e a busca pela essência do catolicismo fazem parte da fase madura de seus escritos

“Quase toda a sua narrativa é exacerbada, ao contrário de Tchékhov, que começa e termina em pianíssimo”, define a crítica literária Aurora Fornoni Bernardini na entrevista a seguir, concedida com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, analisando a obra de Fiódor Dostoiévski. Os irmãos Karamázov é um clássico que continua atual, com um desfecho alvissareiro, um verdadeiro “hino à irmanação universal, antitético ao final de Os demônios, que é uma diatribe contra a ‘desirmanação’ universal, hipostasiada por Dostoiévski em certos ramos do populismo russo”. No discurso O grande inquisidor, capítulo famigerado dos Karamázov, assim como nas falas do Príncipe Michkin, de O Idiota, a religião é tema recorrente, e demonstra a busca de Dostoiévski pela essência do catolicismo em suas obras da maturidade.

Bernardini possui, pela Universidade de São Paulo (USP), graduação em Letras - Língua e Literatura Inglesa, mestrado em Letras - Língua e Literatura Italiana, doutorado em Literatura Brasileira e livre-docência em Literatura Russa. Atualmente, é professora da USP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura comparada, literatura russa, literatura italiana, teoria literária, teoria da narrativa e tradução literária. Traduziu, com Haroldo de Campos, poemas de Giuseppe Ungaretti em Daquela estrela à outra (São Paulo: Ateliê, 2003) e de Marina Tsvetáeiva em Indícios flutuantes (São Paulo: Martins Fontes, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Poderia explicar por que afirma que Dostoiévski  busca um resgate da essência do catolicismo em seus romances da maturidade?

Aurora Bernardini - Sempre insisto com meus alunos para que privilegiem as citações dos textos do autor cuja obra estão analisando. A citação de um trecho, em tradução fiel, direta do original, é a garantia que se pode dar de não se estar desvirtuando o que o autor escreveu.

Mesmo que as interpretações variem – sabe-se, uma obra artística está aberta a muitas interpretações (embora não a todas, conforme também ensina Umberto Eco  em Interpretação e superinterpretação) – mesmo que as interpretações variem, o leitor sempre terá o texto original para checar a sua própria (interpretação).

Ao se tratar de um romance, sabe-se que a voz do narrador pode não coincidir com a voz do autor, ainda mais se o autor for Dostoiévski. Neste caso, conforme mostrou Mikhail Bakhtin em seu clássico Problemas da poética de Dostoiévski, não apenas há diferentes vozes se orquestrando (e às vezes orquestrando diferentes opiniões sobre um mesmo fato), mas nenhuma se sobrepõe à outra – daí o termo “polifonia”.

Claro está que, em trabalhos acadêmicos de fôlego [rigorosos e exaustivos], autores como o russo Leonid Grossman ou mesmo o americano Joseph Frank , comparando as diferentes obras ficcionais do autor com seus diários e seus artigos, podem chegar a discernir a “voz do autor” sobre determinado assunto.

Obviamente, o que cabe aqui, num espaço reduzido, para responder sobre as críticas ao catolicismo e ao regate de sua essência, é remeter, entre outras, à leitura da parábola de O grande inquisidor - um capítulo de Os irmãos Karamázov - e às críticas do príncipe Michkin em O idiota (ambos os livros em tradução direta de Paulo Bezerra ). Aqui vai um extrato famoso da intervenção do príncipe:

...O Catolicismo é o mesmo que uma fé não cristã! – acrescentou de repente [o príncipe], com os olhos brilhando, olhando à sua frente e ao mesmo tempo correndo a vista por todos.
-- Ora, isso é demais – proferiu o velhote e olhou surpreso para Ivan Fiódorovitch.
-- Então como é que o Catolicismo é uma fé não cristã?— virou-se na cadeira Ivan Petróvitch. – Então, que fé é?
-- Uma fé não cristã, em primeiro lugar – tornou a falar o príncipe com uma inquietação extraordinária e com uma nitidez fora da medida. – Isso em primeiro lugar; em segundo, o Catolicismo romano é até pior do que o próprio ateísmo, é essa a minha opinião! Sim! É essa a minha opinião! O ateísmo também prega o nada, mas o Catolicismo vai além: prega um Cristo deformado, que ele mesmo denegriu e profanou, um Cristo oposto! Ele prega o anticristo, eu lhe juro, lhe asseguro! Esta é uma convicção minha e antiga, e ela me atormentou... O Catolicismo romano acredita que sem um poder estatal mundial a Igreja não se sustenta na Terra e grita: “Non possumus!” A meu ver, o Catolicismo romano não é nem uma fé mas, terminantemente, uma continuação do Império Romano do Ocidente, e nele tudo está subordinado a esse pensamento, a começar pela fé. O papa apoderou-se da Terra, do trono terrestre e pegou a espada; desde então não tem feito outra coisa, só que à espada acrescentou a mentira, a esperteza, o embuste, o fanatismo, a superstição, o crime, brincou com os próprios santos, com os sentimentos verdadeiros, simples e fervorosos do povo, trocou tudo, tudo por dinheiro, pelo vil e poderoso poder terrestre. Isso não é uma doutrina anticristã?! Como o ateísmo não iria descender deles? O ateísmo derivou deles, do próprio Catolicismo romano! (...)
-- O senhor e-xa-gera muito – arrastou Ivan Petróvitch com um certo tédio e até como que meio envergonhado por algo – na Igreja de lá também há representantes dignos de qualquer respeito e be-ne-méritos...
--Eu nunca falei de representantes isolados da Igreja. Estou falando do Catolicismo romano em sua essência, estou falando de Roma. Por acaso a Igreja pode desaparecer totalmente? Eu nunca disse isso!
-- Concordo, mas tudo isso é sabido e inclusive – desnecessário e... pertence à teologia.
-- Oh, não, oh, não! Não só à teologia, eu lhe asseguro, lhe asseguro que não! Isto nos afeta muito mais de perto do que o senhor imagina. Todo o nosso equívoco está aí, em ainda não conseguirmos perceber que essa questão não é só e exclusivamente teológica! Porque o socialismo é criação do Catolicismo e da essência católica! Ele, como seu irmão o ateísmo, também foi gerado pelo desespero, em contraposição ao Catolicismo no sentido moral, para substituir o poder moral perdido da religião, para saciar a sede espiritual da humanidade sequiosa e salvá-la não por intermédio de Cristo, mas igualmente da violência! (...)

O texto fala por si. Lembre-se, entretanto, que esta é uma fala do príncipe Michkin, o “Idiota” que dá o título ao livro, e que tem elementos de Dom Quixote  e de Cristo, segundo a crítica dostoievskiana devidamente documentada. Ou seja, autorizadamente (pois assim decidiu o autor), é a fala de um idiota. No entanto é indispensável saber que o termo “iuródivyi”, com o qual é designado esse tipo especial de idiota, na Rússia também implica “clarividência”. Conclusão: será o príncipe Michkin, em alguma instância, o porta-voz de Dostoiévski?  Será a sua voz a de um mentecapto ou a de um clarividente? Qualquer que seja a interpretação, a ambiguidade persiste. E é importante que persista, pois ela e as variações que ela implica é uma das “ façanhas” da literatura e o que, segundo Richard Rorty  (Filosofia como Política Cultural), torna a leitura de obras literárias tão importante, hoje em dia.

IHU On-Line - Ter percebido essa mistura de idiota e vidente seria uma preempção de Dostoiévski às carências espirituais que até hoje se manifestam na sociedade?

Aurora Bernardini - Quanto às carências espirituais que se manifestam na sociedade (até hoje) e quanto à subsequente importância de Dostoiévski no contexto da literatura russa e mundial, a resposta já está nas próprias perguntas. Caberia, numa análise mais extensa, discutir a acepção de termos como “alma”, “ espírito”, “ religião”, “ religiosidade”, “ fé”, “crença”, “cristianismo” , “paganismo” , “socialismo”, “socialismo utópico” , “populismo”, “ortodoxia” que, quando referentes a Dostoiévski e/ou à sua obra, adquirem traços muito específicos que não podem ser deixados de lado. De uma maneira geral, lê-se muito Dostoiévski, hoje em dia, sim, inclusive (quando não principalmente) para tentar encontrar alguma possibilidade de resposta às inquietações espirituais (cuidado: espiritual não é sinônimo de religioso) que nos assolam.

IHU On-Line - Em que consistiu a polêmica entre Brodski e Kundera  sobre Dostoiévski?

Aurora Bernardini - Para a discussão entre Bródski e Kundera sobre Dostoiévski, leia-se o suplemento Cultura de O Estado de São Paulo de 09-06-85. Em 17-02-85, (veja-se no Google a pesquisa avançada Bródski /Kundera), ao An introduction to a variation (ensaio para The Book Review do tcheco Milan Kundera) o russo Joseph Brodsky responde com outro ensaio: “Why Milan Kundera is Wrong about Dostoyevsky”, que deveria ser lido no original como exemplo raro de ironia e extrema acuidade. Só para adiantar, e com isso responder à pergunta, elenco aqui cronologicamente os pontos principais:

1. Bródski começa colocando a estética fora da dependência direta da história e fora da subordinação a uma ideologia: uma estética individual brota de uma série de impressões que conformam o instinto do artista, e tem sua própria dinâmica autogeradora. É da estética que surge a ética e o senso da história, e não o contrário. A arte não pode ser um instrumento da sensibilidade ou da exigência do consumo: só assim ela poderá ser uma contribuição original para o gênero humano.

2. Kundera, sob o impacto de 1968 em sua pátria, generaliza a cultura que os soldados representam (no caso, a cultura russo-soviética representada pelos tanques invasores – mas, diz Bródski “soldados nunca representam cultura, tanto menos literatura – eles carregam fuzis, não livros”) e procura alguém em quem pôr a culpa, num universo que ele divide rigidamente em ocidental/oriental.

3. Seu dedo recai sobre Dostoiévski, a quem acusa de criar um universo sobrecarregado de gestos, de sentimentalidade agressiva: um universo em que tudo se transforma em sentimento (implicando que os tanques seriam a remota consequência de um sentir (oriental) que suplanta a razão (ocidental)).

4. Bródski responde que não só não foram os sentimentos (o amor, por exemplo) que moveram os tanques, mas a assim chamada “necessidade histórica”, conceito oriundo do ocidente, mas que na obra do autor de Os demônios (libelo profeticamente anti-soviético), os sentimentos são reações a pensamentos expressos, em geral pensamentos correntes na civilização ocidental.

5. Entre outras, uma das conclusões de Bródski é a seguinte: “Se a literatura tem uma função social, quem sabe seja a de mostrar ao homem seus parâmetros otimais, seu máximo espiritual. Nesse sentido, quem sabe o homem metafísico dos romances  de Dostoiévski  tenha mais valor do que o racionalista ferido do senhor Kundera, embora moderno e embora comum”.

IHU On-Line - Como a exacerbação marca Crime e castigo e O idiota? Qual é a diferença dessa exacerbação nos dois romances?

Aurora Bernardini - A exacerbação é a marca da estilização em Dostoiévski. Quase toda a sua narrativa é exacerbada, ao contrário de Tchékhov, que começa e termina em pianíssimo.

IHU On-Line - Como a falsa execução seguida da deportação para a Sibéria refletiu-se nos livros de Dostoiévski?

Aurora Bernardini - A comutação da pena de morte em trabalhos forçados repercutiu muito na conduta de Dostoiévski homem e escritor. Em particular, de apologista do “socialismo utópico” e crítico do regime czarista, ele – impelido por algum tipo de gratidão - passou a acatar este último.

IHU On-Line - Como compreende o final alvissareiro de Os irmãos Karamázov, em contraposição ao final agourento de Os demônios, quando resta apenas a desolação?

Aurora Bernardini - O final de Os irmãos Karamázov é um hino à irmanação universal, antitético ao final de Os demônios, que é uma diatribe contra a “desirmanação” universal, hipostasiada por Dostoiévski em certos ramos do populismo russo.

Leia mais...

>> Confira outra entrevista concedida por Aurora Bernardini:

* Um poeta revolucionário nas distorções das regras da gramática e da sintaxe. IHU On-Line número 282, de 17-11-2008, Gerard Manley Hopkins: poeta e místico. Do cotidiano imediato ao plano cósmico.

Baú da IHU On-Line

* Fiódor Dostoiévski: pelos subterrâneos do ser humano. Edição nº 195, de 11-09-2006.  

* Polifonia atual: 130 anos de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Entrevista com Chico Lopes, Edição nº 288, de 06-04-2009.

* Dostoievski chorou com Hegel. Entrevista com Lázló Földényi, Edição nº 226, de 02-07-2007.

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