Edição 295 | 01 Junho 2009

A Igreja deveria cogitar o retorno da ordenação das mulheres

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Márcia Junges

Gary Macy, teólogo norte-americano, analisa a ordenação feminina, que acontecia até o século XII. A combinação da introdução do celibato, a interpretação específica do direito romano e canônico e a leitura da Bíblia, que entendia as mulheres como inferiores, levaram a uma nova compreensão que tornou impossível considerá-las competentes para ocupar qualquer cargo

Até o século XII, as mulheres eram ordenadas em ritos específicos, sustenta o teólogo norte-americano Gary Macy, na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. De acordo com ele, “na protoigreja, as mulheres eram viúvas, virgens e diáconas. Na Igreja medieval, havia não apenas diáconas, mas também presbyterae (mulheres sacerdotes), episcopae (bispas) e abadessas. Os termos presbyterae e episcopae são, às vezes, usados para designar as esposas de sacerdotes e bispos, mas não sempre”. A situação começou a mudar a partir do século XI, quando houve o movimento de reforma gregoriana. “Parte desse programa consistia na implantação do celibato, e alguns dos reformadores denegriam as mulheres para tornar o casamento menos atraente. Além disso, os canonistas optaram por seguir o direito romano mais antigo que negava às mulheres o direito de depor. Os teólogos também sustentaram que as mulheres não eram feitas à imagem de Deus”, explica Macy. A combinação do celibato, com uma “interpretação específica do direito romano e canônico e uma leitura da Bíblia que entendia as mulheres como inferiores, levou a uma nova compreensão das mulheres que tornou impossível que elas fossem consideradas competentes para ocupar qualquer cargo”. O teólogo teme que a compreensão de que as mulheres são inferiores continue a existir não apenas na Igreja, ainda que não oficialmente, mas na sociedade geral como um todo. “Parte de nossa cultura de violência contra as mulheres certamente deve vir dos séculos em que a inferioridade das mulheres era ensinada pela Igreja e implementada no direito canônico”, alfinetou. Contudo, ele se mostra otimista sobre o papel da mulher da Igreja. “Talvez a Igreja (e todos e todas nós somos a Igreja) devesse cogitar alguma forma de retorno à compreensão anterior de ordenação”.

Gary Macy, professor de teologia na universidade Santa Clara, confiada à Companhia de Jesus, nos Estados Unidos, é autor de The Hidden History of Women's Ordination (Oxford: Oxford University Press, 2007) e detentor da cátedra John Nobili SJ, de Teologia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as evidências que demonstram que a ordenação de mulheres até o século XII era um fato?

Gary Macy - As evidências mais óbvias vêm dos ritos de ordenação. Ritos de ordenação para diáconas estão contidos no pontifical do bispo Egbert, de York, do século VIII, no sacramentário gregoriano do século IX e no pontifical romano do século XII. Os papas Bento VIII em 1018, João XIX em 1025 e 1026, Bento IX em 1037, Leão IX em 1049 e Calisto II em 1123 fazem referência, todos eles, a mulheres ordenadas. Gilbert, bispo de Limerick (cerca de 1070-1145), Thietmar, bispo de Merseburg (m. em 1018), e Atto, bispo de Vercelli (924-961), também fazem referência a mulheres ordenadas.

É importante dar-se conta, entretanto, de que a compreensão de ordenação até o final do século XII e início do século XIII era bem diferente do que seria em séculos posteriores. No primeiro milênio do cristianismo, as palavras ordo, ordinatio e ordinare tinham um sentido muitíssimo diferente do que passariam a ter em séculos posteriores. Os primeiros cristãos se apropriaram da linguagem da “ordenação” usada em suas comunidades tomando-a de seu uso cotidiano. Este uso “cotidiano” dos termos ordo e ordinare teve continuidade ao longo da Idade Média, como mostrará uma consulta mesmo superficial a qualquer dicionário de latim medieval. Ordo podia designar simplesmente o estado de vida de uma pessoa, e ordinare ainda era um termo usado em sua acepção original de proporcionar ordem num sentido político ou metafórico. De fato, ordinare em seu sentido básico indica simplesmente algum método de organização. Colocar seus livros em ordem alfabética é, em latim, ordená-los, e o ato de fazer isto é uma ordenação. Por isso, ordines (que é o plural de ordo) pode designar as tarefas que são feitas num certo grupo ou sociedade. É claro que dentro da comunidade cristã havia diferentes tarefas a serem feitas, e essas tarefas eram chamadas, com naturalidade, de ordines, e o processo pelo qual uma pessoa era escolhida para cumprir tal tarefa era chamado de ordinatio.

Citando o cardeal Yves Congar : “A ordenação compreendia, ao mesmo tempo, a eleição como seu ponto de partida e a consagração como seu término. Mas, em vez de significar, como aconteceu a partir do início do século XII, a cerimônia em que um indivíduo recebia um poder que a partir daí jamais poderia ser perdido, os termos ordinare, ordinari, ordinatio significavam o fato de ser designado e consagrado para assumir um certo lugar, ou melhor, uma certa função, um ordo, na comunidade e a serviço dela”. A ordenação não dava a uma pessoa, por exemplo, o poder irrevogável e portável de consagrar o pão e o vinho, ou de dirigir a liturgia; antes, uma comunidade específica encarregava uma pessoa de desempenhar um papel de liderança dentro daquela comunidade (e só dentro dela), e ela dirigia a liturgia por causa do papel de liderança que desempenhava dentro da comunidade.

Os termos ordinatio e ordinare, nessa acepção, eram usados para descrever não só a cerimônia e/ou instalação de bispos, sacerdotes, diáconos e subdiáconos, mas também de porteiros, leitores, exorcistas, acólitos, cônegos, abades, abadessas, reis, rainhas e imperatrizes. Esses termos também podiam ser aplicados à consagração ou ao estabelecimento de uma ordem religiosa ou de um monastério ou até a admissão à vida religiosa. Assim, o termo para designar a escolha de um abade ou uma abadessa na Regra de São Bento é “ordenação”, e ritos de ordenação para abadessas aparecem em vários livros litúrgicos. Incluí todos os textos dos ritos de ordenação para diáconas e abadessas em meu livro.

IHU On-Line - Quais eram os cargos eclesiásticos ocupados pelas mulheres até esse período?

Gary Macy - Na protoigreja, as mulheres eram viúvas, virgens e diáconas. Na Igreja medieval, havia não apenas diáconas, mas também presbyterae (mulheres sacerdotes), episcopae (bispas) e abadessas. Os termos presbyterae e episcopae são, às vezes, usados para designar as esposas de sacerdotes e bispos, mas não sempre. Não existem ritos para esses ordines, mas há uma descrição da ordenação de Brígida da Irlanda na descrição da vida dessa santa que data do século IX. É difícil saber com exatidão o que essas mulheres faziam. Há registros de algumas mulheres que serviam no altar, bem como de liturgias que são missas eucarísticas a serem realizadas por mulheres e datam dos séculos XI e XII. Nessa compreensão mais antiga de ordenação, nem todas as funções sacramentais estavam reservadas ao sacerdócio. As abadessas, por exemplo, ouviam confissões e pregavam. Assim, é possível que mulheres servissem no altar como abadessas, por exemplo. Elas também podem ter servido junto com seus maridos no ministério sacerdotal. As evidências disso são escassas, mas existem.

IHU On-Line - Quais são os fundamentos políticos para que a Igreja mudasse de atitude quanto à ordenação feminina?

Gary Macy - É difícil saber com certeza, mas a mudança ocorreu como parte do movimento de reforma do século XI, geralmente conhecido como reforma gregoriana. Parte desse programa consistia na implantação do celibato, e alguns dos reformadores denegriam as mulheres para tornar o casamento menos atraente. Além disso, os canonistas optaram por seguir o direito romano mais antigo que negava às mulheres o direito de depor. Os teólogos também sustentaram que as mulheres não eram feitas à imagem de Deus. Tomás de Aquino,  por exemplo, concordava que, em algum sentido, a imagem de Deus se encontra tanto no homem quanto na mulher, mas “num sentido secundário se encontra no homem a imagem de Deus que não se encontra na mulher, pois o homem é a fonte e o fim da mulher, assim como Deus é a fonte e o fim de todas as criaturas”. Pedro de Tarantase, discípulo de São Tomás e futuro papa Inocêncio V, repetiu o ensinamento de seu mestre: “O homem está situado mais perto de Deus, pois o homem é a imagem e glória de Deus; a mulher, por outro lado, é a imagem e glória do homem. Portanto, as mulheres deveriam ser reconduzidas a Deus através dos homens, e não o contrário”.

Eu gostaria de observar que essa compreensão não era apenas teórica. Com base na compreensão de que as mulheres eram inferiores aos homens, os homens também tinham a responsabilidade de disciplinar as mulheres. A importante coletânea de leis do século XII geralmente conhecida como Decretum formaria uma grande parte do direito canônico até um novo código de direito canônico ser publicado em 1917. Ela contém uma lei estranha do Concílio de Toledo, realizado no ano 400: “Se suas esposas pecarem, é, além disso, permitido aos clérigos mantê-las presas sem a severidade da morte e obrigá-las e jejuar, mas não enfraquecê-las até morrerem”. Entedia-se que essa lei se estendia a todos os maridos. O canonista Johannes Teutonicus escreveu um famoso comentário que se tornou o texto padrão para o estudo do direito canônico durante séculos. Seu comentário sobre o direito dos clérigos de punirem suas esposas simplesmente repetia essa opinião geral. “Afirma-se aqui que, se as esposas dos clérigos pecarem, eles não deveriam matá-las, e sim vigiá-las para que elas não tenham a oportunidade de pecar em alguma outra coisa, enfraquecendo-as por meio de surras e fome, mas não até a morte”. De acordo com Johannes Teutonicus, esta opinião se aplicava a todos os maridos e esposas.

Assim, parece que uma combinação da introdução do celibato, de uma interpretação específica do direito romano e canônico e uma leitura da Bíblia que entendia as mulheres como inferiores, levou a uma nova compreensão das mulheres que tornou impossível que elas fossem consideradas competentes para ocupar qualquer cargo. Tomás de Aquino é bem explícito quanto a isto: “A razão pela qual [as mulheres] estão sujeitas e não no comando é que elas são deficientes em termos de razão, a qual é extremamente necessária para presidir. E por esta razão [Aristóteles] disse em sua obra Política (livro 4, cap. 11) que ‘existe corrupção do governo quando este cabe às mulheres’”. É claro que a introdução de Aristóteles também teve certa importância, como demonstrarei mais adiante. Entretanto, nada disso era inevitável. O celibato pode ter, e efetivamente tem, uma abordagem sadia das mulheres. O direito romano posterior deu muitos direitos às mulheres. A Escritura não descreve as mulheres como inferiores. Por razões que ainda não entendo plenamente, os pensadores eclesiásticos daqueles séculos optaram por crer o pior a respeito das mulheres.

IHU On-Line - De que forma a filosofia de Aristóteles, que passou a vigorar na Igreja do século XII em diante, influenciou na misoginia que mantém a mulher longe do sacerdócio?

Gary Macy - No cerne do conceito de mulher da Igreja medieval tardia, se encontrava a firme crença de que as mulheres eram, por natureza, inferiores aos homens, e esta compreensão estava parcialmente baseada na filosofia de Aristóteles. De acordo com Aristóteles, os homens são racionais, e as mulheres são emocionais. Os homens são frios, e as mulheres são quentes. Os homens são ativos, e as mulheres são passivas. As anotações de Tomás de Aquino para suas aulas sobre as cartas de São Paulo revelam seu uso de Aristóteles na compreensão das mulheres. De acordo com as anotações, “três coisas são apropriadas para as mulheres, a saber, silêncio, disciplina e subjugação, pois estas três coisas procedem de uma única razão, a saber, o defeito da razão nelas [...] já que é natural que o corpo seja dominado pela alma e a razão [domine] os poderes inferiores. E, por esta razão, como ensina [Aristóteles], sempre que quaisquer dois sejam mutuamente constituídos como alma para o corpo [...] a outra parte está sujeita à principal”. Logo, as mulheres estão para os homens, assim como o corpo está para a alma. As mulheres precisam ser dirigidas pelos homens assim como o corpo precisa ser controlado pela razão. Tomás de Aquino foi igualmente franco em relação à natureza das mulheres: “No tocante à sua natureza específica, a mulher é algo defeituoso e acidental”. Isto, naturalmente, é uma referência à crença de Aristóteles de que as mulheres são “homens bastardos ou deformados”, ou seja, a mulher resulta de uma recepção imperfeita do sêmen masculino no útero. Todas as mulheres são um erro que ocorre quando algo na natureza não dá certo durante a concepção.

Nessa compreensão, as mulheres eram, por natureza, inferiores aos homens simplesmente por serem mulheres. Nada que elas fizessem poderia corrigir esse defeito. As mentes das mulheres não eram capazes de controlar suas emoções e paixões, como o eram as dos homens. Não havia possibilidade de que as mulheres, como classe, estivessem intelectualmente à altura dos homens, como classe. Elas não tinham a força intelectual ou moral necessária. Por isso, as mulheres eram, como classe, incapazes de exercer papéis de liderança. Eu gostaria de salientar, entretanto, que o uso do conceito de Aristóteles a respeito das mulheres por parte dos pensadores medievais foi um ato consciente de seleção, assim como o foi a apropriação do direito romano. A filosofia de Aristóteles era suspeita e, inicialmente, foi proibida na Universidade de Paris. Até mesmo os teólogos que promoveram o uso de Aristóteles negavam certos ensinamentos dele, em particular sua crença de que o mundo era eterno. Os teólogos também poderiam ter rejeitado seu ensinamento sobre a inferioridade natural das mulheres. O fato de não terem feito isso foi uma opção.

IHU On-Line - Como compreender a concepção aristotélica de que a mulher é metafisicamente inferior ao homem? Essa ideia continua encontrando respaldo hoje na Igreja?

Gary Macy - Creio que respondi adequadamente a primeira parte desta pergunta na resposta acima. Quanto à segunda pergunta, temo que a compreensão de que as mulheres são inferiores continue a existir não só na Igreja, embora não oficialmente, mas também na sociedade ocidental de modo geral. Parte de nossa cultura de violência contra as mulheres certamente deve vir dos séculos em que a inferioridade das mulheres era ensinada pela Igreja e implementada no direito canônico.

IHU On-Line - Você é otimista em relação ao papel das mulheres na Igreja do século XXI? Por quê?

Gary Macy - Sou muito otimista em relação à Igreja em geral e ao papel das mulheres em particular. O Espírito está atuante na Igreja hoje, particularmente entre os leigos e, em especial, entre as mulheres leigas. Nos Estados Unidos, ao menos, o número de mulheres engajadas no ministério é impressionante. De acordo com o Instituto Nacional para a Renovação do Sacerdócio, as mulheres representam 25% de todos secretários [chancellor, no original, pessoa responsável pela documentação] diocesanos, 80% de todos os ministros eclesiais leigos em nível de paróquia, 40% de todas as pessoas responsáveis pelo planejamento litúrgico nas paróquias, 65% de todos os ministros responsáveis pela música nas paróquias, 88% de todos os educadores religiosos em nível de paróquia, 54% de todos os diretores do Rito de Iniciação Cristã de Adultos nas paróquias e 63% de todos os participantes de programas de formação para o ministério eclesial leigo. Em 2005, as mulheres leigas constituíam 64% de todos os ministros leigos, enquanto que as religiosas representavam mais 16%. Isto significa que, em 2005, as mulheres realizavam 80% de todos os ministérios. De fato, as pessoas leigas já assumiram a direção da Igreja Católica nos Estados Unidos e continuarão fazendo isso. Poucos desses líderes leigos e talvez a maioria dos bispos não se deram conta disso ou não aceitaram isso, mas a estrutura da Igreja mudou, provavelmente de maneira irreversível.

Talvez a Igreja (e todos e todas nós somos a Igreja) devesse cogitar alguma forma de retorno à compreensão anterior de ordenação. Então todos esses ministérios seriam considerados ordenados e o poder não precisaria estar concentrado num número cada vez menor de sacerdotes e bispos. Certamente, estamos passando por uma escassez de sacerdotes em nível mundial. De acordo com um anúncio feito pelo Vaticano em 2004, em 1961 havia 404.082 sacerdotes no mundo inteiro, e em 2001 havia 405.067. Colocando esses números na devida perspectiva, o cardeal Darío Castrillón Hoyos,  prefeito da Congregação para o Clero, disse que, embora o número de sacerdotes tenha permanecido quase inalterado nos últimos 43 anos, a população mundial quase dobrou. Bem, eu sou historiador, e não especialista na Igreja atual; por isto, isso é apenas uma sugestão. Parece-me, entretanto, que a Igreja está mudando de algumas formas muito empolgantes. Confio que o Espírito sabe o que está fazendo.

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