Edição 295 | 01 Junho 2009

O consumidor é um novo ator político ou o consumidor?

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Graziela Wolfart

Para Isleide Arruda, uma nova economia, mais condizente com o consumo ético, seria aquela na qual o progresso econômico não teria predominância

Ao discutirmos a dicotomia existente entre a economia clássica e a proposta de sustentabilidade do planeta, é inevitável não tocar no tema do consumo ético. E a professora Isleide Arruda, da Fundação Getulio Vargas, concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, a entrevista a seguir aceitando o nosso convite de tentar definir o que podemos entender por consumo ético. Segunda ela, “significa um ato de compra (ou não compra) no qual estão implícitas as preocupações do processo de consumir com os impactos que isso possa causar ao ambiente econômico, social ou cultural”. Ou seja, continua ela, “ele está circunscrito ao fato de que o consumidor pensa e se preocupa com os efeitos que uma escolha de compra gera aos outros e ao mundo externo como, por exemplo, com o tratamento despendido aos trabalhadores envolvidos na produção de um determinado produto, ou com os impactos ambientais que certos produtos causam”. No entanto, alerta a professora, “ele só se torna um consumo ético, no sentido político, na medida em que se condensa em um coletivo”.

Isleide Arruda confessa que costuma pensar que “talvez estejamos vivendo três grandes tipos de esgotamento que, juntos, poderiam provocar um novo estado de coisas: o esgotamento dos recursos naturais; o esgotamento do mercado de produção e consumo de massas; e o esgotamento de um certo imaginário social que se construiu em torno da ideia de que consumo seria sinônimo de felicidade”.

Professora da Fundação Getulio Vargas-SP, em cursos de graduação e pós-graduação, Isleide Arruda Fontenelle é integrante do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração. Seus interesses de pesquisa estão relacionados às transformações sociais e impactos subjetivos, com foco especial para questões voltadas à cultura de consumo e fenômenos comportamentais do capitalismo contemporâneo. É graduada em Psicologia, com mestrado em Sociologia, pela Universidade Federal do Ceará, doutorado em Sociologia, pela Universidade de São Paulo, e pós-doutorado em Psicologia Social, pela PUC-SP. É autora de O nome da marca: Mcdonald's, fetichismo e cultura descartável (2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006) e Pós-modernidade: trabalho e consumo (São Paulo: Cengage Learning, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que sentido o consumo ético sugere a construção de um novo fazer político?

Isleide Arruda - Na medida em que sugere a participação do consumidor como um novo ator político e que questiona os pilares da sociedade de consumo construída ao longo do século XX. O consumo ético está muito ligado à ideia de movimento, de ativismo dos consumidores. Significa um ato de compra (ou não-compra), no qual estão implícitas as preocupações do processo de consumir com os impactos que isso possa causar ao ambiente econômico, social ou cultural. Ou seja, ele está circunscrito ao fato de que o consumidor pensa e se preocupa com os efeitos que uma escolha de compra gera aos outros e ao mundo externo como, por exemplo, com o tratamento despendido aos trabalhadores envolvidos na produção de um determinado produto, ou com os impactos ambientais que certos produtos causam. Mas ele só se torna um consumo ético, no sentido político, na medida em que se condensa em um coletivo. Na literatura internacional, esse termo não é novo, remontando ao século XIX, através de histórias de boicotes e de formação de cooperativas de compras, como as cooperativas inglesas emergentes no final do século XIX, formadas em reação aos preços excessivos e à má qualidade dos produtos. Mas hoje o termo ganha proeminência na medida em que os movimentos de consumidores têm se envolvido com problemas complexos como a sustentabilidade do planeta, o comércio justo, a solidariedade social, e os direitos do consumidor enquanto direitos de cidadania.

IHU On-Line - Como seria uma nova economia que fosse mais condizente com o consumo ético?

Isleide Arruda - Uma economia na qual o progresso econômico não teria predominância, daí o consumo ético levantar a bandeira na defesa de questões relacionadas ao meio ambiente, ao comércio justo, enfim, a um novo modelo de desenvolvimento baseado na ideia da sustentabilidade em seu sentido mais amplo. Trata-se de uma mudança do paradigma produtivo e de questionamento da sociedade de consumo atual, na qual o modelo de consumo, baseado no excesso e na descartabilidade, acabou por condicionar todas as esferas da vida a essa lógica, à lógica do consumo.

IHU On-Line - O consumo ético tem real poder de transformação social ou o conceito acaba sendo absorvido pelo mercado? Qual o real poder de influência do movimento coletivo pelo consumo ético em nossa sociedade?

Isleide Arruda - As duas possibilidades estão presentes. Há duas vertentes na literatura internacional: a primeira que descreve os consumidores como a nova força capaz de enfrentar as grandes corporações em face do declínio do poder e a da influência dos sindicatos trabalhistas; e que eles, de fato, estão causando impactos profundos nos projetos das grandes corporações. Um dos partidários dessa corrente é o sociólogo inglês Anthony Giddens,  que aposta na possibilidade efetiva de ação dos consumidores já que, tendo em vista que muitos dos riscos que nós estamos enfrentando são decorrentes das nossas próprias ações humanas na construção das sociedades de consumo, tais ações passaram a ser questionadas e politizadas. Sob essa perspectiva, o “consumo ético” estaria provocando uma mudança na atual sociedade de consumo de massas e formatando uma nova “cultura de consumo”.

Por outro lado, há aqueles que acreditam que esses movimentos têm sido absorvidos pelo mercado, na medida em que o mercado de consumo de massas também se vê diante do esgotamento desse modelo. Para esses autores, o movimento pelo consumo ético tem oferecido insights importantes para o mercado se reinventar, tal qual ocorreu com os movimentos contraculturais na década de 1960. Na perspectiva do jornalista Thomas Frank,  autor do livro The conquest of cool, os movimentos contraculturais dos anos 1960 injetaram um novo alento para o mercado e para a renovação e perpetuação da sociedade de consumo. Nesse início de século, com a nova etapa pelo “consumo ético”, o mercado também teria encontrado sua nova face. De fato, quando nos deparamos com o imenso “mercado verde” ou com o “mercado da cidadania”, relacionados, respectivamente, a atitudes politicamente corretas e a ações de filantropia e de responsabilidade social, somos tentados a concordar com Frank e a admitir que esses movimentos de consumidores funcionariam como uma espécie de vírus do sistema, que, à semelhança de Neo, no filme Matrix, seriam produzidos para indicar as falhas e as possibilidades de correção do modelo. Ou seja: poderiam até causar mudanças no modelo, mas não alterariam as relações de força, comandadas, hoje, pelo mercado, e nem empreenderiam transformações sociais mais amplas. 

IHU On-Line - O sujeito contemporâneo tem real autonomia para assumir uma postura mais ética em relação ao consumo, ou podemos identificar uma dificuldade ou até impossibilidade de cultura crítica?

Isleide Arruda - Essa pergunta é bem complexa e eu não tenho uma resposta bem resolvida para ela. É nisso que tenho investido minhas pesquisas atualmente. Tenho tentado entender a construção deste “consumidor responsável” (cujos termos variam também para consciente, verde, sustentável, ético, crítico, ativista etc.) no interior de uma sociedade de consumo que forjou uma subjetividade à sua imagem e semelhança. Então, como seria possível, dessa sociedade, emergir o pensamento crítico, no sentido da transformação desse modelo? Foi esse o impasse que os autores da Escola de Frankfurt  (notadamente Theodor Adorno ) se depararam quando passaram a pesquisar essas questões. Ou seja: há ou não há esse espaço de autonomia para o pensamento crítico? Se insistirmos em uma vertente psicanalítica, que aposta na “liberdade negativa do sujeito”, ou seja, em um espaço de manobra no qual o sujeito, de fato, pode questionar e se rebelar, podemos afirmar que sim, esse espaço de real autonomia existe em potencial. Mas toda a questão é como esse potencial pode, de fato, se concretizar diante das condições socioculturais postas atualmente, quando nos vemos diante de sujeitos esgotados psiquicamente.

IHU On-Line - A senhora acredita que os consumidores possuem força capaz de enfrentar as grandes corporações diante do declínio do poder e da influência dos sindicatos trabalhistas? Podem provocar impactos nos projetos das grandes corporações?

Isleide Arruda - A força que os consumidores descobriram ter diante das grandes corporações foi no sentido de perceberem que poderiam causar danos às suas imagens de marca. Mas o problema é que esses movimentos se tornaram tão imagéticos quanto as imagens que visavam destruir – tornaram-se parte da sociedade do espetáculo. Gostei muito da crítica e da proposição de Robert Reich  - autor do livro Supercapitalismo –, quando sugere que a real efetividade desses movimentos se daria se eles entendessem que o lugar possível de pressionar e, eventualmente, ganhar algumas batalhas, estaria na política, na formulação das políticas públicas, na busca por fazer valer certas leis. Daí porque Reich propõe que os cidadãos, em especial americanos e europeus – na medida em que vivem em áreas prósperas e importantes – ajam com mais vigor em busca da realização das leis vigentes em seus países, além de proporem a elaboração de leis mais eficazes na defesa do meio ambiente ou da justiça social.

IHU On-Line - Considerando que o “consumo ético” estaria provocando uma mudança na atual sociedade de consumo de massas e formatando uma nova “cultura de consumo”, como se caracteriza essa nova “cultura de consumo”?

Isleide Arruda - Não creio que esse novo modelo – essa possível nova cultura pós-consumista – possa vir a se concretizar mediante, apenas, o resultado de movimentos como o movimento pelo consumo ético. Assim como a cultura de consumo de massas foi formatada a partir da conjunção de diversos fatores – sociais, culturais, políticos –, o mesmo deve ocorrer para que um novo tipo de cultura pós-consumista possa surgir. Eu costumo pensar que, hoje, talvez estejamos vivendo três grandes tipos de esgotamento que, juntos, poderiam provocar um novo estado de coisas: o esgotamento dos recursos naturais; o esgotamento do mercado de produção e consumo de massas; e o esgotamento de um certo imaginário social que se construiu em torno da ideia de que consumo seria sinônimo de felicidade.

IHU On-Line - Que relações podem ser estabelecidas entre consumo ético e espaço público, principalmente pensando no processo de democratização da América Latina?

Isleide Arruda - Em primeiro lugar, é preciso entender que a temática do consumo sempre representou um objeto central de reflexão para a teoria crítica que, a partir dos escritos dos chamados autores frankfurtianos (Theodor Adorno e Max Horkheimer,  principalmente), compreendeu que as sociedades de consumo estariam gerando uma nova “cultura de massas” e produziu um amplo arcabouço teórico-crítico que demonstrou o lugar do consumo na sociedade contemporânea e de como, a partir do marketing e de seus principais mecanismos de persuasão (propaganda e publicidade), começou a se dar uma infiltração da esfera comercial na esfera pública, mediante uma forma de comunicação cada vez mais guiada pelo mercado. Tal fenômeno seria ainda mais forte nas sociedades latino-americanas, caracterizadas pela inexistência histórica de um espaço comunicativo semelhante ao contexto europeu, possibilitando, dessa forma, que os meios de comunicação de massa passassem a ser os mediadores sociais por excelência e estabelecessem um novo tipo de esfera pública “virtual”. Tal estado de coisas levou a uma interpretação central da teoria crítica, especialmente adorniana: a da perda da autonomia do espaço público e da atomização do indivíduo e sua transformação em consumidor de entretenimento.

Essa foi a posição predominante ao longo de quase todo o século XX. Foi apenas na década final do referido século, no prefácio da reedição alemã de 1990, do livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, que a teoria crítica foi revisitada por Jürgen Habermas,  um dos principais representantes contemporâneos da Escola da Frankfurt, o qual propõe a possibilidade de um espaço de manobra que havia sido totalmente fechado pelos frankfurtianos da primeira geração.

No Brasil, especificamente, esse debate foi retomado por alguns autores que buscaram relacionar sociedade civil, democracia e teoria crítica, presente no livro organizado por Leonardo Avritzer  (Sociedade civil e democratização, 1994). Nesse livro, os autores fazem uma bela revisão histórica sobre o desenvolvimento do conceito de espaço público, enfatizando as questões centrais que Habermas elaborou no seu prefácio, no qual sustenta o potencial público de crítica, a despeito da pressão da mídia. Segundo esses autores, Habermas recuperou a possibilidade de uma relação entre a teoria crítica e a teoria democrática que passou a demarcar uma nova abordagem sociológica sobre o processo de democratização na América Latina, que se consolidou ao longo dos anos 1990 e que redefiniu a noção de “espaço público” enquanto um “modelo discursivo”. Entretanto, os autores apontam para necessidades de correção do modelo discursivo habermasiano, propondo que nele coubesse a emergência dos new publics que seriam novos públicos e novos espaços de formações críticas de comunicação (subculturas, movimentos sociais alternativos etc.) que poderiam propor novos modos e estilos de vida que colocariam em xeque os padrões estabelecidos pelo mainstream comunicacional.

A questão que me ficou, entretanto, é se seria possível, a partir dessa definição dos new publics, identificar o movimento pelo consumo ético, tal qual ele vem sendo caracterizado nesse início de século - com sua agenda voltada para questões como comércio justo, direitos civis, solidariedade global etc. -, como um novo ator político, que pudesse recuperar a relação entre teórica crítica e teoria democrática. Há um silenciamento a esse respeito no campo da teoria crítica, pelo menos no Brasil. O avanço do conceito de espaço público, no interior da literatura sociológica ao longo dos anos 1990, indica um debate travado em torno da questão da representação e do conceito de democracia, ou seja, da relação entre política institucionalizada e “relação argumentativa crítica”, com a organização política no lugar da participação direta. É esse o centro do debate e é em torno dele que os denominados “novos movimentos sociais”, ou new publics, são chamados a participar.

Mas a aposta nos movimentos de consumidores como movimentos políticos capazes de fazerem parte do processo democrático na América Latina tem o seu representante no continente: o mexicano Néstor García Canclini,  autor do livro Consumidores e cidadãos.  Esse é um outro autor, no interior da literatura já citada em perguntas anteriores, que acredita em um novo modo de fazer política que envolve a participação do consumidor como um sujeito político.

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