Edição 294 | 25 Mai 2009

O banquete, ou a iniciação de Eros

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Jean-François Mattei | Tradução Benno Dischinger

Nesta edição, inauguramos uma nova editoria, batizada de Meu clássico. Através dela, damos espaço a especialistas nas mais variadas áreas do conhecimento para manifestarem a importância das obras de autores consagrados. Assim, em continuidade ao tema de capa da presente edição, que analisa o legado de Platão, publicamos o artigo que o filósofo francês Jean-François Mattéi escreveu, com exclusividade, a pedido da IHU On-Line. A obra analisada é O banquete

Nesta edição, inauguramos uma nova editoria, batizada de Meu clássico. Através dela, damos espaço a especialistas nas mais variadas áreas do conhecimento para manifestarem a importância das obras de autores consagrados. Assim, em continuidade ao tema de capa da presente edição, que analisa o legado de Platão, publicamos o artigo que o filósofo francês Jean-François Mattéi escreveu, com exclusividade, a pedido da IHU On-Line. A obra analisada é O banquete.

Mattéi é professor emérito da Universidade de Nice-Sophia Antipolis e do Instituto Universitário da França. Escreveu, entre outros, L’Étranger et le Simulacre. Essai sur la fondation de l’ontologie platonicienne (Paris: PUF,  1983), L’ordre du monde. Platon, Nietzsche, Heidegger (Paris: PUF, 1989) e Platon et le miroir du mythe. De l’Âge d’or à l’Atlantide (Paris: PUF, 1996). Em português, publicou A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno (São Paulo: Unesp, 2002).

Confira o artigo.

A teoria platônica do amor não nos conduz à pradaria do último Julgamento, nem à caverna obscura de A República, onde os heróis do passado se misturam às sombras do futuro, mas a um lugar sem pretensão cósmica, à morada ateniense de Agatão. Festeja-se aí, numa noite, o recente sucesso do dono da casa no concurso de tragédia. Todos os personagens presentes valem por dois: Fedro e Erixímaco, Pausânias e Agatão, Aristodemo, que não estava convidado ao serão em honra de Eros, e Pênia, que também não fora convidada ao banquete em honra de Afrodite, Eros e seu pai Poros, enfim Sócrates e Alcebíades, ou ainda Pênia e Diotima que, por sua vez, não fora convidada ao banquete de Agatão.

A estrutura deste diálogo, sem dúvida o mais complexo de todas as obras de Platão, é aquela de que fala Alcebíades a Sócrates; um encaixe de relatos e de personagens comparável às estátuas das Silenes, para os gregos, ou às bonecas russas para nós. O banquete é, com efeito, o relato de um relato, feito na estrada de Falera a Atenas por um discípulo de Sócrates, Apolodoro, ao seu amigo Glauco, sendo este relato transmitido pelo mesmo Apolodoro, alguns dias mais tarde, a vários de seus amigos que lho solicitaram. Ora, Apolodoro obtém, por sua vez, este relato de um personagem mais antigo, Aristodemo, que assistiu ao famoso banquete em honra de Eros, que dezesseis anos antes tivera lugar na casa de Agatão. Aristodemo era um homem pequeno, sempre de pés nus, que seguia Sócrates como sua sombra. Apolodoro controlou a exatidão das propostas de Aristodemo junto a Sócrates, de quem, três anos antes, ele se tornara o fiel discípulo.

Como se desenvolveu este banquete, do qual todo mundo ouviu falar, mas ninguém conhece as conversas exatas que houve? Certa tarde, Aristodemo encontrou por acaso Sócrates que, ao menos uma vez, se apresentou elegante e até calçou sandálias. Ele convidou sem mais Aristodemo a unir-se a ele, uma vez que seu amigo não fora convidado à casa do rico burguês que é Agatão. Esta primeira cena significa que Sócrates temia ir sozinho à casa de Agatão, onde todos os convidados são sofistas  ou amigos dos sofistas, e não filósofos. Mas, além da prudência de Sócrates, que, portanto, não irá sem ajuda ao campo do inimigo, a cena já anuncia o outro convidado-surpresa da noite. Pois Sócrates, no momento de falar, sendo ele o orador principal, deixa a palavra a uma mulher, a sacerdotisa Diotima de Mantinéia, que por certo não está presente ao banquete, mas de quem ele refere as palavras. E é esta mesma Diotima, que não fora convidada à casa de Agatão, que irá defender a teoria filosófica do amor contra as teorias sofistas e retóricas, apelando, por sua vez, a outra mulher, Pênia, a mãe de Eros, que, nos tempos antigos, não fora convidada ao banquete dos deuses em honra do nascimento da deusa do amor, Afrodite.

Teoria platônica do amor

Vê-se que este prólogo, no qual os relatos se encaixam em função dos personagens e de seus papéis, já anuncia, sob forma exterior breve, como colocação em cena, a teoria propriamente platônica do amor que Sócrates deixará Diotima expor. O diálogo que seguirá e que se desenrola durante toda a noite em casa de Agatão encontra-se composto de três partes distintas: na primeira, estão as teorias não filosóficas do amor dos cinco primeiros oradores, na ordem Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófano e Agatão (178 a – 197 e). Em seguida, a concepção socrática do amor, exposta pela sacerdotisa Diotima, que é o coração da obra (198 a – 212 c). Enfim, o elogio final de Sócrates por Alcibíades (212 c – 223 d). A primeira parte, com os cinco discursos preparatórios ao discurso de Diotima, é mais extensa que os dois discursos subsequentes, que são de uma extensão quase igual. Mas o conjunto do diálogo é equilibrado de uma parte e de outra da intervenção de Sócrates que, após haver questionado Agatão colocando-o em embaraço, ou seja, na aporia, deixa a palavra a Diotima que precisamente vai mostrar que Eros, a divindade do amor, nasceu do encontro de Pênia, a mulher miserável, mais também de Poros, o deus que se livra de todas as aporias, ou seja, de todas as dificuldades.

Se, para todos os oradores que precedem Sócrates, o amor se reduz à geração do semelhante pelo semelhante, a esterilidade de uma concepção que Aristófanes conduz ao extremo, com seus entes esféricos à procura da fusão perdida, é sublinhada por Diotima. O verdadeiro amor procura “gerar e educar na beleza”, de sorte que seu objeto é finalmente a imortalidade ou “a posse perpétua do bem” (207 a). Se o amor é “símbolo”, do grego symbolon, “reunião”, “ele não une dois entes semelhantes, mas dois seres diferentes, um visível, o outro invisível, cuja disparidade deixa adivinhar a superioridade da beleza. Enquanto o relato de Aristófanes retirava da sexualidade todo mistério, fazendo dos amantes duas “metades” de um só e mesmo ser, o ensinamento de Diotima integra em sua busca amorosa a dimensão da alteridade e da transcendência.

Recusando fazer um elogio pessoal do amor, pois este nada mais seria senão o que lhe confiara outrora uma sacerdotisa pitagórica, Sócrates faz apelo à sua memória, como antes dele o fizeram Aristodemo e Apolodoro, e dá a palavra a Diotima de Mantinéia, de quem ele possui o que sabe em matéria de amor. Quando esta mulher, que não fora convidada ao banquete de Agatão, junto aos homens, narra o nascimento de Eros, é para fazer aparecer outra mulher que também não fora convidada ao banquete de Afrodite, junto aos deuses. Os dois personagens têm, portanto, uma mesma função no texto, bem como na justificação de Eros. Diotima conta que Pênia, personificação da Miséria, veio mendigar algumas migalhas do festim dos deuses na noite em que eles festejavam o nascimento da deusa do Amor. Vendo Poros, o deus da “Passagem”, adormecido após um abuso de vinho, a Miserável se deitou sobre ele e abusou de sua virilidade. É assim que Eros, que não é um deus, mas um demônio do amor, pois ele é bastardo entre o deus rico e a mulher pobre, foi concebido na noite do nascimento de Afrodite.

Função cósmica de Eros

Diotima revela assim que a função cósmica de Eros nasce de sua dupla natureza mortal e divina. O filho de Poros e de Pênia obtém de seu pai os múltiplos giros de “passa-passa” que lhe permitem sair da miséria transmitida por sua mãe. Por sua ascendência paternal, o Amor é realmente uma “passagem”, poros, entre os Deuses e os Mortais, bem como entre a ciência e a ignorância. Ele é “um grande demônio”, acrescenta Diotima, pois o demoníaco é um estado intermediário entre a condição divina e a condição mortal: a este título, ele transmite aos deuses as preces dos homens e aos homens as ordens dos deuses. Ao mesmo tempo, Eros é um “intermediário”, metaxu, entre o saber e a ignorância e, a este título, é filósofo, já que somente são filósofos aqueles que se conectam ao saber que eles não possuem. A meio caminho entre os deuses e os homens, entre a ignorância e o conhecimento, Eros preenche o vazio entre estas quatro instâncias, graças à sua função de mediação: ele é assim “o elo que une o todo a si mesmo” (202 c).

É neste momento que Diotima chega às “coisas do amor”, ta erôtika, a fim de iniciar Sócrates em seus mistérios. O vocabulário de Platão é aqui um vocabulário religioso, e não mais sexual, e ele se inspira nos mistérios de Eleusis. A instrução prévia preparou o postulado a que se veja em Eros a fonte da imortalidade; trata-se, agora, de conduzir para “a boa via” que conduz à descoberta da Beleza absoluta. Cinco etapas escalonam segundo uma gradação rigorosa a conversão do iniciado para as “verdades perfeitas e contemplativas”. Num primeiro tempo, aquele que segue o reto caminho do amor deve amar um só belo corpo para engendrar “palavras de beleza”, logous kalous (210 a). Num segundo tempo, ele deverá amar “todos os corpos belos”, pois todas as belezas físicas são irmãs, e atingir a universalidade do belo encarnado no sensível. Por ocasião da terceira etapa, ele contemplará “a beleza nas almas” (210 b) como mais elevada que aquela dos corpos e gestará justas razões, semelhantes a sementes do bem, contemplando a beleza “nos costumes e nas leis” (210 c). Após os costumes, numa quarta prova, o iniciado será conduzido aos “conhecimentos” da alma (210 c), a fim de descobrir, através deles, “o imenso oceano do belo”. Encarando-os, ele poderá, então, gerar um grande número de pensamentos inspirados por um amor sem limites para a sabedoria.

Viagem iniciática

Ao termo da viagem iniciática, quem tiver sido conduzido até este cume, segundo a gradação correta das coisas do amor, perceberá imediatamente, “num clarão”, uma beleza originalmente maravilhosa: aquela mesma, Sócrates, para quem os homens tanto penaram até hoje e que, “em primeiro lugar, não nascendo nem morrendo, é eterna, não sofrendo nem crescimento nem diminuição; que, além disso, não é bela de um ponto de vista e feia de outro, nem bela segundo determinados momentos, nem bela numa relação e feia em outra, nem bela ou feia segundo o lugar e segundo os que a percebem. Ele não imaginará esta beleza com um rosto, ou com mãos e nada do que participa da natureza corporal; ela também não é uma razão, uma ciência, nem nada que resida no outro além de si próprio – por exemplo, num vivente, numa terra, num céu... –, mas ela existe em si mesma e para si mesma na unidade formal de sua ideia e toda outra beleza no universo participa de seu ser” (210 e – 211 b).

O caminho a percorrer para chegar até as coisas do amor se desenvolve, assim, segundo cinco patamares de uma revelação progressiva marcada pela irrupção repentina da transcendência do belo. Estamos entre os antípodas da sexualidade sem freio de Aristófanes, que procurava a metade perdida do ser humano primitivo. O iniciado se ergueu: 1) de um só belo corpo a dois; 2) e de dois a todos; 3) dos belos corpos à beleza dos costumes; 4) depois desta aos belos conhecimentos, para chegar, enfim: 5) a este “conhecimento”, to mathema, que não tem outro objeto senão a Beleza em si mesma (211 c). Na iniciação do Amor, a meio caminho dos homens e dos deuses, o que define propriamente a atopia do filósofo, ou seja, sua atitude deslocada, Sócrates se situa entre o saber e a ignorância. Ele se confunde com o demônio invisível que por vezes o detém, nesse entre-dois, onde toma lugar o pensamento.

Pois, quem se liga ao demônio e, portanto à alma em seu exercício de pensar, não põe em relevo uma categoria lógica para Platão. Não se pode definir o demoníaco, pois todo ser finito deve fixar o infinito desses movimentos e dessas contradições numa natureza mista, segundo as categorias estudadas por Sócrates no Fílebo. Ora, Eros não é da ordem do ser, mas, como seu pai Poros, ele é da passagem: ele é pura mediação, metaxu, entre a sabedoria e a ignorância, entre os mortais e os imortais, o qual jamais se fixa no termo de sua corrida, escapando, assim, de toda determinação. Não se pode imobilizar o amor que é um movimento ininterrupto para o que não é ele. Ele é antes da ordem da origem e da causa, no sentido primitivo do termo grego aitia, que permite entender a exigência ética à qual a alma, a todo o momento, deve responder.

Jogo amoroso de analogias

Considerando agora a última parte do diálogo, o elogio de Sócrates por Alcibíades, o qual chega à casa de Agatão embriagado, de madrugada, para recomeçar a beber, percebe-se que seu discurso é composto, num eco aos cinco níveis da revelação de Eros, e aos cinco discursos dos primeiros oradores, em cinco níveis bem distintos: 1. O método escolhido para louvar Sócrates (215 a 4 – 215 a 6). 2. A semelhança de Sócrates com as Silenes e o Sátiro Marsyas (215 a 7 – 216 c 4). 3. O desvelamento do verdadeiro Sócrates quando Aristófanes tentou seduzi-lo (216 c 5 – 219 e 5). 4. A coragem de Sócrates para a guerra (219 e 6 – 221 e 1). 5. O retrato final do filósofo, novamente comparado às Silenes e aos Sátiros.

Como já estabeleci em minha obra Platão e o espelho do mito , Platão utiliza neste texto, como em outros diálogos, um símbolo cósmico de origem pitagórica, o número cinco, ou pentafido, que tem a virtude matemática, musical e cósmica de representar a totalidade do ser. Se não é possível desenvolver as propriedades do cinco neste artigo, eu notarei simplesmente que toda a estrutura do Banquete é comandada por este número. Basta recapitular as diferentes sequências e os diferentes personagens. Já sabemos que os discursos preparatórios sobre o amor são em número de cinco: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão, e somente de cinco, embora Aristodemo declare que outros convidados haviam tomado a palavra naquela noite: mas Platão reteve apenas cinco. Estes cinco discursos preparatórios, em que a retórica se mistura à sofística, preparam a entrada em cena de Sócrates e de Diotima, que fazem ultrapassar esses elogios em proveito de um discurso verdadeiramente filosófico, orientado não para o prazer sensual, mas para o bem intelectual.

O discurso de Aristófanes, o mais célebre dos cinco primeiros discursos, distingue, por sua vez, em seu mito da humanidade primitiva, cinco espécies diferentes: (1) os homens esféricos simultaneamente masculinos, femininos e hermafroditas, sendo, depois, esta humanidade primitiva cortada em duas, (2) os heterossexuais que procuram sua metade feminina, (3) as heterossexuais que procuram sua metade masculina, (4) os homossexuais que procuram sua metade masculina, e 5) os homossexuais que procuram sua metade feminina.

Quando se recapitula o encadeamento direto ou indireto das conversações, percebe-se que todos os temas do diálogo, os personagens, os discursos e os banquetes ocorrem todos em dupla e se refletem em espelho. No banquete humano de Agatão, aquele ao qual assistimos em Atenas, responde o banquete divino de Afrodite que o precedeu no Olimpo. À divina estrangeira do banquete dos homens, Diotima, responde a mortal estrangeira do banquete dos deuses, Pênia. Ao casal que gera Eros em honra de Afrodite, Poros e Pênia, responde o casal que engendra o elogio do amor em honra de Eros, Sócrates e Diotima. Aos cinco discursos preparatórios dos primeiros oradores que delineiam os traços de Eros correspondem os cinco degraus da iniciação amorosa. Ao Sócrates vagabundo, que permanece uma hora imóvel diante de Agatão que lhe está próximo, hesitando entrar, responde Eros, filho de Boêmia, que se deita na passagem das portas.

Tudo é, então, um jogo amoroso de analogias no texto do Banquete. Se voltamos ao início da conversação, no momento das primeiras trocas de Apolodoro que narra a noite do banquete aos seus amigos, veremos que o discurso de Diotima, dissimulado naquele de Sócrates, ele próprio circundado pelas cinco outras propostas dos outros convivas, foi finalmente relatado por Aristodemo, única testemunha da festa, a um personagem denominado Fênix que, por sua vez, o transmitiu a um amigo anônimo (172 b 2), de quem Glauco retém suas referências que o conduzem a solicitar a Apolodoro seu relato que ele ouviu, de primeira mão, de Aristodemo. O leitor poderá recontar os protagonistas do prólogo do Banquete. Eles são realmente em número de cinco, quatro atenienses munidos de um nome, Aristodemo, Apolodoro, Fênix, Glauco, e um anônimo amigo de Fênix que representou o intermediário. Como havia cinco oradores antes do discurso de Sócrates, para preparar a ascensão amorosa em cinco etapas em direção ao Belo, houve cinco narradores após o discurso de Sócrates que referiram este estranho encaixe de relatos, de personagens e de banquetes. O conjunto do texto platônico, como mais tarde A arte da fuga de Bach,  possui uma estrutura em abismo na qual os diferentes elementos se correspondem e se fazem eco num vasto jogo de ponto e de contraponto. Tal é, sem dúvida, a harmonia cósmica do amor, que reúne todas as coisas para gerar sob o olhar da Beleza suprema.

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