Edição 294 | 25 Mai 2009

A totalidade em movimento: a herança de Heráclito e Parmênides em Platão

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Márcia Junges

A influência de Platão se faz sentir em ciências como Física e Biologia, através da Teoria dos Sistemas. A teoria geral do universo, monista, se desdobra na teoria dualista das ideias e coisas, o que demonstra a herança de Heráclito e Parmênides na filosofia platônica

“A separação entre dois mundos é superada por uma teoria monista que se abre e se desdobra, sempre de novo, em dois pólos opostos, os contrários. Mas a dualidade de pólos exige sempre uma unidade dentro da qual eles se opõem, o que significa, em última análise, que a teoria geral do Universo é monista e é ela que se desdobra em ideias e coisas. Fica claro, portanto, que Platão vem tanto de Heráclito, como de Parmênides: a totalidade está sempre em movimento”, explica o filósofo Carlos Roberto Velho Cirne-Lima na entrevista, exclusiva, que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Especialista em Hegel, Cirne-Lima avalia o legado platônico, e assinala que, mediante a Teoria dos Sistemas, o neoplatonismo foi adotado por inúmeros pensadores do século XX, sobretudo biólogos e físicos. Ele analisou, também, a adoção da metafísica aristotélica através de Tomás de Aquino pela filosofia no cristianismo em detrimento do neoplatonismo, que tem em Fichte, Schelling em Hegel os seus últimos representantes.

Cirne-Lima é professor emérito do PPG em Filosofia da Unisinos, com o título de doutor honoris causa, concedido em 6 de junho de 2008. É graduado em Filosofia, pelo Berchmannskolleg, em Pullach (Alemanha), doutor em Filosofia, pela Universität Innsbruck, (Áustria), e obteve livre-docência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (UFRGS). Entre seus livros publicados, citamos Realismo e dialética. A analogia como dialética do Realismo (Porto Alegre: Globo, 1967), Sobre a contradição (Porto Alegre: Edipucrs, 1993) e Dialética para principiantes (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002). Seu livro mais recente chama-se Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico (Caxias do Sul, RS: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2006). Conheça, ainda, o seu site www.cirnelima.org.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais as principais diferenças entre o platonismo e o neoplatonismo?

Cirne-Lima - Platonismo é o conjunto de doutrinas do próprio Platão; como estas têm as mais variadas interpretações (monistas, dualistas etc.), todas elas são subsumidas sob o termo platonismo. Neoplatonismo é a doutrina de alunos de Platão, como Plotino e Proclo,  que têm descendência intelectual de Platão, mas constituem uma doutrina que privilegia a interpretação monista de Platão, que privilegia uma teoria geral do mundo a partir do Uno, que é o Bem e o Belo.

IHU On-Line - A Escola de Tübingen está estudando manuscritos nos quais Platão unificava os dois mundos e ficava, assim, um pensador monista. Como é possível conciliar isso com a teoria dos dois mundos? Platão vem de Heráclito  ou de Parmênides?

Cirne-Lima - A Escola de Tübingen juntou em autores posteriores, como o próprio Aristóteles, muitas e longas citações de textos de Platão que não se encontram em nenhum dos diálogos do cânone platônico. Foi reconstituído, assim, o diálogo central que, segundo a sétima carta, jamais deveria ser fixado por escrito. Nesse diálogo, que é intitulado “Sobre o bem”, Platão se apresenta como um pensador monista. Monismo, aliás, que aparece claro já em diálogos como o Parmênides e o Philebo. E o dualismo? A separação entre dois mundos é superada por uma teoria monista que se abre e se desdobra, sempre de novo, em dois pólos opostos, os contrários. Mas a dualidade de pólos exige sempre uma unidade dentro da qual eles se opõem, o que significa, em última análise, que a teoria geral do Universo é monista e é ela que se desdobra em ideias e coisas. Fica claro, portanto, que Platão vem tanto de Heráclito, como de Parmênides: a totalidade está sempre em movimento.

IHU On-Line - Que motivos fizeram a Igreja Católica adotar o aristotelismo e abandonar o neoplatonismo? Por que o neoplatonismo tem seus últimos representantes em Fichte,  Schelling  e Hegel?

Cirne-Lima - No encontro da filosofia grega com a religião cristã, o neoplatonismo foi a doutrina que caracterizou Agostinho e, na sequência, toda a teologia medieval. O aristotelismo – exceto os livros lógicos - desaparece no Ocidente e fica restrito a uma tribo árabe nômade; migra, assim, até a Índia. Na Idade Média, a metafísica, a ética e a política de Aristóteles ressurgem, quando Tomás de Aquino  recebe, em Paris, estudantes que lhe trazem das universidades árabes no sul da Espanha os manuscritos que até então só os doutores islâmicos conheciam e comentavam. Alberto Magno  e Tomás de Aquino, ao se tornarem defensores de Aristóteles, mudam o panorama intelectual. A filosofia do cristianismo não é mais neoplatônica, mas sim aristotélica. Desde Tomás de Aquino, a filosofia dominante no cristianismo é a metafísica de Aristóteles com alguns adendos feitos pelo próprio Tomás. Do século XII até hoje, o aristotelismo é o quadro teórico no qual se insere a filosofia católica. A grande exceção, no século XX é a obra de Teillard de Chardin,  tipicamente neoplatônica; é por isto que Chardin, proibido de lecionar e de publicar, foi mandado para a China (literalmente).

O neoplatonismo, ninguém sabe ao certo em que século, entrou na Cabala  judaica. Vários capítulos da Cabala são puramente neoplatônicos; esse tipo de panteísmo evidentemente contraria princípios básicos do judaísmo. Mas os judeus nada fizeram e tais capítulos continuaram na Cabala, lado a lado, com doutrinas tipicamente judaicas. Quando, então, Espinosa,  em Amsterdam, cursa uma escola judaica, ele lê na Cabala também os capítulos neoplatônicos. Estes o fascinam e lhe dão uma nova visão do mundo, uma visão neoplatônica e, assim, panteizante. Espinosa, muito jovem – ainda na escola secundária -, tem de optar entre o neoplatonismo e o judaísmo ortodoxo. Ele opta, como sabemos, pelo panteísmo neoplatônico e é por isso excomungado pela comunidade judaica na Holanda. O espinosismo, entretanto, como lembra Goethe  em suas memórias (Wahrheit und Dichtung), torna-se a filosofia que conquista poetas e filósofos na Alemanha. Este espinosismo universalíssimo e panteísta é a cosmovisão de Goethe e molda o fundamento sobre o qual se erguem as filosofias de Fichte, Schelling e Hegel. Hegel escreve, a este respeito, que tudo que ele quer em filosofia é conciliar a substância de Espinosa com o eu livre de Kant.

IHU On-Line - Podemos dizer que esta teoria universalíssima do universo, que hoje é formulada pela Teoria de Sistemas, tem suas raízes no núcleo duro do neoplatonismo e, assim, no próprio Platão?

Cirne-Lima - Certamente. O neoplatonismo, além do caminho via Espinosa, entrou na modernidade também por outra brecha. Um grande pensador neoplatônico da renascença, Nicolau Cusanus,  é ensinado e comentado largamente na Universidade de Viena, no começo do século XX. Embora a doutrina dominante à época em Viena fosse o positivismo lógico, um que outro professor ensinava autores clássicos como Cusanus. É aí que Ludwig von Bertalanffy,  estudante de Biologia, aprende a estrutura básica da filosofia neoplatônica e formula aquilo que vai ser chamado de Teoria de Sistemas. Na General System Theorie, Bertalanffy nomeia estes pensadores, principalmente Cusanus, como sendo a base da teoria que está propondo. Mediante a Teoria de Sistemas o neoplatonismo se difundiu enormemente nos pensadores do século XX, principalmente entre biólogos e físicos.
 
IHU On-Line - Por que Hegel tentou reconstruir o sistema neoplatônico mediante uma dedução total do sistema?

Cirne-Lima - A ideia da demonstração por dedução vem dos mestres gregos da Geometria. Com a modernidade e o nascimento da ciência moderna, o ideal da dedução seduz os pensadores, inclusive os filósofos. Isso se percebe em Descartes e Espinosa. Em Fichte, o sistema como um grande processo de dedução torna-se o ideal filosófico a ser alcançado. Isso influencia Schelling e também Hegel. Hoje há quase um consenso que uma tal dedução do Universo é impossível.

IHU On-Line - O que a filosofia em nossos tempos poderia recuperar do espírito da Academia de Platão, que já no seu umbral exortava aos estudantes a saberem geometria, ou seja, que não se detivessem apenas a um ramo do conhecimento?

Cirne-Lima – A filosofia como ciência universalíssima é a ciência de todas as ciências, ou, de forma diferente, a ciência que reúne e organiza todos os saberes. Esta sempre foi e continuará sendo a meta da filosofia.

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Carlos Alberto Velho Cirne-Lima

Entrevistas:

* As universidades perderam a unidade do saber. Edição número 80, de 20-10-2003, intitulada A Filosofia está viva?

* Karl Rahner defendeu ideias, antes do tempo, cedo demais. Edição número 102, de 24-05-2004, intitulada Deus e a humanidade: algo a ver? Karl Rahner 100 anos.

* O ser humano como sujeito social na Teoria dos Sistemas, Auto-Organização e caos. Edição número 142, de 23-05-2005, intitulada O ser humano como sujeito social na Teoria dos Sistemas, Auto-Organização e Caos.

* Dialética para todos: Aristóteles com o controle-remoto na mão. Edição número 183, de 05-06-2006, intitulada Floresta de araucária: uma teia ecológica complexa

* Quando Hegel fala em contradição, entenda-se contrariedade. Edição número 217, de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 1807-2007.

>> Confira, ainda, a edição comemorativa ao título de doutor honoris causa recebido por Cirne-Lima

* Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel. Edição número 261, de 09-06-2008.

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