Edição 294 | 25 Mai 2009

Platão, um pensador sistemático, segundo a Escola de Tübingen-Milão

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Márcia Junges | Tradução Walter Schlupp

Ensinamentos não escritos revelam nova faceta do pensador grego, para quem a escrita jamais poderia criar compreensão filosófica genuína. Contudo, isso não representa depreciação dos diálogos, defende Thomas Szlezák

Questionado sobre que outras novidades vieram à tona em função da reavaliação dos testemunhos dos "ensinamentos não escritos" por intermédio da Escola de Tübingen-Milão, o filósofo Thomas Szlezák, diretor dos Arquivos Platão nessa universidade, enfatizou que “Platão foi um pensador sistemático, que tentou explicar a realidade total a partir de princípios unitários/uniformes”. Segundo ele, “os diálogos e a teoria oral dos princípios se complementam de modo ideal”. E continua: “Uma peculiaridade dos ensinamentos não escritos é o fato de elas, após analisar o mundo em termos dos seus últimos princípios, num segundo passo inverso, ‘construírem’ o mundo a partir dos princípios, onde surgem como primeiro produto da gênese inteligível as ideias dos números e das formas espaciais. Os ensinamentos não escritos continham, entre outras coisas, elementos importantes como uma filosofia dos números e uma doutrina das categorias, da qual os diálogos ainda apresentam alguns vestígios”. As afirmações fazem parte da entrevista especial, concedida por Szlezák, por e-mail, à IHU On-Line. Para Platão, o mundo das ideias e os princípios que o fundamentam é algo “divino”, e sua comunicação por escrito seria “jogá-las a esmo”, uma “profanação”. Por outro lado, isso não significa uma depreciação dos diálogos, garante o especialista alemão.

Thomas Szlezák cursou Filosofia Clássica, Filosofia e História nas Universidades de Erlangen, Munique e Tübingen. Especialista em Platão, é autor de Platon und Aristoteles in der Nus-Lehre Plotins (Basel-Stuttgart: Schwabe & Co. 1979), além de Ler Platão (São Paulo: Loyola, 2005) e Platone politico (Roma: Treccani, 1993). Outros aspectos básicos de sua pesquisa são a tragédia grega do século V, bem como a Metafísica de Aristóteles.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A Escola de Tübingen-Milão  chamou a atenção para textos que já existiam, mas não eram suficientemente levados em conta (em Aristóteles, Teofrasto,  Alexandre de Afrodísia,  entre outros), segundo os quais Platão procurava explicar a realidade inteira (mundo dos sentidos e mundo das ideias) de forma integrada a partir dos mesmos princípios. Qual a relação dessa teoria dos princípios em seus "ensinamentos não escritos" com a teoria dualista das ideias nos diálogos? Será a teoria oral dos princípios em si dualista ou monista?

Thomas Szlezák - A teoria dos princípios de Platão, a qual ele propositalmente não descreveu em seus diálogos, razão pela qual a academia os chamou de seus “ensinamentos não escritos” (ágrapha dógmata), era tão dualista quanto a doutrina das ideias em seus diálogos. Ocorre que a análise da realidade, em última instância, conduz a dois princípios, nenhum dos quais pode ser baseado no outro. Os princípios são: 1. O uno como princípio positivo, que confere a todas as coisas, tanto às ideias quanto às coisas do mundo perceptível, unidade e forma, ser e constância, razão pela qual é também o princípio do bem; 2. A dualidade indeterminada como princípio negativo, que fundamenta a pluralidade no mundo e precisa ser considerada causa última do movimento, da inconstância, da perda da forma, e também do mal. O segundo princípio serve, a bem dizer, como material do primeiro princípio, o qual cria a forma, ao gradativamente determinar, fixar e formar a dualidade originalmente indeterminada por completo. A Escola de Tübingen-Milão reinterpretou os relatos sobre os ágrapha dógmata de Platão em Aristóteles, Teofrasto, Alexandre de Afrodísias, entre outros; ali sempre constam dois princípios últimos. Em nenhum lugar existe algum indício de que o segundo princípio pudesse ser derivado do primeiro. Esta é a mais importante diferença entre a teoria platônica oral dos princípios e o neoplatonismo: neste, em última análise, o uno é também fonte da pluralidade e do princípio material; aí se apresenta o problema da teodiceia: como Deus pode ser responsável pelo mal? Em Platão, este problema não existe, porque sua filosofia é dualista, sendo o mal um princípio último não suscetível de anulação, por cuja existência Deus não é responsável.

IHU On-Line - Como as doutrinas esotéricas (para os iniciados) e as doutrinas exotéricas (para os não iniciados) platônicas podem ser compreendidas no conjunto de sua filosofia? Que peculiaridades e diferenças essas doutrinas apresentam?

Thomas Szlezák - A filosofia oral (esotérica) de Platão vai mais longe que os diálogos. Ela analisa o mundo (tanto o mundo inteligível tanto quanto o sensível) até os seus últimos princípios, o que nunca é tentado nos diálogos. Assim sendo, os diálogos e a teoria oral dos princípios se complementam de modo ideal. De resto, os próprios diálogos contêm muitas referências aos problemas tratados nos ágrapha dógmata, como mostraram as interpretações da Escola de Tübingen-Milão. Uma peculiaridade dos ensinamentos não escritos é o fato de elas, após analisar o mundo em termos dos seus últimos princípios, num segundo passo inverso, “construírem” o mundo a partir dos princípios, onde surgem como primeiro produto da gênese inteligível as ideias dos números e das formas espaciais (ponto - linha - superfície - corpo). Os ensinamentos não escritos continham, entre outras coisas, elementos importantes como uma filosofia dos números e uma doutrina das categorias (da qual os diálogos ainda apresentam alguns vestígios).

IHU On-Line - Que outras novidades vieram à tona em função da reavaliação dos testemunhos dos “ensinamentos não escritos” por intermédio da Escola de Tübingen-Milão?

Thomas Szlezák - A novidade que podemos distinguir por meio dos ensinamentos não escritos é que Platão foi um pensador sistemático, que tentou explicar a realidade total a partir de princípios unitários/uniformes [einheitlich]. Nova é também a constatação de que sua filosofia dos números apresenta grande afinidade com a de Pitágoras. Outra novidade é também que a doutrina aristotélica da mesótes, do centro eticamente correto entre dois extremos, já estava embrionariamente contida na teoria dos princípios de Platão e que sua teoria da matéria (hyle) foi apenas uma continuação da noção platônica da dualidade indeterminada.

IHU On-Line - Quem reconheceu a importância dos antigos textos que falam da filosofia esotérica dos princípios de Platão? Quando ocorreu isto e onde encontramos uma compilação desses testemunhos?"

Thomas Szlezák - Os textos antigos da filosofia oral dos princípios já gozavam de grande consideração no início do século XIX em vários autores alemães (Brandis,  Weisse,  Trendelenburg,  K.F.Hermann), mas acabaram novamente marginalizados na tradição fundada por Eduard Zeller. No início do século XX, então, Léon Robin  reinterpretou os relatos aristotélicos sobre a teoria dos princípios de Platão (La théorie platonicienne des Idées et des Nombres d´après Aristote: Paris 1908). Outras interpretações importantes vieram, então, na primeira metade do século XX da parte de Julius Stenzel,  Theodor Gomperz,  Paul Wilpert  e outros, até que então, em Tübingen, Hans Joachim Krämer  e Konrad Gaiser  apresentaram uma interpretação totalmente nova sobre a importância fundamental desses testemunhos: H.J. Krämer, Arete bei Platon und Aristoteles, 1959, e K.Gaiser, Platons ungeschriebene Lehre, 1963. A obra de Gaiser ainda apresenta em apêndice (p. 441-557) uma compilação dos mais importantes testemunhos (em grego, com breves explanações) sob o título Testimonia Platonica. Textos gregos com tradução francesa em: M.-D.Richard, L´enseignement orale de Platon (Paris, 2a.ed. 2005, p. 243-381).

IHU On-Line - Qual é o sentido da afirmação platônica de que ele nunca escreveria nada que considerasse de “maior valor”? Isso não invalidaria, de certa forma, suas obras escritas?

Thomas Szlezák - Quando Platão diz que um homem de bom senso jamais confiaria à escrita seus pensamentos “mais sérios”, seus spoudaiótata, ele quer dizer que um filósofo sério jamais se arriscaria a expor as teorias mais complicadas e prenhes de premissas, que somente podem ser captadas após longo preparo intelectual e ético, à multidão despreparada e afilosófica de receptores inadequados. Como para Platão o mundo das ideias e os princípios que o fundamentam são algo “divino”, sua comunicação por escrito seria “jogá-las a esmo” [“Hinauswerfen”], uma profanação. Acontece que na concepção de Platão a escrita jamais poderá criar compreensão filosófica genuína em leitores que não sabem o que é filosofia. Quando muito, ela poderá “evocar” conteúdos filosóficos na pessoa que já “sabe”.

Isto não representa uma depreciação dos diálogos. Para Platão, os diálogos tinham o sentido de preparar para a formação filosófica em sua academia e para a teoria oral dos princípios. Os diálogos contêm muita filosofia valiosa em todas as áreas, como, por exemplo, na filosofia do Estado, na epistemologia, ética, psicologia, doutrina das ideias e cosmologia; mas em lugar algum eles apresentam a respectiva fundamentação sobre os princípios supremos. O próprio Platão sempre volta a manifestar isso claramente nos diálogos, mais explicitamente na Politeia (A República) e no diálogo cosmológico Timaios. Portanto a Escola de Tübingen-Milão não está “depreciando os diálogos”, mas procura levar em consideração a respectiva apreciação que o próprio Platão expressou claramente.

IHU On-Line - Em que medida a divulgação oral desses conhecimentos os preservaria de más interpretações a partir do texto escrito?

Thomas Szlezák – Naturalmente, a discussão oral das ideias de Platão na academia, isto é, na roda dos discípulos, de cuja formação intelectual ele mesmo cuidara, teria levado a uma compreensão melhor de todo o seu pensamento, tanto dos diálogos quanto da teoria dos princípios. Somente na conversação oral é que o filósofo pode perguntar e receber respostas espontâneas que revelam se o interlocutor realmente conseguiu acompanhar. Somente neste caso é que a pessoa a filosofar oralmente continuará. Um livro, por sua vez, pode continuar sendo lido, mesmo que não tenha havido compreensão alguma; ao fim e ao cabo estará formado, então, um perfeito mal-entendido. Justamente para evitar isso, Platão insistia na oralidade.

IHU On-Line - É correto afirmar que a dialética platônica fundamenta a dialética hegeliana? Por quê?

Thomas Szlezák - O próprio Hegel entendeu sua dialética como continuação da dialética platônica. Principalmente no diálogo Parmênides de Platão, Hegel  via o exemplo perfeito de como os conceitos se movem dialeticamente. Antes de Platão ninguém demonstrara com tanta clareza que, ao utilizar conceitos, necessariamente estamos utilizando uma trama de conceitos, cuja relação recíproca somente pode ser captada em se passando por posições opostas.

IHU On-Line - Como a dialética platônica se apresenta nos seus diálogos tardios?

Thomas Szlezák - Com maior clareza que os diálogos iniciais e intermediários, a dialética dos diálogos posteriores de Platão mostra a direção que o pensamento precisa tomar: para cima, para os princípios. Ela também mostra que as ideias são a “condição da possibilidade” de todo pensar e falar (num sentido que não deixa de ser “filosófico transcendental”). Mas também os diálogos posteriores evitam trilhar o caminho completo até os últimos princípios. Segundo Platão, na escrita isto não é possível. Quando, por exemplo em Parmênides, Platão fala do seu conceito supremo, do uno ou hén, ele não declara em que sentido o uno é o bem, o que, segundo a tradição dos ensinamentos não escritos, constituía o teor principal da sua filosofia oral; no diálogo ele tampouco especifica a precisão com que o princípio da forma delimita a dualidade indeterminada. Parmênides, portanto, aproxima-se muito dos ensinamentos não escritos, mas evita apresentá-los de forma coerente e completa. Mais do que pequenas amostras da dialética platônica sistemática exigida pelos diálogos também os diálogos posteriores não oferecem.

IHU On-Line - Qual é a maior contribuição desse pensador para o pensamento político em nossos dias? Como entender a figura do filósofo legislador, recorrente em vários outros filósofos?

Thomas Szlezák - A mais importante contribuição de Platão para a filosofia política é a noção de que a política precisa estar calcada num conhecimento filosófico bem fundado das bases da ética. Além disso, a política precisa ser conduzida por conhecimentos sólidos em todas as áreas. Esses dois enfoques estão reunidos na ideia do mando dos filósofos no melhor Estado, pois os “filósofos-reis” ideais de Platão possuem base filosófica para tudo que fazem, além da formação científica em todas as áreas relevantes para a política. Platão é o autor dessa ideia. Onde quer que ela apareça, como por exemplo em Nietzsche, Platão está na origem. Como já se afirmou tantas vezes, a história da filosofia ocidental revela ser “uma série de notas de rodapé sobre Platão”.

IHU On-Line - Há diálogos ou discursos platônicos que podem ser considerados antidemocráticos? Em que sentido?

Thomas Szlezák - O estado ideal de Platão, esboçado na Politeia (A República), não seria um estado democrático, porque nele o mando estaria vinculado à competência filosófica e científica, não à vontade da maioria. Já a democracia está calcada, por princípio, num relativismo ético de valores: ninguém que julgue ter reconhecido “o bem absoluto”, pode ter o direito, numa democracia, de impor sua opinião aos outros. Já os filósofos-reis no estado ideal de Platão fariam isto. Neste sentido, o pensamento de Platão é fundamentalmente “antidemocrático”, porque combate o relativismo de valores. De resto, Platão combatia a democracia direta em sua cidade natal Atenas, onde o povo podia decidir importantes questões éticas por simples resolução majoritária, sem levar em consideração um cânon de direitos humanos e direitos de minoria. Não há dúvida de que Platão teria tido feito um juízo muito mais positivo da democracia parlamentar moderna do que da antiga democracia direta. Isto porque muitas ideias de Platão já estão implementadas na democracia moderna. Esta tenta estabelecer uma vinculação fundamental ao direito, protegendo minorias e respeitando direitos humanos.

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