Edição 293 | 18 Mai 2009

Prisões brasileiras: espelho da nossa sociedade

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Tamara Melo

A advogada Tamara Melo, da Organização Não-Governamental (ONG) Justiça Global acompanha de perto a situação do Presídio Estadual Urso Branco, em Rondônia, além de outros casos ligados ao sistema prisional brasileiro e a dignidade dos encarcerados. Ao longo do texto que nos enivou, ela demonstra como a necessidade de um inimigo público encontra nos mais pobres o alvo perfeito para a marginalização e a criminalização da pobreza.

Advogada graduada na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pós-graduada em Direitos Humanos e Democratização pela Universidade de Coimbra (Portugal) e mestranda em Direito pela PUC-Rio, Tamara Melo atua na Organização Não-Governamental (ONG) Justiça Global. Ela enviou o artigo a seguir especialmente à IHU On-Line. Tamara é uma das profissionais da ONG que acompanha de perto a situação do Presídio Estadual Urso Branco, em Rondônia, além de outros casos ligados ao sistema prisional brasileiro e a dignidade dos encarcerados. Ao longo do texto, ela demonstra como a necessidade de um inimigo público encontra nos mais pobres o alvo perfeito para a marginalização e a criminalização da pobreza. O perfil dos presos, traçado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão ligado ao Ministério da Justiça, referente ao primeiro semestre de 2008, demonstra a realidade da desigualdade brasileira: são, em sua grande maioria, jovens, negros ou pardos, e muito pobres.

Confira o artigo.

Contexto geral

O sistema prisional brasileiro reflete a própria sociedade em que se insere, sendo um espelho de nossas contradições mais sólidas e perversas. A grave desigualdade social no país – caracterizada pela existência de milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza e por uma forte e histórica concentração de renda – é acompanhada de uma quase absoluta imobilidade de classes. O resultado disso é que parte da população torna-se uma massa completamente excluída, composta por verdadeiros “subcidadãos”. Para que esta ordem de classes se mantenha, torna-se necessária a construção de um inimigo público, inimigo este que passa a ser identificado exatamente com aquela parcela pobre e marginalizada, que se busca isolar, neutralizar, destituir de poder. É o fenômeno da criminalização da pobreza, ou, como preferem alguns, o tratamento penal da miséria.

As prisões brasileiras ganham papel de grande relevância na manutenção da desigualdade, constituindo instrumentos de controle não ressocializadores. Os centros de detenção são verdadeiros espaços de punição, exclusão e consolidação das disparidades sociais. Ao falar dos locais de privação de liberdade do Brasil o sociólogo Loïc Wacquant compara-os a “campos de concentração para pobres” e a “depósito industrial de dejetos sociais” e conclui: “O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público”.

Problemas nas prisões

Entre os sérios problemas relacionados com o sistema penitenciário no Brasil destacam-se: superpopulação carcerária, insalubridade das celas, alimentação de má qualidade e em pouca quantidade, assistência jurídica precária (ou inexistente), cuidados insuficientes (ou nulos) com a saúde dos internos, violência extrema entre os detentos (sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos), ausência de separação entre as diversas categorias de presos (tais como provisórios e condenados), ausência de atividades de educação ou de trabalho e carências da supervisão. Os agentes penitenciários, responsáveis por garantir a segurança no interior das unidades prisionais, não recebem capacitação adequada e, em muitos casos, são admitidos por meio de contratações temporárias e emergenciais embora a Constituição brasileira exija expressamente a realização de concursos públicos para o preenchimento de cargos públicos.

A Defensoria Pública apresenta um déficit de profissionais para acompanhar os processos criminais no país. Essa situação é ainda pior nas cidades afastadas dos grandes centros urbanos. A Constituição Federal brasileira (Artigo 134) aponta claramente as atribuições da Defensoria Pública e o seu papel na garantia do acesso à justiça para aqueles que não possuem condições de pagar um advogado particular. No entanto, há estados, como Goiás e Santa Catarina, que não possuem Defensorias organizadas e instituídas. Em outros estados, o número de defensores é irrisório e as condições de trabalho são precárias.  Por sua vez, o Sistema Judiciário, com suas decisões marcadas por um forte viés conservador e punitivo, colaboram decisivamente para o incremento da superpopulação carcerária.

Tortura e impunidade

Não bastassem todos esses fatores, a tortura e outras formas de violência contra os presos, praticadas pelos próprios agentes penitenciários, consiste em prática reiterada e sistemática, constatada pelo Comitê contra a Tortura (CAT) da ONU em relatório publicado recentemente, no final do ano de 2007, com base na visita realizada ao Brasil pelos membros do CAT no ano de 2005.

O combate à impunidade certamente é um dos maiores desafios no que se refere aos crimes de tortura perpetrados pelos agentes públicos. Na grande maioria dos casos, as denúncias de violência contra os presos não são efetivamente investigadas, inexistindo responsabilização penal, administrativa e cível daqueles que violam a integridade pessoal e a vida dos detentos.

Neste contexto, cabe destacar que o Estado brasileiro assinou o Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura da ONU (OPCAT) em 13 de outubro de 2003 e o ratificou em 12 de janeiro de 2007, mas até hoje não cumpriu esta normativa internacional. Um dos pilares da prevenção da tortura estabelecido no Protocolo é a criação de um Mecanismo Preventivo Nacional no Estado-parte, cujo principal papel seria o de realizar visitas periódicas e monitorar as condições dos locais de privação de liberdade em todo o país. Entretanto, este mecanismo ainda não foi implementado.

Dados consolidados 

De acordo com os dados disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça, referentes aos primeiro semestre de 2008, a população total de presos é de 440.013 pessoas, sendo 381.112 recolhidos no sistema penitenciário e 58.901 nas delegacias de polícia. Esses números colocam o Brasil na quarta posição mundial, considerando a população carcerária. Do total de presos do sistema penitenciário (isto é, sem contar aqueles recolhidos nas delegacias de polícia), 130.745 são presos provisórios, que aguardam por julgamento. Isto significa que mais de 1/3 (um terço) da população carcerária brasileira é composta por presos que sequer foram condenados em definitivo. Em contraste, o número de vagas oferecidas é de 255.057 no sistema penitenciário, e mais 22.790 nas delegacias, somando um total de 277.847.

No período de 2003 a 2007, houve um crescimento real de presos provisórios de 88,84% (67.549 em 2003 e 127.562 em 2007). Em relação ao crescimento da população carcerária geral, no mesmo período, foi registrado 37% de aumento. Esses dados demonstram a radicalização do problema prisional no Brasil, ao mesmo tempo em que apontam para o avanço das práticas punitivas e a inexistência de políticas públicas que revertam o quadro apresentado.

Quanto ao perfil dos presos, os números apresentados pelo Depen evidenciam alguns traços característicos das pessoas recolhidas nos centros de detenção no Brasil: são em sua grande maioria jovens, negros ou pardos e muito pobres. Assim, por exemplo, em relação ao grau de instrução, 8,15% dos presos são analfabetos; 14,35% são alfabetizados; 44,76% possuem o ensino fundamental incompleto; 12,02 % possuem o ensino fundamental completo; 9,36% o ensino médio incompleto; 6,81% o ensino médio completo; 0,9% o ensino superior incompleto; 0,43% o ensino superior completo; menos de 0,1% nível acima do superior completo. Não foi informada a escolaridade de 3,14%.

No que diz respeito à faixa etária, 31,87% dos presos têm entre 18 e 24 anos; 26,10% entre 25 e 29 anos; 17,50% entre 30 e 34 anos; 15,45% entre 35 e 45 anos; 6,16% entre 46 e 60 anos; 0,96% mais de 60 anos e 1,95% não tiveram a idade informada.

Ainda em se tratando do perfil dos presos, outro dado importante é o que classifica os internos segundo a cor/etnia: 39,94% possuem a pele branca; 17,22% pele negra; 40,85% pele parda; 0,65% pele amarela; 0,16 % são indígenas e a 1,18% dos presos foram atribuídas outras cores/etnias.

Ociosidade

O Ministério da Justiça também estimou a quantidade de presos em programas de trabalho externo, ou seja, fora do estabelecimento penal: apenas 21.439. Além disso, 71.608 presos realizam trabalhos internos, como artesanato, atividades de apoio no funcionamento da unidade prisional, entre outros serviços. Mesmo somando-se a quantidade de presos que trabalham dentro e foram do estabelecimento penal, 93.047 internos, este total indica que a grande maioria dos detentos permanece ociosa, sem atividades laborais.

Com relação aos crimes mais praticados pelas pessoas reclusas no sistema penitenciário brasileiro, os dados sistematizados pelo Ministério da Justiça revelam que em primeiro lugar está o crime de roubo qualificado (19,33%), seguido pelo tráfico de entorpecentes (14,41%) e extorsão mediante sequestro (13,37%).  Disso, se pode concluir que os crimes potencialmente praticados por pessoas mais pobres ensejam o encarceramento em uma proporção muitíssimo maior do que os crimes praticados por pessoas ricas, como por exemplo, os “crimes de colarinho branco”.

Entre final do ano de 2007 e início do ano de 2008, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados que teve por objetivo investigar a realidade do sistema carcerário brasileiro e buscar soluções para o cumprimento da Lei de Execuções Penais. Após realizar diligências em 18 estados do país, visitando mais de 60 unidades prisionais, a CPI publicou um relatório final com todas as informações e denúncias coletadas, e ainda com algumas propostas e conclusões. Neste documento, a CPI frisou que os clientes preferenciais das prisões são as populações mais pobres e destacou a impunidade dos crimes do “colarinho branco” e similares, ou seja, daqueles delitos cometidos por pessoas das classes média e alta.

Urso Branco

Um caso emblemático da realidade prisional brasileira - denunciado à Comissão e à Corte Interamericanas de Direitos Humanos, bem como aos Relatores Especiais da ONU sobre Tortura e sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias e Arbitrárias – é a situação dos internos do presídio Urso Branco, localizado em Porto Velho, estado de Rondônia, região Norte do Brasil.

No dia 7 de outubro de 2008, o Procurador-Geral da República, Dr. Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a Intervenção Federal no estado de Rondônia, com fundamento no artigo 34, VII, “b”, combinado com o artigo 36, III, ambos da Constituição Federal. Estes dispositivos constitucionais autorizam a excepcional medida interventiva para proteger a dignidade da pessoa humana. Isto significa dizer que a autoridade máxima do Ministério Público Federal, entendendo que o estado de Rondônia viola de forma direta e reiterada direitos humanos, solicitou à Suprema Corte brasileira a determinação da intervenção da União Federal neste estado, rompendo provisoriamente com o pacto federativo.  

O pedido foi realizado em consequência das graves violações de direitos humanos dos presos da Casa de Detenção José Mário Alves, popularmente conhecida como Presídio Urso Branco. Como fundamento do pedido de Intervenção Federal, o Procurador relata as rebeliões, chacinas, mortes violentas, execuções sumárias e torturas, ocorridas na unidade desde o ano 2000 até 2007. Além disso, narra as péssimas condições de cumprimento de pena: superlotação, insalubridade das celas, falta de ventilação, acesso escasso à água, quantidade e qualidade duvidosas da alimentação, pouca frequência de banho de sol, quantidade insuficiente de materiais de higiene e de colchões, ociosidade completa dos presos (pois nenhum deles trabalha ou estuda), ausência de separação entre provisórios e condenados, tratamento humilhante conferido às visitas, precariedade do atendimento médico e odontológico, insuficiência da assistência judiciária gratuita e, finalmente, o número reduzido de agentes penitenciários.

Ainda no ano de 2002, a ausência de controle do Estado sobre o presídio e as graves violações dos direitos humanos dos detentos foram denunciados pela ONG Justiça Global e pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho (CJP) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Neste mesmo ano, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a cumprir medidas provisórias que garantam a proteção da vida e da integridade pessoal dos internos do Urso Branco, a investigação dos crimes ocorridos dentro da unidade e a adequação do presídio às normas internacionais de proteção dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.

Os procedimentos em trâmite no Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos, instaurados por iniciativa da Justiça Global e CJP, contribuíram diretamente para o pedido de Intervenção Federal formulado pelo Procurador, seja na formação do convencimento no sentido da necessidade de solicitar a intervenção, seja no conteúdo dos argumentos expostos na petição dirigida ao STF. Do mesmo modo, o resultado do processo que analisa o cabimento da intervenção repercutirá no Caso 12.568 - Internos do Presídio Urso Branco v. Brasil, que ainda está sob a apreciação da Comissão Interamericana, e também na análise do cumprimento das medidas provisórias já determinadas pelo Corte.

As organizações peticionárias do caso no Sistema Interamericano estão convictas de que a Intervenção Federal é medida de extrema necessidade e, por isso, esperam que o Supremo Tribunal Federal julgue procedente o pedido do Procurador-Geral da República. Por isso, solicitaram participação neste processo, na qualidade de assistentes do Procurador e no momento aguardam a decisão do Tribunal quanto a este pedido. Os mais de 100 (cem) assassinatos ocorridos dentro do presídio Urso Branco desde o ano 2000 e a absoluta impunidade dos crimes cometidos demonstram a importância de uma resposta imediata à situação caótica vivida pelos presos, não apenas no Urso Branco, mas em todas as unidades prisionais do estado de Rondônia.

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