Edição 291 | 04 Mai 2009

“A crise revela o que nosso desenvolvimento teve de absolutamente louco nestas últimas décadas”

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Graziela Wolfart | Tradução Luciana Cavalheiro

Dominique Méda constata que o trabalho é muito importante na identidade dos indivíduos modernos e que ele se tornou o fato social total ao longo dos dois últimos séculos

Completamente convicta da centralidade e da importância do trabalho na vida das pessoas em nossa sociedade, a socióloga francesa Dominique Méda observa que esse sentimento tem se tornado ainda mais forte a partir da crise internacional. “Parece-me que ela é formidavelmente reveladora. Primeiro, mostra o quanto o trabalho é constitutivo da nossa sociedade moderna e o lugar que ele ocupa. Mas também revela a maneira como o trabalho e os trabalhadores foram tratados até o momento pelo capitalismo”. Para ela, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, um dos grandes ensinamentos da crise é que “estamos todos no mesmo barco, estamos todos ligados, interdependentes, e que as soluções devem, então, ser coletivas, comuns”. Méda propõe uma mudança no raciocínio, uma inversão da perspectiva. Ela aponta como necessárias “políticas de qualidade do trabalho e de emprego, preocupadas com as pessoas no trabalho. Trata-se de políticas fundadas no trabalho decente e no emprego de qualidade”, explica. Otimista, ela ainda dispara: “A crise deveria ser a oportunidade de repensar o lugar do trabalho na nossa sociedade”. 

Pesquisadora no Centro de Estudos do Emprego, na França, o tema principal de Dominique Méda é a igualdade de gênero no mundo do trabalho. Ela realiza também uma reflexão filosófica e sociológica sobre o papel do trabalho em nossas sociedades e estuda a relação entre os instrumentos econômicos e políticos com os quais temos de medir a riqueza uma empresa. É autora de, entre outros, Le Travail. Une valeur en voie de disparition (Paris: Flammarion, 1998), Le travail, que sais-je? (Paris: PUF, 2004), Le travail non qualifié, Perspectives et paradoxes (com F.Vennat) (Paris: La Découverte, 2005) e Au-delà du PIB. Pour une autre mesure de la richesse (Paris: Champs-Actuel, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual o papel do trabalho, de forma geral, em uma sociedade em crise financeira, ambiental, e de valores? Qual a importância do trabalho na identidade do ser humano contemporâneo? 

Dominique Méda - O trabalho é muito importante na identidade dos indivíduos modernos. Ele se tornou o fato social total ao longo dos dois últimos séculos. Uma pesquisa recente que realizamos na Europa (Place et sens du travail en Europe.Une singularité française, 2008) evidenciou que as expectativas sobre o trabalho são imensas. As pessoas buscam não somente uma renda, mas também um lugar na sociedade, uma possibilidade de se realizar. E, evidentemente, o trabalho tomou este espaço não somente no funcionamento das sociedades em geral, mas também na vida de cada um. A crise torna isto ainda mais forte. Parece-me que ela é formidavelmente reveladora. Primeiro, mostra o quanto o trabalho é constitutivo da nossa sociedade moderna e o lugar que ele ocupa. Mas também revela a maneira como o trabalho e os trabalhadores foram tratados até o momento pelo capitalismo. A brutalidade com que certas empresas tratam seus trabalhadores é surpreendente e a crise focaliza no que, para uma parte delas, constituía a principal dimensão do trabalho: uma mercadoria, um fator de produção. Em minhas obras, tento explicar o quanto a dimensão “econômica” do trabalho é constitutiva de sua definição. A economia clássica representa o trabalho (e os trabalhadores) como um simples fator de produção, um meio entre outras coisas (o valor agregado, o lucro, o volume de negócios, o crescimento), uma inutilidade. E é isto que se exprime plenamente hoje na crise: o trabalho é somente um fator de produção. Então, quanto mais “magro” ele for, ou inexistente (em volume ou preço), melhor! De certa maneira, a violência da crise mostra a lógica profunda do capitalismo e sua relação com o trabalho.

IHU On-Line - Como a senhora define a sociologia do trabalho e do emprego nos dias atuais, considerando a crise internacional que hoje vivemos?

Dominique Méda – A crise revela o que nosso desenvolvimento teve de absolutamente louco nestas últimas décadas. Ela nos mostra como o trabalho foi tratado, como de forma alguma ele esteve no centro. A crise nos revela a natureza do desenvolvimento que conhecemos, centrado na busca exclusiva de lucro em curto prazo, sem nenhuma consideração das externalidades ou da maneira pela qual o processo aumentava as desigualdades ou suprimia o capital natural. Para mim, é isso que a crise revela: o caráter destruidor do desenvolvimento. O PIB não é, de maneira nenhuma, um indicador de progresso ou de riqueza das sociedades. Ele não leva em conta as atividades essenciais para a manutenção e a inscrição na duração das sociedades; ele é insensível às desigualdades de repartição de renda ou à participação na produção; ele não leva em conta as degradações trazidas ao capital natural, porque a contabilidade que propõe não é patrimonial. Ele nos dá, então, uma imagem falsa das evoluções de nossas sociedades e é absolutamente incapaz de emitir sinais quando este desenvolvimento nos conduz a impasses, como era o caso há várias décadas. É preciso mudar o raciocínio, inverter a perspectiva, compartilhar os objetivos de nossas sociedades: não se preocupar tanto com um grande PIB, mas deixar para nossos filhos um mundo habitável. A partir disso, é fácil compreender que as políticas devem ser primeiramente cuidadosas com o meio ambiente e os indivíduos. Que se trate, sem dúvida, de destinar uma grande parte de nossos esforços às tarefas de atenção, de cuidado, de responsabilidade, de manutenção e não de produção. Pode-se deduzir, também, que são necessárias políticas de qualidade do trabalho e de emprego, preocupadas com as pessoas no trabalho. Trata-se de políticas fundadas no trabalho decente e no emprego de qualidade.
 
IHU On-Line - Quais políticas sociais seriam mais adequadas para pensar o mundo do trabalho nos dias de hoje?

Dominique Méda - Parece-me que um dos meios seria levar absolutamente a sério as regras ambientais às quais somos confrontados e pensar em um tipo de desenvolvimento possível. Em seguida, seria preciso definir o tipo de regulação mundial, coletiva, que devemos estabelecer, com normas a respeitar. E entre essas normas haveria, é claro, normas sociais e indicadores de qualidade do trabalho. O conjunto dos indicadores de trabalho decente definido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT),  por exemplo, poderia nos servir de guia. Sanções deveriam ser aplicadas ao não respeito destas normas sociais e ambientais. Auxílios particulares deveriam ser oferecidos aos países que teriam dificuldade em colocar em prática tais políticas. Vê-se que a prática de tal plano demanda uma coordenação internacional e uma priorização das normas e o respeito a elas. Não estamos mais habituados a pensar assim, a aceitar limitações, medidas. Mas é, entretanto, unicamente se procedermos assim que poderemos sair desta situação.

IHU On-Line - Como poderá se constituir uma nova articulação do trabalho em tempos de crise internacional?

Dominique Méda - Um relatório recente da OIT explicou o que está acontecendo. Em um primeiro momento, na medida em que as indústrias foram as primeiras atingidas, e que são os homens que ocupam a maior parte dos cargos industriais, foram esses os mais afetados pela crise. Mas não nos enganemos: os serviços, nos quais as mulheres estão na maioria empregadas, vão seguir a mesma tendência. As mulheres são sempre as que estão em situação mais vulnerável (porque executam as tarefas domésticas, em termos de carga horária, têm menores salários e uma menor disponibilidade, pois a carga dos filhos lhes sobrecarrega mais frequentemente). Por essa razão, elas correm o risco de se encontrarem ainda mais desestabilizadas pela crise. Não creio, então, muito nesta ideia que se espalhou nos Estados Unidos de que são os homens que tem perdido o seu trabalho e não as mulheres.

IHU On-Line - A crise financeira internacional agrava a desigualdade entre homens e mulheres no mundo do trabalho ou ela contribui para a igualdade de oportunidades?

Dominique Méda - Creio que as desigualdades são ainda mais graves do que habitualmente. A crise torna ainda mais necessária a posse de dois empregos – e acrescentaria que dois empregos de qualidade, suficientemente remuneradores – e ela torna ainda mais evidente a necessidade de conseguir conciliar as tarefas profissionais e as de cuidados. Precisamos redefinir os empregos e fazer tudo para desenvolver principalmente empregos de qualidade, ou seja, remuneradores, bem protegidos e que deixem tempo para a vida familiar. Esta questão não pode passar para o segundo plano, sob o pretexto da crise.  Não sei bem o que irá acontecer. Corre-se o risco de dizer: “Ai, os empregos estão desaparecendo, é preciso reservá-los aos homens, pois as mulheres têm outros centros de preocupação”. Não! Devemos, ao contrário, aproveitar a crise para afirmar alto e forte que o emprego é para todos, mulheres e homens, é uma absoluta necessidade, à qual homens e mulheres devem ter acesso. E estes empregos devem ser organizados para permitirem a conciliação com a vida familiar. 
 
IHU On-Line - Com a crise financeira e as mudanças no mundo do trabalho, quais as possíveis alterações na estrutura das classes sociais?

Dominique Méda - Pode-se temer que os ricos sejam apenas um pouco menos ricos e os pobres, ainda mais pobres. E que uma parte dos assalariados pouco qualificados e vulneráveis vá aumentar a classe dos pobres. Tenho medo de um agravamento das desigualdades, o que estava já acontecendo antes da crise, como mostrou o último relatório da OIT sobre este assunto. Ora, parece-me que um dos grandes ensinamentos da crise – e é nisso que penso que ela é útil e pode nos trazer algo de bom – é que estamos todos no mesmo barco, ou seja, estamos todos ligados, interdependentes, e que as soluções devem, então, ser coletivas, comuns. Responder de maneira coletiva e razoável à crise consistiria em tomar decisões todos juntos e, sobretudo, colocar em prática políticas que impediriam que os mais desfavorecidos vejam sua situação ainda mais agravada pela crise. Então, estabelecer políticas de redistribuição, políticas fiscais, apoiando-se em recursos dos mais ricos para desenvolvê-las, e investir em todos os meios que permitam que a situação dos mais desfavorecidos não conheça uma nova degradação são ações que precisam urgentemente ser estabelecidas.

IHU On-Line - A senhora acredita que com a crise podem surgir novas normas trabalhistas e novas políticas de emprego que podem ir em direção de uma globalização mais justa?

Dominique Méda - É absolutamente o que seria preciso! Que estas normas em matéria de trabalho e de emprego sejam respeitadas internacionalmente e se tornem, de alguma forma, o centro do nosso desenvolvimento, um desenvolvimento mais civilizado, que permitiria a cada um acessar a este bem primeiro que é um emprego de qualidade. Mas, para isso, é preciso que vozes se façam ouvir agora, que a OIT seja parte conciliadora de todas as negociações que acontecem atualmente, e que o ponto de vista dos trabalhadores e do trabalho se torne absolutamente central. É preciso, também, que a OIT esteja presente em todas as mesas de negociação e adquira um peso preponderante, que os interesses que ele defende sejam tratados com igualdade com os interesses financeiros mundiais. Se o resultado da crise é uma nova regulação mundial que não envolva somente as finanças, então teremos ganhado algo com ela e uma etapa fundamental terá sido atravessada.

IHU On-Line - Neste cenário de crise, quais as perspectivas e os paradoxos do trabalho não qualificado? Como ficam as trajetórias profissionais em tempos de crise? 

Dominique Méda - Há um enorme risco de que as pessoas pouco qualificadas conheçam uma situação extremamente difícil. Já em tempos normais, se ainda posso dizer isso, as pessoas pouco qualificadas eram confrontadas com uma situação pouco invejada, pois se considera que elas são muito numerosas e seu trabalho pode ser feito por qualquer um, não vale nada. Tudo o que se dizia antes da crise sobre o fato de que o trabalho não qualificado era muito caro corre o risco de ser ainda ampliado. O trabalho pouco qualificado é aquele que as empresas substituem mais facilmente, do qual elas se livram mais facilmente, que é o mais colocado sob a pressão da concorrência mundial, ao menos para os setores não protegidos. Mesmo assim, a crise pode ser uma oportunidade se aproveitarmos os fechamentos de alguns setores para melhorar concretamente a qualificação das pessoas e para permitir-lhes, assim, acessar outros tipos de trabalho, mais qualificados, menos ameaçados. Tínhamos necessidade já antes da crise de investir concretamente na qualificação, mas essa é uma constatação ainda mais real hoje. Isto significa que devemos destinar grandes somas à requalificação da mão-de-obra, que está hoje ameaçada. Este é um investimento extremamente importante. É assim que permitimos a estas pessoas evitarem ter trajetórias muito destruídas: tudo deve ser estabelecido para formá-las no próprio seio do seu emprego se elas estiverem empregadas, a fim de prevenir a obsolescência das competências, para dar-lhes um salário desemprego decente se elas perdem seu emprego, assim como uma formação, permitindo-lhes de se reconverter.

IHU On-Line - Como a senhora analisa, as novas formas de resistência dos trabalhadores hoje, que não fazem mais apenas greves? Qual sua opinião sobre os casos de sequestros dos patrões pelos empregados na França?

Dominique Méda - Os assalariados resistem muito pouco, e os sequestros constituem somente testemunhos pouco numerosos da angústia dos trabalhadores. Na França, os assalariados estão desesperados. Já antes da crise, sua moral não estava elevada. Em toda a Europa, os franceses são os menos satisfeitos com seu trabalho, os que mais acham que suas condições de trabalho são ruins e os que têm mais medo de cair no desemprego ou de serem excluídos. Hoje, em certas empresas, os assalariados se encontram em situações terríveis e parece que algumas empresas aproveitam disso para se livrarem de sua mão-de-obra mais do que precisariam. Como se para algumas o ideal consistisse verdadeiramente em produzir com o mínimo de trabalho possível, como se precisassem reduzir sempre mais a quantidade de trabalho utilizada ao longo da produção. A crise deveria ser a oportunidade de repensar o lugar do trabalho na nossa sociedade: e isto em um duplo sentido. É preciso verdadeiramente que nos interroguemos sobre o lugar que a produção deve ter na nossa vida social. Além disso, é preciso saber exatamente o que representa o trabalho em nossas sociedades, o que queremos fazer dele. Trata-se de um simples fator de produção, e, então, o crescimento é o verdadeiro objetivo e podemos maltratar o trabalho ou reduzi-lo à porção adequada (é a mensagem que nos traz o pensamento econômico clássico)? Ou ele é verdadeiramente a essência do homem, a sua liberdade criadora? Mas, então, é preciso colocar isso em prática para que o trabalho permita ao trabalhador expressar-se e realizar-se nele: isto supõe uma revisão total de nossas representações, de nossos objetivos, de nossa concepção de empresa. Supõe uma revolução.

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