Edição 291 | 04 Mai 2009

Perfil Popular - Nestor Moraes

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Os sonhos não conhecem obstáculos. Esta frase otimista não apareceu aqui em vão. Ela é o lema de vida de Nestor Moraes, vereador, empresário e deficiente físico que vive em São Leopoldo, mas nasceu em Morro Reuter-RS. As limitações físicas nunca foram impedimento para este homem que tem uma das histórias de vida mais fascinantes que a editoria Perfil Popular desta revista já publicou. Leia, a seguir, a trajetória de um verdadeiro lutador, que não tem limites para ajudar os outros e ser feliz.

De origem alemã, Nestor Moraes nasceu na localidade de Picada São Paulo, no interior do município de Morro Reuter-RS. Na família, eram dez irmãos e, desses dez, seis são deficientes físicos, inclusive Nestor. Quatro andam de cadeira de rodas e dois caminham com dificuldade. Nestor parou de caminhar com 17 anos. A deficiência veio de nascença. Ele explica que é uma deficiência genética, não sanguínea e que tem origem no núcleo da célula da medula central. “Tanto a mãe como o pai tiveram deficiência nesta célula e eles se encontraram. É um caso raríssimo, pode ser que seja o único no Brasil e até no mundo.”

Nestor Moraes tem a sua história de vida contada no livro Os sonhos não conhecem obstáculos, escrito por Wilson Amaral e publicado em 2005 pela editora Laboratório do Livro, de Porto Alegre. O título da obra é o lema de vida de Nestor. “Essa frase se encaixa bem na minha vida. Tudo o que eu fiz desde a infância é vencer desafios.”

O sonho de Nestor sempre era ser jogador de futebol. Mas com 5, 6 anos ele ainda não entendia o que era ser deficiente. “A gente morava na colônia, não tinha assistência, não tinha médico. Com o tempo, descobri que a deficiência era uma coisa séria e vi que meu sonho de ser jogador começou a ir para longe”, conta.

Quando começou a usar a cadeira de rodas, aos 17 anos, ele já tinha muito forte a vontade de querer crescer na vida. Sempre foi um aluno destacado, preocupado em ter mais conhecimento. “Eu fazia uma média de 7 a 8 horas por dia de leitura. E isso me possibilitou um conhecimento bastante amplo.”

Nestor morou com pais até os 17 anos, e viu que futuro na colônia ele não iria ter. “Daí decidi vir para São Leopoldo, em 1973, pois eu tinha familiares morando aqui. Cursei o segundo grau na Escola Pedro Schneider, o ‘Pedrinho’. Depois, iniciei o curso de Ciências Físicas e Matemáticas na Unisinos, por dois ou três anos. E daí comecei com a minha empresa, a Eletrosinos, e me tornei empresário. Dei um tempo no estudo e esse ‘tempo’ dura até hoje”, confessa. Nestor se deu bem com a empresa, que se tornou conceituada em São Leopoldo e no Rio Grande do Sul. Viajou todo o Estado, cidade por cidade, para ganhar clientela. Nunca deixou de se aperfeiçoar como empresário. E já recebeu vários prêmios de destaque empresarial, de homem de sucesso e de cidadão leopoldense, entre outros.

No esporte, Nestor também se destacou. Considerado um dos esportistas mais acentuados em São Leopoldo, está sempre participando dos treinos e jogos. Atualmente, é representante do Internacional em São Leopoldo.

Mas o que mais gratifica Nestor é poder trabalhar pelas pessoas com deficiência. É uma luta de mais de 30 anos, que o fez abandonar sua carreira de empresário e entrar na política, para defender essa causa. Desde janeiro deste ano, ele assumiu o primeiro mandato como vereador em São Leopoldo. “Por muito tempo, o deficiente foi excluído da sociedade. Eu quis mostrar o que é realmente ser um deficiente: as dificuldades, as barreiras, e tudo o que eu enfrentava. Há 30 anos, não dá para comparar o que a gente enfrentava. Não tinha acesso de ônibus, não tinha acesso aos prédios, às calçadas, às escolas. A própria Unisinos não tinha nada. Quando eu estudei lá, meu irmão tinha que me carregar no colo um bom pedaço onde eu não podia andar de cadeira. Eu sempre usei essas dificuldades e barreiras para transpô-las, enfrentei tudo para chegar onde estou hoje”, relata.

Nestor defende que essa luta é muito válida, porque, segundo ele, todos nós, um dia, seremos deficientes. “Quando chegarmos aos 70, 80, 90 anos, vamos portar deficiências: pode ser física, visual, auditiva. Todos nós temos alguma relação com algum deficiente, nem que seja na nossa família, um avô, uma avó. Eu penso que quem é deficiente é a sociedade, não eu. Se construo uma casa para mim, com certeza não vou colocar escadaria. Uma pessoa que constrói uma casa com escada não faz isso para ela no futuro. A nossa sociedade tem que mudar essa concepção. Ela tem que ser adaptada para todos. Uma escada ou uma rampa dão acesso da mesma forma. E nós temos esse direito”, argumenta.  

Nestor acredita que as próprias famílias criam barreiras, porque não aceitam ter um filho deficiente. Para ele, o preconceito começa em casa. “E daí chega na sociedade e é apontado como ‘coitadinho’. Não é dessa maneira que temos que pensar. Ser diferente é ser igual também. A mídia, a imprensa, as novelas, tudo está enfatizando a questão do deficiente, e com mais respeito e dignidade. Somos 14% da população brasileira. É muita coisa! Hoje, as drogas provocam um número incrível de deficientes em acidentes de carro, acidentes de trabalho. A pessoa não morre, mas fica gravemente ferida. Muitas vezes perde uma perna, um braço ou fica com outro tipo de sequela. Alguém tem que se preocupar com isso. E, enquanto eu respirar, vou continuar fazendo a minha parte, nem que seja pouco”. Nestor enfatiza que não entrou na política para ter benefício próprio. “Se fosse para ganhar dinheiro, eu continuava como empresário e teria mais do que como vereador. Mas apareceu essa oportunidade para mostrar que nós também podemos participar da política. E eu luto não apenas pela causa dos deficientes, mas também defendo os direitos do empresariado e a causa da natureza e do meio ambiente.” Ele é um apaixonado por essa causa. A situação do Rio dos Sinos o preocupa muito. “Cada um tem que ter noção da gravidade da situação do Planeta.”

Inspiração e sensibilidade

Nestor sempre foi um líder em todos os locais. Nunca se contentou com o pouco ou o pequeno. Ele sonhava e ia em busca daquele sonho. “O pai e a mãe nunca sentiram pena de nós. Se a gente precisava apanhar, levar uma chinelada, eles davam, porque queriam que a gente fosse bem na vida. Eles sempre deram força para a gente”, reconhece. Outra coisa que sempre o ajudou foi o apoio dos amigos. Quando morreu a sua mãe, ele usou essa morte não como uma tristeza. “Tenho ela como um exemplo e isso me transforma, me dá forças. Eu sinto até hoje a alegria que ela me passava e isso me motiva.”

Nestor não sabe explicar como é a sua fé, só sabe que ela é muito forte. “Sou católico pela minha família, mas não sou muito de ir na Igreja. Eu não deixo de rezar um dia. Agradeço por tudo o que me aconteceu durante o dia. Tenho uma segurança tão forte. Tudo o que acontece comigo, eu sei que Deus quis. Sou muito flexível pela fé que tenho. Tudo o que eu faço é movido pela fé.”

O dia “D”

Quando parou de caminhar, Nestor poderia ter dito “ah, minha vida acabou, não quero saber de mais nada”, porque ele conta que gostava de ir em bailes, em festas, namorar, jogar futebol. E,aos 17 anos, quando ia começar a vida, teve que sentar em uma cadeira de rodas. E isso aconteceu no dia das mães. “Eu parei de caminhar e me arrastava pelo chão, engatinhando com o apoio das mãos e dos joelhos, porque eu ainda não tinha cadeira de rodas. Minha mãe viu aquela cena e me abraçou bem forte, já começando a chorar. Ela disse ‘eu queria que Deus tirasse as minhas pernas e desse pra ti’. Aquilo me chocou, mas eu não podia chorar, não podia mostrar pra ela que eu estava triste. Daí eu disse: ‘Mãe, eu posso ter parado de caminhar, mas, a partir de hoje, eu garanto que a senhora vai ter um filho vencedor. Não vai ter barreira, nem desafios. Eu vou mostrar que vou ser alguém na vida’. A partir dali eu não tive mais limites. Todos os dias eram dias de glórias e vitórias. Enquanto eu respirar vou ser um lutador.”

Nestor escreveu uma carta para o presidente da República, que na época era o general Emílio Garrastazu Médici, pedindo uma cadeira de rodas e um colégio onde pudesse estudar e foi atendido. Foi quando começou a estudar no Pedrinho, em São Leopoldo, onde fez o segundo grau.

Talvez o maior desafio

Há 17 anos, Nestor teve um desvio na coluna de 144 graus. Sua coluna cervical começou a fechar, dificultando a passagem de sangue para o cérebro. Nestor desmaiava frequentemente, com falta de oxigenação no cérebro. Os médicos de vários estados examinaram e todos foram unânimes: não havia mais o que fazer, ele teria apenas mais dois anos de vida. “Eu olhei para o Velhinho lá em cima e disse ‘não, não é por aí, eu ainda não tenho minha missão cumprida, tenho muita coisa para fazer’. A fé sempre foi fundamental para mim. Ela é 95% do que me faz viver”, explica. Procurou um médico conhecido e pediu a ele que fizesse uma cirurgia para lhe salvar. “Eu garantia, pela minha fé. Eu assumi todos os riscos, porque sabia que não iria falhar.” O médico diz até hoje que jamais deveria ter atendido esse pedido, porque Nestor não tinha a mínima chance de sobreviver. Mas ele aceitou e fez, por ver tamanha fé que Nestor tinha. Foram feitas duas cirurgias em 60 dias, de sete horas cada. Na primeira, foram retiradas duas costelas e a coluna foi aberta. Na segunda, ele colocou duas hastes de ferro nas costas de Nestor, para a sustentação do corpo. “Isso travou ainda mais os meus movimentos e é pesado para me mexer. Mas me acostumei. Fiquei quase um ano engessado. Mas desanimar nunca. Quando tirei o gesso, pensei ‘agora começa uma nova vida’.”

ALDEF

Em 1985, Nestor fundou a Associação Leopoldense de Deficientes Físicos. Hoje, a Aldef tem 1800 deficientes cadastrados. Ele buscava apoio financeiro fora, mas em geral sempre tirou da renda da própria empresa para sustentar a Associação. Inclusive, construiu a sede da Aldef com recursos da sua empresa. Hoje, a instituição oferece cursos de informática, de artesanato, trabalha com a questão do transporte coletivo de deficientes, com colocações no mercado de trabalho, possui parcerias para qualificar o deficiente, luta por acessibilidade em escolas e empresas. Tudo o que se refere ao deficiente a Aldef acompanha: consegue cadeiras de roda, aparelhos auditivos e coisas do gênero. “Temos profissionais contratados com recursos da prefeitura, e temos vários voluntários. Oferecemos assessoria jurídica e psicológica. Não é difícil trabalhar com o deficiente. Ele não é baderneiro, não faz greve, ele aceita tudo o que lhe é oferecido, porque pensa que é assim que deve ser. Eu cobro deles que eles têm que lutar mais, não podem se conformar com as coisas. O futuro do deficiente é a liderança, para ser independente. Para mim, vai ser a maior glória o dia em que eu fechar os meus olhos para sempre e saber que fiz a minha parte.”    

Família

Nestor é casado há 17 anos com a Marlene, com quem teve uma filha, a Maíra, de 7 anos. “Ela mudou muito a minha vida. Me fez ficar mais caseiro. Os pais sempre querem que os filhos sejam o seu espelho. E eu gostaria que ela se identificasse com a minha luta. Sempre ensino a ela a importância de se relacionar bem com todos, de ter amigos. Peço que ela seja determinada, vá à luta do que quer. Estou dando a ela todas as oportunidades possíveis. Ela está na segunda série, e eu ajudo ela nos temas, acompanho, assim como a mãe. Queremos que ela brinque com outras crianças. A preocupação de que ela não se perca na vida é muito maior do que arrumar uma profissão do nosso gosto”, conta. 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição