Edição 291 | 04 Mai 2009

O centro da criação de valor é o trabalho imaterial

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Cesar Sanson

Cesar Sanson reflete sobre a subjetividade do trabalhador contemporâneo, tema de sua tese de doutorado

“Na sociedade pós-industrial/pós-fordista, se pede ao trabalhador que se disponha a inventar e a produzir novos procedimentos cooperativos, que colabore, que se explicite, apresente idéias”, afirma Cesar Sanson, pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores –CEPAT, com sede em Curitiba, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Segundo Sanson, “é a sua personalidade, a sua subjetividade que deve ser organizada e comandada. Cada vez mais a valorização do trabalho repousa sobre o conhecimento, sobre a capacidade de interação com a máquina, superando a mera subordinação”. Desta forma, continua o pesquisador do CEPAT, “a forma de trabalhar associada ao pós-fordismo é vista como a passagem de uma lógica da reprodução para uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de invenção”.
 
Cesar Sanson é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), com especialização em Economia e Trabalho, mestrado na área da Sociologia do Trabalho, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), e doutorado em Ciências Sociais, pela UFPR. Cesar Sanson já abordou o tema desenvolvido nesta entrevista na edição nº 60 dos Cadernos IHU Ideias, intitulada A emergência da nova subjetividade operária: a sociabilidade invertida, que está disponível no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Considerando que estamos transitando da sociedade industrial/fordista à sociedade pós-industrial/pós-fordista, o que caracteriza essa transição sob a perspectiva do mundo do trabalho?

Cesar Sanson - A sociedade industrial está em reviravolta. Há paradigmas que por longos períodos define o modo de pensar, as estruturas de conhecimento, a conformação de categorias explicativas que auxiliam na compreensão de uma representação da sociedade. O prefixo ‘pós’ [pós-industrial] remete para o fato de que as categorias que organizam a representação do paradigma da sociedade industrial já não dão conta de interpretar a chegada de outro momento histórico, ou seja, está-se diante de fatos novos. Agora, no novo paradigma, tendo presente a hegemonia da economia do imaterial e do trabalho imaterial, ao menos qualitativamente, muda-se a forma do sujeito do trabalho se relacionar com o mesmo e altera-se o padrão de exploração. Na sociedade industrial/fordista, o trabalho insere-se na esfera da reprodução, está preconcebido e atende a um padrão tecnológico e organizacional estruturado de antemão. As tarefas são rotineiras, repetitivas, e podem ser pré-codificadas e programadas para que as máquinas as executem. A relação homem/máquina é despojada de qualquer enriquecimento. Trata-se de uma relação racionalizada por procedimentos que manifestam uma interação mecanicista. Há um limite interposto pelo ‘saber morto’ objetivado na máquina que bloqueia a possibilidade do ‘saber vivo’ do operário. Como descreve Marx, o trabalhador entra no processo produtivo como um “acessório da oficina capitalista”.

Agora, na sociedade pós-industrial/pós-fordista, se pede ao trabalhador que se disponha a inventar e a produzir novos procedimentos cooperativos, que colabore, que se explicite, apresente ideias. “É a alma do operário que deve descer na oficina”, afirmam Lazzarato  e Negri  acerca das novas exigências do capital. É a sua personalidade, a sua subjetividade que deve ser organizada e comandada. Cada vez mais a valorização do trabalho repousa sobre o conhecimento, sobre a capacidade de interação com a máquina, superando a mera subordinação. Trata-se do que Corsani  denomina de “sistema de produção de conhecimentos por conhecimentos”. É nesse sentido que a forma de trabalhar associada ao pós-fordismo é vista como a passagem de uma lógica da reprodução para uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de invenção.

A sociedade industrial cindiu o trabalhador, o seu todo corpóreo, mente e corpo, e reduziu-o a uma máquina produtiva. Hoje, essa concepção de produção está sendo superada. Na nova forma de se organizar o trabalho e ativá-lo, busca-se a reconquista da parte do trabalho vivo que o desenvolvimento histórico do capitalismo tentou aniquilar. O conceito de força de trabalho na sociedade pós-industrial retoma a essência do seu significado, ou seja, a compreensão de que a força de trabalho é um todo corpóreo, reúne todas as faculdades, da força física à competência linguística. Como diz Virno : “Trinta anos atrás, em muitas fábricas, havia cartazes que intimavam: ‘Silêncio, aqui se trabalha!’. A principal novidade do pós-fordismo consiste em ter colocado a linguagem a trabalhar. Hoje, em algumas fábricas, podemos fixar dignamente cartazes invertidos aos de outros tempos: ‘Aqui se trabalha. Fale!’”. Essa é a mudança substancial.

IHU On-Line - O senhor poderia caracterizar melhor o que é o trabalho imaterial?

Cesar Sanson - No epicentro do deslocamento da sociedade industrial/fordista para a sociedade pós-industrial/pós-fordista, encontra-se a emergência da economia do imaterial e do trabalho imaterial. A nova forma de organizar o trabalho colocou no centro do processo produtivo os recursos imateriais. Que recursos são esses? O conhecimento, a comunicação e a cooperação. O novo modo produtivo tem a necessidade da incorporação do saber, do conhecimento, das habilidades do trabalhador, e se faz sempre mais na reativação do trabalho vivo, na cooperação inteligente e na linguagem comunicante. O que ser quer dizer aqui é que a principal fonte do valor reside agora na criatividade, na polivalência e na força de invenção dos assalariados e não apenas no capital fixo, a maquinaria. Como afirma Cocco, “o conceito de trabalho imaterial dá conta das dimensões subjetivas de um trabalho que se alimenta e alimenta uma dinâmica de conhecimento que não mais é controlada pelo capital e fixada em suas maquinarias, mas afere a rede social dos cérebros: o General Intellect”.

A capacidade de interação, de iniciativa, de disponibilidade, de ativação é requerente no modo de ser no trabalho das empresas, e o trabalhador não deve se contentar em reproduzir as capacidades predeterminadas e prescritas para o posto de trabalho que ocupa, mas sim desenvolver-se como um produto que continua ele mesmo a se produzir.

Outro aspecto relacionado ao trabalho imaterial, naquilo que lhe dá conteúdo, é o fato de que não se restringe ao processo produtivo, ao contrário, alimenta-se também das externalidades, de um conhecimento que vem de fora do trabalho fabril, de fora da fábrica.

Ao capital produtivo interessa a incorporação desse saber no chão de fábrica; o trabalhador é estimulado a socializar as suas aptidões acumuladas socialmente. Em suma, o trabalho imaterial cada vez mais se posta no centro do processo produtivo e apresenta implicações novas, principalmente na ativação de um trabalho que difere daquele que se realizava na sociedade industrial.

O que há de novo aqui é o fato de que o tempo de trabalho já não pode mais ser medido apenas pelas forças produtivas objetivadas na máquina-ferramenta do tempo fabril. O elemento novo é o plus acrescido pelo operário, o seu conhecimento, o seu saber, que extrapolam o tempo fabril e são incorporados ao processo produtivo. É nesta perspectiva que se pode falar que o trabalho imaterial se contrapõe à teoria marxiana da mais-valia ou, antes de tudo, exige uma atualização de sua teoria. Sob a hegemonia do trabalho imaterial, a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medido pelo tempo de trabalho individual ou coletivo, mas, sim, a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo e se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes produtivas.

IHU On-Line - Mas essa realidade do trabalho é hegemônica?

Cesar Sanson - Ainda não. O trabalho imaterial não se apresenta hegemônico quantitativamente no processo produtivo, mas já o é qualitativamente. Diria mais, o conceito de trabalho imaterial ainda é vista com reservas, uma vez que convive com a sociedade industrial e essa sociedade ainda é hegemônica. Os fundamentos básicos oriundos da Revolução Industrial – a produção em massa em grandes fábricas, a instituição do trabalho assalariado, o parcelamento das tarefas laborais, normas rígidas na definição das condições do trabalho, o movimento operário, o estabelecimento do contrato social laboral –, entre outros, perduram até hoje. Essa realidade, entretanto, está passando por mudanças. A sociedade industrial ainda é preponderante, mas a essência da forma de organizar a sua produção é empurrada cada vez mais para a periferia do núcleo propulsor do novo capitalismo e isso é que é importante perceber. Quando Marx estudou o trabalho industrial e a produção capitalista, eles representavam apenas uma parte da economia inglesa e de outros países europeus e apenas uma pequena fração da economia global. Na época, em termos quantitativos, a agricultura ainda era dominante, porém Marx identificou no capital e no trabalho industrial uma tendência que funcionaria como motor de futuras transformações. Poder-se-ia afirmar que o trabalho imaterial se encontra hoje em posição semelhante à que estava o trabalho industrial estudado por Marx há pouco mais de 150 anos atrás. O decisivo é compreender, como afirma Gorz , que “o coração, o centro da criação de valor, é o trabalho imaterial”.

IHU On-Line - O que muda na vida do trabalhador com a ocorrência do trabalho imaterial?

Cesar Sanson - Considerando-se que cada vez mais a fonte do valor reside na força de invenção dos trabalhadores, o capital em sua versão pós-industrial investe na bios – na vida – do trabalhador, ou seja, o capital procura ativar os recursos imateriais – o conhecimento, a competência lingüística, a cooperação singular que cada um agrega ao processo produtivo. Se na sociedade industrial as características pessoais dos trabalhadores são desconsideradas, o seu conhecimento é desqualificado, o seu saber não é reconhecido e a sua subjetividade é dispensada; na sociedade pós-industrial, demanda-se trabalhador comunicativo, participativo, polivalente, flexível, e que acima de tudo com o seu conhecimento enriqueça o processo produtivo. Agora, a capacidade de interação, de iniciativa, de disponibilidade, de ativação, é requerente no modo de ser no trabalho das empresas. É evidente que a sutileza do capital reside no fato de que se espera que esse engajamento seja voluntário. Assiste-se a uma espécie de prescrição da subjetividade, ou seja, a obtenção, por parte da empresa, de um consentimento voluntário do trabalhador aos seus objetivos, fazendo com que ele assuma os preceitos da empresa como se fossem seus. Como diz Linhart,  “os administradores pedem para seus funcionários serem os militantes incondicionais da empresa, mostrando lealdade, disponibilidade, além de competência”.

Tem-se aqui uma distinção daquele trabalhador do período anterior. Ainda mais se na sociedade industrial o trabalho situa-se fora do operário, e encerrada a jornada o trabalho fica na fábrica, agora, o trabalho subsume toda a pessoa, invade todo o seu ser, não é mais exterior, mas foi interiorizado, é constitutivo ao operário. O tempo do não-trabalho confunde-se ao tempo do trabalho, ocasionando uma mudança na relação do sujeito com a produção e o seu próprio tempo. Assiste-se a uma ruptura da concepção de trabalho da sociedade industrial. O capital solicita um engajamento total do trabalhador. Pode-se falar em uma prescrição da subjetividade orientada pela mobilização e engajamento de todas as faculdades e os recursos que podem ser extraídos e oferecidos pelo sujeito do trabalho.

IHU On-Line - Sob a perspectiva das lutas operárias quais são as novidades os desafios que se colocam a partir dessa transição da sociedade industrial/fordista para a sociedade pós-industrial/pós-fordista?

Cesar Sanson - A novidade está no fato de que o trabalho imaterial indica que as formas centrais de cooperação produtiva já não são criadas apenas pelo capital como parte do projeto para organizar o trabalho, mas que também emergem das energias produtivas do próprio trabalho, ou seja, o sujeito do trabalho joga um papel decisivo como parte integrante da própria forma de organizar a produção. É nessa perspectiva que pode afirmar que, cada vez mais, trabalhar é produzir-se. A produção cada vez mais se torna biopolítica no sentido foucaultiano.  Se, por um lado, é na bios – na vida do trabalhador – que o capital investe procurando ativar os recursos imateriais próprios de cada operário na perspectiva que esses recursos sejam disponibilizados ao capital, por outro, eles também assumem um caráter permanente de produção de si, isto é, essa mesma subjetividade prescrita pelo capital também resulta em “produção de si”, e nesse sentido é portadora de elementos que podem abrir caminhos para a transformação do próprio sujeito do trabalho. Quer-se dizer que a nova forma de organizar o trabalho abre a possibilidade da conquista de uma autonomia maior, uma vez que os recursos imateriais disponibilizados no processo produtivo são também ganhos e aquisição dos próprios trabalhadores. Ao requerer o engajamento do trabalhador, o comprometimento da sua subjetividade no processo produtivo e procurar colocá-lo sob sua dinâmica – biopoder –, produz-se também a biopolítica, ou seja, uma reposta ao biopoder do capital.

Defende-se aqui a ideia de que a forma de organizar o trabalho na sociedade pós-industrial/pós-fordista traz dentro de si o antagonismo que pode fundar as novas lutas sociais. O processo produtivo da fábrica pós-fordista, com todas as contradições que encerra, valendo-se de uma tendência de exploração das potencialidades singulares dos trabalhadores cria também uma base produtiva comum. Esse comum que é explorado pelo capital e que se manifesta como expropriação por parte do capital do excedente expressivo e da cooperação do trabalho vivo, também pode ser a base de outra lógica: o comum não apenas como fundamento do capital, mas como sustentáculo de  um projeto de emancipação dos trabalhadores naquilo que diz respeito aos seus interesses. É no comum que se encontra a base de exploração, mas, ao mesmo tempo, a subjetividade de resistência que se configura na multidão. Ou seja, o comum é a base da multidão e é a multiplicidade de subjetividades que dá conteúdo à multidão.

Segundo Negri e Hardt, a multidão “é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum”. Embora se mantenha múltipla e internamente diferente, a multidão é capaz de agir em comum. As mutações do capital podem levar a classe a uma outra configuração e a um outro patamar de lutas. A classe assume a identidade de multidão. A classe – conceito da sociedade industrial – transforma-se em multidão na sociedade pós-industrial porque a possibilidade de superação e oposição ao capital far-se-á cada vez mais pela capacidade dos trabalhadores tornarem comum – num projeto coletivo – os recursos imateriais que hoje são apropriados e/ou expropriados pelos donos do capital. No sentido da revolta contra o capital, classe e multidão possuem o mesmo significado e não se opõem ao contrário do que muitos pensam.

IHU On-Line - A afirmação de que o conceito de classe já não é suficiente para dar conta da nova realidade do trabalho e de que estamos transitando da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial é bastante contestada.

Cesar Sanson - Na verdade, precisamos uma nova enleitung,  como afirma Negri numa referência a Marx. Interpretar o mundo do trabalho de hoje com o “olhar” das categorias da sociedade industrial é insuficiente para se dar conta do novo. É recorrente, na sociologia do trabalho, uma interpretação que enxerga nas mudanças do capitalismo, em sua versão neoliberal, um recobrar da exploração que se aproxima daquela praticada logo após a Revolução Industrial. A pertinência dessa análise se encontra no fato de que se assiste a um ataque agressivo do capital ao trabalho que se manifesta no trinômio flexilibilização, terceirização e precarização. Estar-se-ia diante de uma vingança do capital após a conquista do Estado de Bem-Estar Social. Livre das amarras da luta que se travou na arena pública, o capital retomou e deslocou o debate para a arena privada, ou seja, de agora em diante, é o mercado que define as regras do jogo. Nessa perspectiva, as relações de trabalho se fazem sempre e cada vez mais num processo de relações institucionais de individualização, na qual os atores do trabalho se veem enfraquecidos, vide os sindicatos. Dessa forma, poder-se-ia interpretar que se assiste a uma involução das forças do trabalho, ou até mesmo que esta se tornou refém do capital e se encontra derrotada e sem forças de reação. O problema dessa análise reside no fato de que costumeiramente se utiliza as categorias da sociedade industrial como critério comparativo às lutas que se desenvolvem hoje, ou seja, desejar-se-ia uma retomada do movimento operário tendo como referência o que um dia ele já foi e não voltará a ser. A impossibilidade de que o sujeito do trabalho se manifeste em similitude ao que um dia ele já foi se deve ao fato de que a realidade do trabalho mudou radicalmente. Esse fato não significa absolutamente que ações coletivas deixarão de existir, e que as greves, as insurreições e os motins contra a exploração do capital cessarão.

O que é preciso perceber é que se quase dois séculos de Revolução Industrial houve a possibilidade que se compusesse uma subjetividade do sujeito do trabalho que desaguou na constituição da classe operária e em determinadas formas de luta, agora as mutações do capital levarão a classe a uma outra configuração e a um outro patamar de lutas, nem melhor, nem pior, apenas diferente. Procurar as premissas daquilo que constitui a identidade, a consciência e as potencialidades da ação coletiva dos trabalhadores no mundo do trabalho de hoje apenas através das categorias da sociedade fordista leva a incorreções analíticas, como a interpretação de que se está diante de uma involução das forças do trabalho. Uma leitura aparente, superficial da realidade do trabalho, remete a essa conclusão, porém trata-se de desvelar os elementos que não estão na superfície, mas que se encontram adormecidos e que a qualquer momento podem vir à tona. 

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