Edição 288 | 06 Abril 2009

Cosmos. O sacramento primordial. Os símbolos da luz e da água

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Márcia Junges

Elementos rituais possibilitam nossa participação na Páscoa; é preciso deixar o discurso racional de lado e viver a linguagem simbólica dos ritos, uma linguagem “total”, que atinge o ser humano por completo, acentua Ione Buyst

Analisando os símbolos da água e da luz na liturgia cristã da vigília pascal, a teóloga Ione Buyst, monja beneditina, disse, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, que “o jogo de trevas e luz, escuridão da noite e velas acesas junto com o Círio Pascal torna-se para os cristãos, símbolos de Cristo Ressuscitado que passou pelas trevas da perseguição, da tortura e da morte, mas que saiu de tudo isso vitorioso, pela graça de Deus”. Ela complementa: “No caso da vigília pascal, todos os elementos rituais, num grande jogo simbólico, não apenas narram a páscoa-passagem de Jesus da morte para a vida, mas possibilitam nossa participação nesta superação de todas as 'mortes', ainda que passando por elas. Muito mais abrangente que o discurso racional, a linguagem simbólica é uma linguagem 'total', que atinge o ser humano em sua totalidade: seu corpo, mente, coração, espírito”. Junto com autores como Thomas Berry e Brian Swimme, Buyst propõe que seja aplicado ao cosmos o conceito de “sacramento primordial”, colaborando, assim, “na conscientização dos participantes da liturgia cristã do fato que fazemos parte do cosmos e do dever sagrado de preservar a vida em todas as suas formas. Trata-se de - a partir da ação ritual - ajudar na superação da atitude antropocêntrica e dualista em relação ao cosmos e levar a um compromisso com a preservação da natureza, do planeta, da vida em todas as suas formas”.

Buyst é doutora em Teologia Dogmática com Concentração em Liturgia, pelo Centro de Liturgia da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo. Atua no ensino da liturgia em várias instâncias. Assessora cursos, projetos, retiros e encontros de formação e pastoral litúrgicas. É autora de vários livros e artigos, tanto no campo acadêmico, quanto no campo pastoral e popular. Durante 18 anos, coordenou o Serviço Arquidiocesano de Pastoral Litúrgica da Arquidiocese de Ribeirão Preto. Foi professora de teologia e pastoral litúrgica na PUC de Campinas, membro da equipe dirigente do Centro de Liturgia (São Paulo), onde continua lecionando no Curso de Atualização e nas Semanas de Liturgia. É professora visitante do Mestrado Profissionalizante em Liturgia do IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-graduação em Teologia), da EST (Escola de Teologia) de São Leopoldo. É articulista e membro do conselho de redação da Revista de Liturgia, São Paulo, desde 1972; membro e co-fundadora da ASLI (Associação dos Liturgistas do Brasil) e da CELEBRA, Rede de Animação Litúrgica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o símbolo da luz aparece no rito da vigília pascal?

Ione Buyst - A vigília pascal é celebrada no sábado à noite, ou de madrugada. A primeira parte desta celebração é uma “liturgia da luz”, realizada de preferência fora do local de celebração. No escuro, apenas iluminada com o brilho da lua cheia, a comunidade cristã acende o fogo novo. Onde isso é possível, costuma-se fazer uma fogueira e todas as pessoas participantes ficam ao redor, observando, vendo como o clarão do fogo ilumina a noite. Depois de uma breve motivação, indicando o sentido da vigília, faz-se a bênção do fogo e, em seguida, o Círio Pascal é trazido e pode ser “preparado” com várias inscrições que indicam o sentido desta grande vela para nós: simboliza a luz de Cristo ressuscitado que dissipa as trevas de nosso coração, de nossa mente, de nossa vida e da vida do “mundo”. Com a aclamação Eis a luz de Cristo..., repetida três vezes, solenemente, com o Círio Pascal erguido, inicia-se a procissão, enquanto todos acendem sua vela pequena ao grande Círio pascal. O cortejo luminoso avança, abrindo ala no meio da escuridão; faz-nos lembrar como no relato do êxodo do povo judeu da escravidão do Egito uma coluna de fogo ia à frente iluminando e mostrando o caminho. Chegando no lugar da celebração, é cantado o “Exulte”, a solene proclamação da páscoa, entre luzes e incenso. É exaltada a “noite mil vezes feliz”, recordando os momentos fortes da história da salvação, desde a saída da escravidão no Egito, até a noite em que Cristo “saiu” do reino da morte e abriu um caminho de esperança para quem está nas “trevas” do sofrimento, da desesperança, da dúvida.

As estrofes cantadas pelo diácono ou outro ministro são intercalados por vibrante aclamação cantada por todo o povo reunido, de velas acesas nas mãos, bendizendo o Cristo ressuscitado: Bendito seja o Cristo Senhor, que é do Pai imortal esplendor. Portanto, o jogo de trevas e luz, escuridão da noite e velas acesas, junto com o Círio Pascal, torna-se para nós, cristãos, símbolos de Cristo Ressuscitado que passou pelas trevas da perseguição, da tortura e da morte, mas que saiu de tudo isso vitorioso, pela graça de Deus. É com este simbolismo que expressamos e reforçamos nossa fé e nossa convicção de que o mal e a morte, a corrupção, as crises pessoais e sociais, a crise econômica e crise ecológica não têm a última palavra. Vale a pena apostar na mudança para um “outro mundo possível” e trabalhar para que ele aconteça.

IHU On-Line - E quanto ao símbolo da água, como ele aparece?

Ione Buyst - Depois da liturgia da luz, participamos de uma longa “liturgia da Palavra”, na qual ouvimos relatos fundantes de nossa fé cristã, como a criação do cosmos, a saída da escravidão do Egito e outros, tudo isso intercalado com salmos e orações e desembocando na proclamação solene do evangelho da ressurreição introduzido pelo festivo canto do “aleluia”. Somente depois de termos ouvido e comentado estes relatos estamos preparados para a “liturgia da água”, na qual novos membros serão introduzidos na comunidade pelo batismo, “banho na água e no Espírito”, e na qual toda a comunidade de fé renovará suas promessas batismais e será aspergida com a água batismal. Nesta liturgia, o centro é a fonte batismal, um poço de água (ou na falta dele, uma pia) na qual serão mergulhados (ou molhados) os que se prepararam durante longo tempo para este momento. Uma oração proclamada sobre a água aponta o sentido que ela tem para a comunidade cristã. Num primeiro momento, são recordados episódios bíblicos referente à água: o Espírito que pairava sobre as águas na criação do mundo, a família de Noé salva do dilúvio, o Mar Vermelho que se abriu em duas alas para o povo de Israel passar “a pé enxuto”, Jesus “ungido” pelo Espírito Santo ao ser batizado por João Batista no rio Jordão, o sangue a água escorrendo do lado de Jesus morrendo na cruz, os apóstolos sendo enviados por Jesus a todos os povos para fazer discípulos e batizá-los. Em seguida, é invocada a força do Espírito Santo sobre a água, para que as pessoas que nela forem mergulhadas (“sepultadas”, segundo a expressão de São Paulo na carta aos Romanos 6,4) ressurjam com ele para uma vida nova.

IHU On-Line - De que forma os cristãos se valem desses símbolos para falarem de
vida, de ressurreição?

Ione Buyst - Fogo e luz, assim como água, entram na liturgia pascal como elementos da ação ritual. Seu sentido simbólico cristão parte da base antropológica (fogo e luz que iluminam; água na qual se pode afogar a não ser que alguém venha em nosso socorro e nos salve), mas – como vimos acima, ao falar da oração sobre a água – são os textos bíblico-litúrgicos que definem seu sentido cristão, sua eficácia sacramental, ou seja, aquilo que pretendem realizar nos participantes. No fim das contas, todos os símbolos e ações simbólicas na liturgia cristã se referem a Jesus Cristo. Não apenas falam sobre Jesus, mas estabelecem um encontro, uma relação. No caso da vigília pascal, todos os elementos rituais, num grande jogo simbólico, não apenas narram a páscoa-passagem de Jesus da morte para a vida, mas possibilitam nossa participação nesta superação de todas as “mortes”, ainda que passando por elas. Muito mais abrangente que o discurso racional, a linguagem simbólica é uma linguagem “total”, que atinge o ser humano em sua totalidade: seu corpo, mente, coração, espírito. Trabalha com elementos cósmicos e culturais, com leituras e orações, com canto e música, com gestos e movimentos do corpo. Envolve todos os nossos sentidos, e através deles, nossa compreensão intelectual, nossa imaginação, nossa afetividade, nosso “sonho”, nossas “utopias”...

IHU On-Line - Como o significado sagrado das águas pode inspirar os seres humanos a respeitarem mais a natureza e viverem em harmonia com o cosmos?

Ione Buyst - Em qualquer tradição cultual, a ação ritual transmite e “imprime” a seu modo nos participantes a visão de mundo daquela comunidade de culto. Mas, para que isto seja percebido e tenha efeito em nossa maneira de viver, é necessário que as ações litúrgicas não sejam realizadas de forma rotineira, mecanicamente. Há uma maneira de derramar a água do batismo que desperta para o senso do sagrado, e há outras que a banalizam.  O significado sagrado aparecerá antes de tudo pela maneira como tratamos a água na ação ritual: com admiração, respeito e gratidão, porque é maravilhosa, é bonita, é um dom de Deus. Isso transparece na maneira como a carregamos, olhamos, tocamos, derramamos, aspergimos... Também os textos bíblico-litúrgicos, as preces e os cantos nos ajudam a admirar e valorizar a água, contanto que tenhamos olhos, ouvidos e sentidos abertos e atentos para perceber aquilo que a liturgia nos “diz” e faz acontecer.

Além disso, é necessário aprofundar e partilhar o fundamento teológico da sacralidade da água, assim como de outros elementos cósmicos usados na liturgia. Será preciso ir à raiz do caráter sacramental do próprio cosmos. Alguns autores, como Thomas Berry  e Brian Swimme,  propõem que apliquemos ao cosmos o conceito de “sacramento primordial”, e assim colaboremos na conscientização dos participantes da liturgia cristã do fato que fazemos parte do cosmos e do dever sagrado de preservar a vida em todas as suas formas. Trata-se de - a partir da ação ritual - ajudar na superação da atitude antropocêntrica e dualista em relação ao cosmos e levar a um compromisso com a preservação da natureza, do planeta, da vida em todas as suas formas.

Não se deve “invadir” o momento da celebração com discursos sobrepostos, como tantas vezes acontece. A liturgia tem, se bem preparada e celebrada, a capacidade de levar seus participantes a uma atitude respeitosa não somente para com Deus e para com as outras pessoas, mas também para com os objetos e os elementos da natureza usados na celebração, exatamente porque, de alguma forma, o próprio Deus se revela neles. Que sentido teria celebrar o Deus da vida, o Deus Criador, o Filho Redentor que veio restaurar o projeto do Pai, o Espírito Santo vivificador e não colaborar para a sobrevivência do planeta e da vida na terra, ameaçada pela ganância e a falta de responsabilidade dos seres humanos? 

IHU On-Line - Falar do divino e de suas simbologias, juntamente com o significado da Paixão de Cristo, pode nos fazer recuperar o sentido originário da Páscoa? Por quê?

Ione Buyst - O sentido originário da páscoa está inscrito nos ritos. É preciso redescobrir sua linguagem, mais parecido com a linguagem da arte do que com a linguagem de um discurso racional, explicativo. Não se trata, portanto, de falar sobre o divino, os símbolos, o significado dos ritos (pelo menos não durante a celebração). Não é possível “explicar” os símbolos. Isso simplesmente os destrói! Ao contrário, é preciso como que colocar a razão discursiva entre parentes e... ver, ouvir, sentir, apalpar, cheirar... e a partir daí perceber o significado profundo para nossa vida, relacionado com a fé, no caso, relacionado com o mistério pascal (vida, paixão, morte-ressurreição) de Jesus Cristo. O sentido do Paixão e da Páscoa é transmitido pela participação consciente, ativa, mística, plena, frutuosa... das ações rituais do tríduo pascal. É preciso, então, entrar no ‘jogo’ ritual, participando ativamente, conscientemente, integralmente, holisticamente... Mas isso se aprende na iniciação e nós perdemos a prática da iniciação cristã. É urgente recuperá-la, começando com os ministros que deveriam ser os iniciadores.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Ione Buyst - Penso que devemos investir na formação da sensibilidade simbólica, poética, espiritual, mística, desde o âmbito familiar à formação acadêmica, desde a catequese para todas as idades (em forma de catecumenato), aos responsáveis pela condução dos ritos litúrgicos. É urgente reformular a metodologia do estudo dos sacramentos, iniciando com a análise ritual de sua liturgia (ritos, preces, ações simbólicas e textos bíblicos, espaço litúrgico e canto), ou seja, integrando liturgia, teologia e espiritualidade, retomando o método mistagógico.

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