Edição 287 | 30 Março 2009

A crise e a esquerda. Diagnóstico e prognóstico diferentes

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Patricia Fachin

A esquerda está dividida quando o tema é encontrar soluções para a crise financeira internacional. Mas isso não representa falta de propostas e esvaziamento teórico, considera o economista Paul Singer 

Há 60 anos, a esquerda diverge sobre posições políticas e econômicas. Entretanto, esse indicativo não demonstra, na opinião do economista Paul Singer, um vazio teórico por parte da esquerda. Ele divide a esquerda em duas partes. A “keynesiana”, explica, “propõe a restauração do crédito mediante a nacionalização dos bancos quebrados, além do aumento vigoroso da inversão pública e de políticas redistributivas da renda, que recuperem o mercado interno”. Por sua vez, a esquerda herdeira da ortodoxia marxista “tem como proposta lógica a revolução proletária como única saída”.
Defensor de alternativas energéticas ecologicamente corretas, Singer também aposta no crescimento econômico, e diz que não é preciso renunciar ao próprio crescimento. Este, argumenta, “pode ser proporcionado também pelo ecossocialismo, sem perda de recursos naturais irrecuperáveis”. Para ele, a construção de uma sociedade ecossocialista é possível e já está acontecendo através de uma “miríade de empreendimentos solidários, nos numerosos interstícios que o capitalismo se mostra já há muito tempo incapaz de preencher”.

Singer é graduado em Economia e Administração e doutor em Sociologia, pela Universidade de São Paulo (USP). É professor da USP desde 1984, e secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Além disso, é autor de vários livros, entre eles Globalização e desemprego: diagnósticos e alternativas (São Paulo: Contexto, 1998), O Brasil na crise: perigos e oportunidades (São Paulo: Contexto, 1999), Para entender o mundo financeiro (São Paulo: Contexto, 2000) e Economia socialista (São Leopoldo: Perseu Abramo, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Duas ideias se tornaram unânimes: a crise será duradoura e os seus efeitos devastadores. Arrastará parte considerável do planeta para a recessão, e os indicadores sociais, particularmente do emprego, se agravarão. Por outro lado, observa-se dificuldades da esquerda em apresentar propostas. O senhor concorda com a análise que assistimos a certo vazio teórico das esquerdas? Quais são, para o senhor, as propostas da esquerda frente à crise?

Paul Singer - Não há unanimidade na esquerda quanto ao diagnóstico das causas da crise e por consequência tampouco quanto ao prognóstico e menos ainda no que propor para superar a crise e criar uma economia imune a crises como esta. Cumpre notar que a última vez em que a esquerda mundial pôde se unir foi no combate prioritário ao nazifascismo na Segunda Guerra Mundial já faz mais de 60 anos. Desde então, ela sempre esteve dividida entre diversas interpretações e diferentes programas.

Hoje, uma parte da esquerda sustenta que o keynesianismo apresenta um repertório de políticas anticíclicas que se mostrou eficaz contra a recessão dos anos 1930 e continua sendo eficaz atualmente. Por isso mesmo, a maioria dos governos afetados pela crise estão desenvolvendo programas keynesianos, sem sequer se dar ao trabalho de justificar a reviravolta face às teses neoliberais, até há pouco hegemônicas. O diagnóstico da crise para esta parte da esquerda (à qual pertenço) é que ela tem por causa o estouro de bolhas imobiliárias em diversos países, que provocou ampla inadimplência de credores hipotecários, arruinando os maiores intermediários financeiros do mundo, nos Estados Unidos, na União Europeia e no Japão. A crise financeira resultante eliminou quase toda oferta de crédito à produção, ao comércio e ao consumo, provocando, assim, aguda retração da economia real. O que acarreta rápido aumento do desemprego e da pobreza nos países mais industrializados.

Outra parte da esquerda atribui a crise a uma falha sistêmica do modo de produção; a crise seria de superprodução causada pela concentração da renda resultante das políticas neoliberais. A insuficiência da demanda popular por bens e serviços de consumo levaria à queda da taxa de lucro e, consequentemente, à depressão da economia real. Portanto, a crise só poderia ser superada se houvesse redistribuição da renda, o que seria impossível sem a abolição do capitalismo. São os que sustentam estes pontos de vista que prevêem que a crise será longa e devastadora e que só vai cessar quando houver mudanças sistêmicas anticapitalistas.

Não é verdade, portanto, que haja um vazio teórico na esquerda e nem que ela não tenha propostas. A esquerda “keynesiana” propõe a restauração do crédito mediante a nacionalização dos bancos quebrados, além do aumento vigoroso da inversão pública e de políticas redistributivas da renda, que recuperem o mercado interno. A esquerda herdeira de certa ortodoxia marxista tem como proposta lógica a revolução proletária como única saída.
 
IHU On-Line – O desemprego já é uma realidade na conjuntura atual. Que outras transformações prevê para esse cenário?

Paul Singer - Neste momento, a crise está se aprofundando, nos países centrais, devido à paralisia dos seus sistemas financeiros. Somente países como o Brasil, a China e outros, em que grande parte da banca é pública, têm meios de recuperar rapidamente o crédito por meio da expansão da oferta de crédito pelos bancos estatais. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a nacionalização de bancos apenas conseguiu impedir que sofressem corridas dos clientes para sacar depósitos, mas ela está longe de suscitar uma oferta de crédito que permita a restauração do consumo, das vendas e, portanto, do nível de emprego. Tanto bancos como grandes indústrias e companhias de seguro estão revelando prejuízos bilionários, o que reduziu o valor dos seus capitais cotados em bolsa a uma fração mínima do seu nível pré-crise. O governo Obama está recapitalizando estas firmas, mas elas só sobrevivem. Quando os planos de inversão pública do presidente Obama se tornarem realidade nos EUA, o que ainda vai levar meses, é de se esperar que comece a recuperação da economia real.

Cenário brasileiro

No Brasil, a situação é diferente: as firmas não tiveram prejuízos exorbitantes, o crédito está sendo restaurado aos poucos pelos bancos federais e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está em plena execução. No futuro próximo, pode-se prever o agravamento da crise no centro desenvolvido da economia mundial, mas os países periféricos em desenvolvimento, que antes da crise estavam liderando o crescimento mundial – China, Índia, Venezuela, Argentina e outros - mostram ter condições de limitar a crise aos setores mais afetados pela queda da demanda externa e substituí-la pela expansão do mercado interno por meio de amplos programas de investimentos liderados pelo setor público.
  
IHU On-Line - A crise mundial afeta também os empreendimentos da economia solidária, ou eles, por funcionarem com outra lógica, são menos afetados?

Paul Singer - Os empreendimentos de economia solidária não visam lucro e não despedem trabalhadores, mesmo quando seu mercado se retrai, porque todos são co-proprietários deles. Parte dos empreendimentos de economia solidária integra redes em que eles intercambiam seus produtos e por isso são menos afetados pela queda da demanda decorrente da crise. Mas muitos outros empreendimentos solidários dependem de setores do mercado atingidos pela crise e, portanto sofrem a retração de suas vendas. Como as demais empresas, eles necessitam de crédito para sobreviver ao período de vacas magras. Torna-se urgente que os bancos públicos ofereçam crédito abundante e a juros baixos às cooperativas de pequenos produtores e às empresas recuperadas até que o PAC, os aumentos do salário mínimo e da Bolsa Família e demais políticas redistributivas do governo de Lula consigam promover o retorno do crescimento da economia.
    
IHU On-Line – A crise, para além de romper com a hegemonia da financeirização do mundo, não seria também uma oportunidade para avançar em direção a uma sociedade sustentável?

Paul Singer - A redução da atividade econômica, promovida pela crise, oferece uma espécie de trégua na guerra que o capital trava contra a preservação da natureza. Pode ser uma trégua, mas jamais a paz. Como uma parte não desprezível da humanidade ainda carece de meios para satisfazer suas necessidades essenciais, um modo de produção que vise o bem-estar de todos não pode abrir mão do crescimento econômico.

É possível conciliar crescimento com sustentabilidade ambiental por meio de tributação pesada das atividades poluidoras e com a arrecadação destes impostos subsidiar atividades ecologicamente corretas que as substituam. São exemplos o desenvolvimento de usinas eólicas, coletores de energia solar e a produção de energia a partir da biomassa em lugar das usinas movidas a carvão ou a petróleo, a agricultura e o extrativismo ecológicos em lugar dos monocultivos com uso intensivo de poluidores químicos etc. O que deve culminar num consenso internacional sobre o combate do aquecimento da terra, em cada país planejado e pactuado entre sociedade e Estado, com cronogramas aprovados por tratado internacional, já inaugurado pelo Protocolo de Kyoto.

IHU On-Line – É possível propor um modo de produção e consumo calcado no bem-estar e não no crescimento econômico? Como inserir o ecossocialismo nessa proposta de mudança?

Paul Singer - Se o objetivo é proporcionar bem-estar a todos e não só a alguns, o crescimento econômico continua sendo imprescindível. É claro que esta tese é contestada pelos que apontam a considerável destruição de recursos naturais já ocorrida nos últimos dois séculos, em função do crescimento comandado pelo capitalismo em acelerada expansão no mundo. Hoje, a opinião pública já compreende que o capitalismo livre de controle pelo estado é insustentável, mas daí não segue que é preciso renunciar ao próprio crescimento. Este pode ser proporcionado também pelo ecossocialismo, sem perda de recursos naturais irrecuperáveis.

Ecossocialismo

A proposta do ecossocialismo é construir uma economia cujas empresas não visem maximizar o lucro privado, mas que tenham por meta sua própria sobrevivência e, portanto, da humanidade, num mundo em que o povo que produz e consome tenha efetivamente bem-estar, não só pela satisfação de suas necessidades materiais, mas também pelo desenvolvimento multilateral das suas potencialidades e aspirações enquanto indivíduos e coletividades. O que exige a substituição do capitalismo por uma sociedade sem classes, em que todos terão reais possibilidades de participar de todo tipo de atividades, não enquanto assalariados, mas como gestores autônomos de empreendimentos unipessoais, familiares, associativos ou comunais, de diferentes tamanhos e diversas formas de organização, mas sempre preservando seu caráter socialista, ao não admitir qualquer distinção de poderes entre os que pensam e os que executam, entre os que mandam e os que obedecem, entre os que aportam mais recursos intelectuais ou materiais e os que aportam menos. A prova de que uma sociedade ecossocialista é possível no mundo de hoje é que ela já está sendo construída por uma miríade de empreendimentos solidários, nos numerosos interstícios que o capitalismo se mostra já há muito tempo incapaz de preencher.    
 
IHU On-Line – Em que sentido a crise pode possibilitar um novo rumo econômico e político para o Brasil, estabelecendo assim um projeto de nação para o país? A esquerda pode, neste momento de cautela, tornar o país competitivo internacionalmente, alavancando o crescimento econômico e a soberania nacional?

Paul Singer - A crise assume tal gravidade, no plano mundial, que impede o prosseguimento das políticas neoliberais até há pouco praticadas pela maioria das nações. Em seu lugar, o Estado volta a assumir o comando da economia com a meta imediata de assegurar o pleno emprego compatível com certa estabilidade dos preços.

Além disso, a esquerda terá de escolher entre manter os intermediários (bancos, fundos, companhias de seguro etc.) em mãos privadas ou só admitir que sejam públicos ou autogeridos pelos próprios depositantes. Há boas razões para dar preferência à segunda alternativa: primeiro, os bancos públicos ou cooperativos não buscam o lucro e por isso não especulam com o dinheiro dos depositantes; segundo, por outro lado, é difícil impedir que bancos capitalistas apliquem o dinheiro dos depositantes em ativos cujo valor é diariamente determinado em leilões e por isso depende do humor dos especuladores; terceiro, bancos capitalistas não têm interesse em emprestar pequenas quantias a pequenas e médias empresas, porque o montante de juros pagos por estas últimas não compensa o custo fixo mínimo de qualquer empréstimo, acrescido do risco de inadimplência, que é tanto maior quanto menor for o tamanho do devedor.

Por outro lado, não cumpre à esquerda tornar o país internacionalmente competitivo, mas eliminar a obrigatoriedade do livre comércio hoje vigente por força de tratados internacionais. Estes impedem aos governos nacionais de regular o comércio do seu país com os demais, o que deixa esta regulação a um punhado de transnacionais, em geral pertencentes a capitalistas dos países dominantes. A restauração do comando governamental da economia nacional seria apenas aparente se a movimentação de capitais e mercadorias sobre as fronteiras nacionais continuasse condicionada à busca privada do lucro máximo. A globalização hoje vigente, tanto das finanças quanto do comércio é uma das causas da crise e sua revogação é imprescindível para que a economia das nações atinja sustentabilidade, pleno emprego dos recursos e redução ininterrupta das desigualdades.
    
IHU On-Line – Qual deveria ser o projeto político da esquerda?
Paul Singer
- O projeto político da esquerda deveria ser de uma democracia capaz de se tornar cada vez mais direta e participativa.

Leia mais...

>> Paul Singer concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Elas estão disponíveis na nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu).

Entrevistas:

• Duas crises e o limite ecológico do mundo. Onde vamos parar? Entrevista publicada nas Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.unisinos.br/ihu), em 16-05-2008

• Por um sistema financeiro social. Artigo publicado nas Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.unisinos.br/ihu), em 10-07-2007

• Uma política de economia solidária. Artigo publicado nas Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.unisinos.br/ihu), em 27-03-2007

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