Edição 286 | 22 Dezembro 2008

Invenção - Dirceu Villa

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André Dick

O poeta, tradutor e ensaísta Dirceu Villa nasceu em São Paulo (SP), em 1975

Nascido em São Paulo (SP), em 1975, o poeta, tradutor e ensaísta Dirceu Villa escreveu, entre outros, os livros MCMXCVIII (1998), Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008). Editou e publicou a revista de arte Gargântua e, atualmente, escreve sobre literatura, tradução e arte para a revista virtual Germina Literatura. Também traduziu e anotou o livro de poemas Lustra, de Ezra Pound (2003, inédito), além de ter escrito prefácios para Contos Indianos (São Paulo: Hedra, 2006), de Stéphane Mallarmé, A trágica história do doutor Fausto (São Paulo: Hedra, 2006), de Cristopher Marlowe, O spleen de Paris (São Paulo: Hedra, 2007) e Escritos sobre arte (São Paulo: Hedra, 2008), ambos de Charles Baudelaire. Na área acadêmica, desenvolve tese de doutorado em literatura sobre as idéias italianas do século XV na poesia inglesa do século XVI.

Seus livros iniciais, com uma tendência a misturar uma linguagem do modernismo – com função mais coloquial, versos com certo bom humor -, apresentam, ao mesmo tempo, uma mescla entre várias tradições adotadas por um dos autores preferidos de Villa, Pound. Por isso, há referências ao universo greco-latino, à tradição das poesias italiana e francesa (de autores como Giuseppe Ungaretti e François Villon), aos provençais e ao Oriente (com a dedicação a poemas epigramáticos). No entanto, Villa mantém um certo tom de ironia, como no poema “Eternulidades” (de Descort): “São Paulo, mictório das Musas! Onde / a coragem é feita à Table Ronde, / encher o peito às margens do rio-charco, / lá onde a vera vida hoje se esconde: / como o amigo ao traidor em Plutarco. / Entupidos de cristianismo e pornografia / andam todos pela cidade / sem comer; a anorexia / compensa a falta de privacidade”. Ou no ritmado “Fluxo”, em que Dirceu vai fazendo uma ligação sonora entre termos e remete à mitologia: “ó provei-me / proteu / divino proteu / das cores cítricas / para a minha defesa”.   Em “Por Angelo Poliziano”, outras imagens remetem à mitologia grega: “Vinho roxo, do vinhedo que você cultivou. / Archotes aqui, bem claro como eu via, / as mulheres também bebem, / tão claro quase o dia, / dançando com pés descalços. / Flautas transversas / poucos sabem tocar; / pouco importa o que vai pelo ar, / desde que as nossas conversas / acabem no chão como os corpos / que queremos tomar: / Pênis de pedra eretos nos jardins romanos, / em honra de Príapo”.

Sonoridade

Há uma mescla, muito bem costurada, entre imagens e sons na poesia de Villa. Fazem parte do conjunto de MCMXCVIII, por exemplo, “Cidade irreal, minha amada” (com os versos “prédios por todo lado / cidade apontada para o céu / alto fundo cinzento / vazio escuro sem firmamento”) e “Debruçado numa varanda antiga” (com os versos “ Pássaro pousado / No parapeito, / Cansado. / Pássaro pensado / E no meu peito, / Demorado. / Pássaro só pássaro, / Passado”). Mas é em “As longas pernas da senhorita H.”, dedicado a François Truffaut, que Villa parece melhor trabalhar essa sonoridade: “forte / obstinada / curvilínea / nem mesmo / a Curva Francesa / faria / / hastes / e flores / caules / e frutos / folhas / e festa / na floresta / / longilínea / graça de / flamingo / sinuosa / massa de / felina / / disposta a tudo: / moda / muda / nada / nela / / o passo / mesmo o / mais duro / pousa / o mais gentil /desliza”. Em Icterofagia, Villa compõe alguns de seus melhores poemas. Á procura de uma síntese para sua dicção múltipla, que apresenta tanto poemas sintéticos quanto poemas organizados como peças teatrais, com a utilização de imagens da mitologia greco-latina, como em poemas anteriores, Villa traz, à poesia brasileira, uma certa inovação também formal. Se às vezes parece descompromissado com a métrica do verso, Villa acaba, porém, na maior parte de seu conjunto de seus poemas, sendo simétrico. Como no excelente “Ostra”: “O mar prossegue, nenhum brilho aflora, / não estremece a / brusca / casca que há por fora; / nenhum vegetativo verde cresce sobre a / crosta / mas se enclausura sob a muda / força / que suga tudo para o centro / sem sequer o sonho de uma pérola: / só ostra”. Em outros momentos, apesar de manter a simetria do verso, busca um discurso mais longo, como se recuperasse algo do Ezra Pound de Os cantos, como em “Ostinato rigore”. Ou no incomum “Sonho grande guarda-chuva”. Ao mesmo tempo, percebe-se uma influência mais clara da poesia portuguesa, e uma crítica corrosiva ao Brasil, como em “Parada do dia da Independência”.

 

Biblioteca Laurenziana

No chão, as pedras brancas e vermelhas
com o capricórnio dos Medici (Cosimo il granducca).

A caligrafia humanística de Boccaccio
— que antecipa a de Poggio, certamente.

Sua bela antologia manuscrita de poesia latina,
na Laurenziana, aberta numa sátira de Pérsio,
suas notas marginais em forma de círculos, cântaros, folhas de árvore.

— antes o pergaminho moído com poema de Safo;
ou o De luxuria et libidine, de Valerio Massimo,
iluminado com grávidas de ventre transparente —,

A sala de estudo com tabuletas que pendem,
registros de obras de filósofos, poetas, teólogos.

O tampo das mesas inclinado, 45o, para vossos olhos
comodamente deslizarem pela leitura dos fólios.

Florença, julho, 2008

 

aula magna na escola superior de política
 
siglas ordinárias ternos tamanho único
amantes acefálicas que querem alforria através
de Hugh Hefner & processos na justiça

os músculos da barriga flácidos
barrigas inflam o perfil magro dos candidatos
algumas barrigas mal cabem no conceito de camisa & vazam
como a fétida gordura das barricas dos curtumes

ajudaria saber que ao menos
obedecem a uma fatalidade estilística
e asininos como Lúcio Apuleio
num milagre orelhas longas patas cauda surgiriam

discutem ninharias fingindo convicção

são pavorosos esses bonecos de ventríloquo
podres falam com línguas de pano puído
 
talvez atrás do palanque haja uma enorme
mão enfiada fundo em seus traseiros movendo
até mesmo a ponta de seus dedos
 
mas qual era mesmo a sua dúvida sobre isso?

 
San Marco, mattina

O leito amanhece diante das janelas de desenho mourisco,
com o sol entre os leões:
 a Piazza vazia num arrufo gorgolejante
   de pombas.

O Oriente parece engolfado
nos lençóis mágicos do Adriático;
 palácios planam impossíveis na distância líquida,
nascidos, como deuses, da água.

O campanário observa a mudez
das maravilhas úmidas, imóveis;
galerias abaixo cintilam no escuro
   como jogos de cristal colorido.

Frescor do alento marítimo:
a brisa é um suspiro feminino.

Veneza, agosto, 2008

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