Edição 286 | 22 Dezembro 2008

Paulo: um novo sentido para a igreja de hoje

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Márcia Junges | Tradução Moisés Sbardelotto

Nominalismo e verbalismo típicos da igreja em nossos dias podem ser substituídos por um novo sentido de realidade, ao qual Paulo nos “intima”. Conceito paulino de liberdade diz que esta é uma propriedade da comunidade, aponta Jerome Murphy O’Connor

“Paulo intima a igreja de hoje a um novo sentido de realidade, que repudia o nominalismo e o verbalismo que caracteriza a igreja hoje”, menciona o biblista Jerome Murphy O’Connor na entrevista exclusiva que concedeu à IHU On-Line, por e-mail. “A igreja de Paulo é, acima de tudo, comunidade”, enfatizou. Ele examina, também, o conceito paulino de liberdade: “Para Paulo, a liberdade era uma propriedade da comunidade, não uma posse do indivíduo. Ele acreditava que aqueles que não conheciam Cristo, tanto judeus quanto gentios, viviam sob o poder do Pecado. Este era uma força gerada pelo falso sistema de valores da sociedade, que fazia as pessoas ser outra coisa do que elas gostariam de ser”.

Jerome Murphy O’Connor é reconhecido mundialmente como uma autoridade no Novo Testamento, em particular as cartas de Paulo. Seus inúmeros livros publicados incluem títulos como Biografia crítica (São Paulo: Edições Loyola, 2000) e Paulo de Tarso. História de um apóstolo (São Paulo: Edições Loyola, 2007), ambos traduzidos para diversos idiomas. Sacerdote dominicano, O’Connor é professor de Novo Testamento na École Biblique, em Jerusalém, e autor do definitivo The Holy Land. An Archaeological Guide (5th ed. Oxford: Oxford University Press, 2008).

IHU On-Line – Qual é o significado da celebração do segundo milênio de nascimento de Paulo para o mundo cristão?

Jerome Murphy O'Connor – Eu imagino que a intenção do Papa Bento em declarar 2008-2009 o Ano de São Paulo foi a de trazer o Apóstolo mais à frente na mente da Igreja. Partes das cartas de Paulo são lidas na missa durante grande parte do ano, mas são curtas, complicadas e tiradas do contexto. Assim, seu sentido não é compreendido na leitura, e muitos pregadores preferem se concentrar na leitura do evangelho, que normalmente é muito mais fácil desde um ponto de vista teológico. Eu espero que, em resposta ao apelo do Papa, as paróquias e as escolas façam algo para introduzir os fiéis no gênio de São Paulo. Poderia ser uma versão pequena e simples da sua vida, com ênfase em como suas idéias teológicas cresceram muitas vezes fora de suas experiências. Outra possibilidade poderia ser reunir um grupo para trabalhar com uma das cartas mais curtas e mais simples, por exemplo, a Carta a Filemon, que tem apenas um capítulo e que lida com o interessante problema de um escravo fugitivo.

IHU On-Line – Paulo de Tarso é uma figura complexa. Como podemos considerá-lo enquanto figura singular na sua relação com o judaísmo e as origens cristãs?

Jerome Murphy O'Connor – Paulo de Tarso é uma figura complexa porque muitos fatores colaboraram para torná-lo o que ele é. Seus pais eram de Giscala, no norte da Galiléia. Quando ele era ainda pequeno, os romanos venderam seus pais como escravos em Tarso. Isso significa que Paulo cresceu como um judeu na diáspora, em contato diário com pagãos em uma cidade muito cosmopolita. Isso também significa que ele recebeu uma educação excepcionalmente boa, tanto judaica como secular. Sua capacidade altamente desenvolvida na retórica pode ser explicada pela sua participação no que hoje chamaríamos de Universidade de Tarso. Ele foi treinado para ter sucesso no mundo pagão. Aos 20 anos, foi a Jerusalém, e lá, como fariseu,  se comprometeu com igual entusiasmo ao estudo da Lei Judaica. Quando adulto, relembrou o fato de que havia sido o melhor no grupo da sua idade. Durante esse período, certamente se casou. Era uma obrigação para os judeus se casar e ter filhos. Se Paulo nunca mencionou sua esposa ou seus filhos, eu só posso acreditar que eles morreram em um acidente tão traumático, que Paulo não suportava pensar sobre isso.

IHU On-Line – Como entender a experiência de Paulo, o “homem que cai do cavalo”, do encontro com Jesus Cristo no caminho de Damasco?

Jerome Murphy O'Connor – O que as pessoas pensam que sabem a respeito da Bíblia muito freqüentemente não provém da Bíblia. A conversão de Paulo é um exemplo. Em grandes pinturas, ele é representado caindo de seu cavalo, mas nenhum cavalo é mencionado na Bíblia, e é certo que ele não andou a cavalo. Os estribos foram inventados pelos chineses apenas no século IV d.C., e teria sido extremamente doloroso, para um estudioso sedentário como Paulo, cavalgar sem sela durante muito tempo.

Conversão

Paulo nos conta apenas que foi semelhante às aparições pós-ressurreição a Maria Madalena, aos dois discípulos no caminho a Emaús etc. Esses discípulos reconheceram o Senhor Ressuscitado, que eles haviam conhecido em sua existência terrena. Mesmo que Paulo e Jesus tenham estado em Jerusalém no mesmo período, não há nenhum sinal de que eles tenham se conhecido. Então, como Paulo sabia quem era a pessoa que se encontrou com ele na estrada de Damasco? Nós não sabemos a resposta. Mas, pelas conseqüências, podemos ter certeza de que Paulo estava totalmente convencido de que era Jesus de Nazaré, que ele sabia que havia sido crucificado pelos romanos. Assim, ele deve ter compreendido imediatamente que Jesus era o Senhor e Messias. Como um judeu profundamente comprometido, isso significa que ele poderia apenas submeter-se totalmente a Jesus. A conseqüência mais importante para Paulo foi que essa aceitação de Jesus como o Messias significou que a Lei Judaica não tinha mais nenhum direito sobre ele. Ela não era mais o único caminho de salvação. Poder-se-ia ser salvo acreditando em Jesus Cristo. Por isso, a reação imediata de Paulo foi sair correndo para espalhar as boas notícias (= evangelho) aos pagãos mais próximos, que eram os nabateanos  da Arábia.

IHU On-Line – Onde Paulo encontra os fundamentos para a grande liberdade que foi cultivando? 

Jerome Murphy O'Connor – Para Paulo, a liberdade era uma propriedade da comunidade, não uma posse do indivíduo. Ele acreditava que aqueles que não conheciam Cristo, tanto judeus quanto gentios, viviam sob o poder do Pecado. Este era uma força gerada pelo falso sistema de valores da sociedade, que fazia as pessoas ser outra coisa do que elas gostariam de ser. Por exemplo, quando viajava sozinho, Paulo costumava presumir que qualquer um que tivesse a oportunidade iria roubar os utensílios dos quais o seu sustento dependia. Se ele não tomasse precauções e desse prioridade à sua própria segurança, ele poderia não ser capaz de viajar e trabalhar. Mesmo como um seguidor de Cristo, Paulo queria acreditar no melhor dos outros. Ele foi forçado a se dar conta de que eles eram egoístas pela mesma razão que ele tinha que ser egoísta. Se eles não cuidassem de si mesmos, iriam se afundar. Isso forçou Paulo a perceber que a liberdade era possível apenas em um ambiente alternativo, em que a força do bom exemplo mais do que contrabalançasse a força do mau exemplo proveniente da sociedade. Por essa razão, a base da liberdade de Paulo era a qualidade da vida cristã na comunidade na qual ele estivesse vivendo em um dado momento. Essa também é a razão pela qual ele viajou acompanhado. Ele não precisaria se preocupar que os seus utensílios poderiam ser roubados se ele tivesse companheiros para cuidá-los enquanto ele dormia ou ia ao banheiro. Por conseqüência, o maior desafio de Paulo à Igreja contemporânea é a sua insistência de que a liberdade não é individual, mas corporativa. Há um ensinamento comum que diz que, porque somos batizados, gozamos da liberdade dos filhos de Deus. Paulo cairia na risada com tal absurdidade, porque todos os cristãos, hoje, sentem a pressão de ser desonestos de uma forma ou de outra. Corajosamente, Paulo teria esboçado a conclusão óbvia: eles não são livres. Nós, infelizmente, preferimos a ilusão.

IHU On-Line – É bastante conhecida a importância de Paulo para o encontro da fé cristã com as culturas da sua época. Que continuidades e que rupturas culturais possibilitaram a expansão do cristianismo pela ação missionária de Paulo e de seus colaboradores e colaboradoras?

Jerome Murphy O'Connor – Uma das razões pelas quais a pregação de Paulo teve tanto impacto na cultura helenística é que esta, nesse período, estava passando por um período de depressão. Em um festejado livro, “Pagan and christian in an age of anxiety” (Pagãos e cristãos na era da ansiedade), o historiador E. R. Dodds  mostra que, nos primeiros três séculos da nossa era, uma visão profundamente pessimista da humanidade permeou as diferentes culturas no Leste Mediterrâneo. Havia um sentimento profundo de que algo havia dado errado, o qual, quando aliado à assunção da responsabilidade humana, produziu sentimentos de culpa amplamente difundidos. Como estes não se focavam em nenhum objeto específico, eles deram origem a um sentimento de futilidade, uma vaga convicção de que a humanidade não tinha sentido, de que era um “absurdo”. Daí vem a popularidade do mito de Sísifo. Uma vez que o rei de Corinto estava no mundo subterrâneo, foi condenado a gastar seus dias rolando uma grande pedra até o cume de uma montanha, só para vê-la escorregar de suas mãos a cada vez e cair de volta à base. Um tremendo gasto de energia por nada.

Os sentimentos das audiências às quais Paulo falava são graficamente ilustradas pela cabeça de bronze do Homem de Delos, agora no Museu de Atenas. A identidade da pessoa sentada é desconhecida, mas ele era certamente um indivíduo com problemas. A boca tristemente magoada e os olhos infelizes revelam uma personalidade cercada de dúvidas e ansiedade. O olhar levemente para cima se dirige a um vazio, como se todas as certezas íntimas tivessem sido percebidas, de repente, como ilusões. A modelagem da testa sulcada e da face frouxa carrega um profundo sentido de perda e vazio. Ele encarou o futuro sem fé ou esperança. Eram pessoas como ele que acharam atrativas as Boas Novas pregadas por Paulo. Elas davam sentido à existência.

IHU On-Line – Como podemos compreender a relação de Paulo com as mulheres que colaboram e participam de sua missão e sua visão sobre o lugar e a participação das mulheres nas comunidades eclesiais?

Jerome Murphy O'Connor – Paulo tem uma má reputação entre as feministas, que o consideram um anti-mulher. De fato, Paulo foi o mais ativo promotor do ministério das mulheres no Novo Testamento. Lídia, Evódia e Síntique tiveram um papel ativo na evangelização de Filipos, e Paulo situa a participação delas precisamente no mesmo nível que a dos apóstolos homens. Ele reconhece Febe como uma líder da igreja de Cêncris, o porto mais ao leste de Corinto. Priscila liderava uma igreja doméstica com seu esposo, primeiro em Éfeso e depois em Roma. Ápia era uma integrante do comitê de três pessoas que dirigiam a igreja de Colossos. Em Corinto, Paulo assumiu como dado que as mulheres, assim como os homens, podem rezar e profetizar nas assembléias litúrgicas. A profecia para Paulo é um dom de liderança, e a oração articula publicamente as necessidades da comunidade. São papéis de liderança.

De acordo com Gênesis 2, o homem foi criado antes da mulher. Os judeus usavam essa diferença cronológica para provar que as mulheres eram inferiores. Paulo refuta esse argumento indicando que, de acordo com a vontade de Deus, todo homem hoje tem uma mãe. Por isso, se o argumento cronológico é invocado, isso prova que o homem é inferior. Em 1Coríntios  11,11, Paulo insiste que a mulher é totalmente igual ao homem na Igreja [1].

A escolha de Paulo de usar imagens femininas de uma mulher durante o parto (Gálatas 4,19) [2] e do cuidado feminino (1Tessalonicenses 2,7) [3] para descrever seu próprio ministério evidencia o seu reconhecimento de que os talentos do profeta são encontrados mais freqüentemente entre as mulheres do que entre os homens. Como a graça está baseada na natureza, não surpreende que as mulheres apareçam tão freqüentemente entre os líderes das igrejas paulinas.

IHU On-Line – Paulo está sendo relido hoje por vários filósofos da atualidade, como, por exemplo, como Alain Badiou, Giorgio Agamben, Jacob Taubes, Jean-François Lyotard e Slavoj Zizek. A que se deve esta relevância contemporânea da figura e atuação de Paulo?

Jerome Murphy O'Connor – Se Paulo é lido por filósofos contemporâneos, deve ser porque eles finalmente acordaram para o poder dos insights e o amplo alcance de suas sínteses teológicas. No passado, os filósofos desprezaram automaticamente o que a Igreja venerava, para grande prejuízo deles.

IHU On-Line – Quais são os principais elementos da teologia paulina que deveriam ser recuperados tendo em vista o diálogo intercultural hoje?

Jerome Murphy O'Connor – O aspecto-chave da teologia de Paulo que precisa ser enfatizado hoje é a sua visão da sociedade e da igreja. A sociedade, como ele a viu, era caracterizada acima de todas as divisões. No nível macro, havia blocos religiosos (judeus-gentios), econômicos (mestres-escravos) e sociais (homem-mulher), enquanto no micro os indivíduos eram separados por limites de medo ou dúvida. Essa era a descrição do mundo que ele tinha que salvar. Em minha opinião, ainda é uma descrição perfeita do mundo em que vivemos. Isso nos força a perguntar: o que o cristianismo conquistou de fato?

A igreja de Paulo é, acima de tudo, comunidade. Somente quando essa comunidade é uma realidade é que o ensinamento de Jesus tem sentido e se torna vivo. Somente quando a igreja local é Cristo na terra (o Corpo de Cristo) é possível ter uma eucaristia válida. Somente quando a igreja local está ardendo com o fervor do bom exemplo nós estamos livres do falso sistema de valores da sociedade. Somente quando vivemos em uma comunidade em que o amor é sempre ativo é que nossas orações são respondidas. Paulo intima a igreja de hoje a um novo sentido de realidade, que repudia o nominalismo e o verbalismo que caracteriza a Igreja hoje.

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