Edição 286 | 22 Dezembro 2008

O universalismo paulino

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Márcia Junges | Tradução Luciana Cavalheiro

O caráter universalista de Paulo de Tarso impressiona fi lósofos e é decisivo na formação do pensamento contemporâneo, mas não se pode absolutizá-lo como fundador do cristianismo, pois comunidades cristãs já existiam antes dele

Para o filósofo francês Jean-Claude Eslin, Paulo de Tarso antecipa a época contemporânea através do caráter universal de seu pensamento, promovendo uma “circulação nova entre os homens que derruba os obstáculos étnicos”. Ele influenciou, de maneira indiscutível, Agostinho e Lutero, sobretudo no que diz respeito aos conceitos de predestinação e pecado original. Entretanto, esclarece Eslin, “eles o extraíram de seu contexto, caindo em um excesso de lógica (intellectus fidei), o que abriu espaço a uma doutrina que se revelou desastrosa e favoreceu o ateísmo”. Ele recomenda, ainda, que não se absolutize Paulo como o fundador oficial do cristianismo, pois já havia inúmeras comunidades cristãs antes dele. “Ele é ‘um’ entre vários”.

Eslin leciona no Centre Sèvres e no Instituto Católico de Paris. É membro de redação da revista Esprit. Escreveu, entre outros, Dieu et le pouvoir. Théologie et politique en Occident (Paris: Seuil, 1999), La Bible, 2000 ans de lectures (Paris: Desclée de Brouwer, 2003) e La Cité de Dieu de Saint Augustin (Paris: Seuil-Points Sagesses, 3 volumes, 2004). A entrevista a seguir foi concedida por e-mail, com exclusividade à IHU On-Line. Confira.

IHU On-Line - Qual é o maior legado de Paulo de Tarso à contemporaneidade?

Jean-Claude Eslin – O maior legado de Paulo para a época contemporânea me parece ser a universalidade, em relação às concepções de seu tempo, os judeus e gregos, em relação a todo provincialismo. “Já não há judeu nem grego, nem escravo, nem livre, nem homem, nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3,28). Esta sentença impressiona os filósofos, apesar do caráter à primeira vista utópico da afirmação. Paulo antecipa a modernidade que nós gostaríamos de ter: uma circulação nova entre os homens que derruba os obstáculos étnicos. Da mesma forma, nos impressiona o distanciamento que ele toma em relação à Lei de Moisés, pelo melhor (universalização) e pelo pior (risco de anomia).

IHU On-Line - Que aspectos políticos e religiosos atuais podem ser apontados como diretamente tributários do paulinismo?

Jean-Claude Eslin – Primeiramente, menciono a criação de pequenas comunidades, “igrejas”, assembléias no Império Romano, novas em seu espírito e organização muito flexíveis, sobretudo duráveis, favorecendo uma vida social inédita. O traço marcante é o fato de tais “igrejas” serem suficientemente estruturadas e sólidas para serem eventualmente um poder de afirmação e de resistência em relação ao Estado - uma dualidade do político e do religioso assim introduzida, novidade com respeito ao Império Romano. O filósofo marxista Alain Badiou lamenta que os comunistas, com suas “células do partido”, não tenham conseguido tanto quanto Paulo!

Em segundo lugar, diria que outro aspecto político e religioso que pode ser tributado a Paulo é a instrução “Toda a alma esteja sujeita às autoridades superiores” (Romanos, 13,1), que prega o civismo e a obediência, que seguidamente foi interpretada em um sentido de submissão passiva ao poder público, é então corrigida pela existência de “igrejas” que podem eventualmente resistir ao poder político. Isso impressionava Max Weber .

IHU On-Line - O que explica o crescente interesse por Paulo de Tarso não apenas na teologia, mas no campo filosófico?

Jean-Claude Eslin – O interesse por Paulo no campo filosófico está ligado às categorias intelectuais que ele introduziu e que continuam sendo as nossas categorias, mesmo quando o conteúdo é diferente. Ele introduziu a categoria de “novidade radical”, de “conversão absoluta”, de “homem novo”. E separa um “antigo tempo” de um “novo tempo”, já inaugurado, mas que se seguirá no futuro (“já chegado, ainda não”). Há então algo de revolucionário que continua marcando nossa concepção de tempo.  Ele dispensa o passado, mas mantém o passado: então há uma liberdade. Os filósofos atuais gostariam muito de poder pensar assim, de beneficiar-se de tal dialética.

IHU On-Line - De que forma as epístolas paulinas influenciaram Santo Agostinho  e Lutero?

Jean-Claude Eslin – Os ensinamentos de Paulo influenciaram fortemente Agostinho e Lutero em particular sobre dois pontos: a predestinação e o pecado original. Agostinho e Lutero divulgaram a todos os homens os propósitos de Paulo sobre a predestinação em Romanos 9 e 10, ignorando o contexto que concernia somente à Israel e aos cristãos. Eles os extraíram de seu contexto, caindo em um excesso de lógica (intellectus fidei), o que abriu espaço a uma doutrina que se revelou desastrosa e favoreceu o ateísmo, como se os decretos de Deus fossem totalmente arbitrários.
Da mesma forma, Agostinho distorceu o sentido de uma passagem de Paulo, em Romanos 5, 12, maximizando a doutrina do pecado original. Agostinho interpreta “em Adão todos pecamos” segundo sua tradição latina, enquanto que o texto grego diz somente “dada a circunstância que todos pecaram”; ora, circunstância não significa causalidade, e os Padres da Igreja grega foram mais discretos.

IHU On-Line - É correto afirmar que Paulo de Tarso é o fundador oficial do cristianismo, convertendo-o de seita à religião?

Jean-Claude Eslin – Não diria que Paulo é o fundador oficial do cristianismo. Na verdade, as primeiras comunidades cristãs, muito diversificadas, já existiam antes dele, a pregação dos apóstolos existia antes dele, e ele representa somente uma corrente do primeiro cristianismo. Ele é “um” entre vários.

IHU On-Line - Até que ponto o cristianismo é uma construção paulina, e até que ponto é fiel aos ensinamentos de Jesus?

Jean-Claude Eslin – Não se pode absolutizar Paulo. É o interesse do cânone do Novo Testamento que representa uma pluralidade de 27 escritos, que se corrigem mutuamente quando é o caso. 
Paulo representa uma primeira elaboração, uma primeira teologia, bastante fiel aos ensinamentos de Jesus (neste ponto sou católico, não promovo a desarmonia entre Jesus e Paulo, ainda que eles não se situem no mesmo registro, nem para o mesmo público), mas é preciso relativizar às vezes, o que pode se fazer recorrendo aos outros autores do Novo Testamento, e também através de uma reflexão nova e delicada dos cristãos de hoje. É claro que nós absolutizamos os desenvolvimentos de Paulo, mas “relativizá-lo” é uma questão nova diante da qual somos inábeis.

O que me impressionava na minha juventude, era a forma grandiosa e ao mesmo tempo realista, com que Paulo descreve o apelo e o modo de existência da vida apostólica, na qual ele descreve sua vida nas cartas aos Coríntios, a consciência de sua liberdade e de seu apelo, a grandiosidade de sua missão: “A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo...” (Efésios, 3,8). Isso pede a reflexão de como compreendemos estas palavras hoje, em um contexto de secularização.

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