Edição | 29 Novembro 2004

O GOVERNO ENTREGOU AO SETOR PRIVADO O DESENVOLVIMENTO NACIONAL

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IHU Online

Gentil Corazza não está muito surpreso com os rumos do governo. Lamenta, todavia, que o desenvolvimento nacional tenha sido entregue ao setor privado, na medida em que as políticas desenvolvimentistas estejam sendo postas de lado. Doutor em Economia e professor da UFRGS, ele lembra que mesmo antes da vitória eleitoral os então futuros governantes já acenavam com a adoção de uma política ortodoxa. Daí porque não considera que estejamos vivendo uma fase de transição. “O governo nunca deixou dúvidas de que o rumo era esse”, afirma, acrescentando que nunca foi emitido qualquer sinal de adoção de políticas alternativas. Corazza é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul . Ele foi entrevistado pelo IHU On-Line, por telefone. Graduado e mestre em Economia pela UFRGS, sua dissertação de mestrado intitula-se Teoria Econômica e Estado. O professor é também doutor em Economia, pela Unicamp, e sua tese leva o título A Interdependência dos Bancos Centrais entre o Governo e os Bancos Privados. Atualmente, Gentil Corazza desenvolve o projeto de pesquisa Relações Financeiras Externas da Economia Brasileira. O professor é autor de Teoria Econômica e Estado - de Quesnay a Keynes. Porto Alegre: FEE, 1986; e A Junta Comercial no contexto da economia do Rio Grande do Sul (com Pedro Cezar Dutra Fonseca). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. Entre outros, também organizou a obra Métodos da ciência Econômica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

IHU On-Line - Como o senhor está vendo a situação atual do País, onde aparentemente há um embate entre desenvolvimentistas e monetaristas?
Gentil Corazza - Eu vejo isso com muita preocupação. A saída do professor Carlos Lessa do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) significa uma definição importante nos rumos da política macroeconômica e da política de desenvolvimento do País. Parece-me que houve uma definição de governo, na medida em que foi afastada uma pessoa como o Carlos Lessa, com toda a sua trajetória e a sua visão, e com tudo o que ele representava no governo Lula. Parece que, no BNDES, ainda se concretizava um resto desse espírito, desse projeto de desenvolvimento que tem todo um passado, uma visão construída com base nas idéias da Cepal , e que tem toda uma história que deixou um resultado importante nos anos 1950 a 1980. No governo, concretiza-se, com isso, uma definição, uma dominância total do que já existia.

IHU On-Line - Mas essa dominância era apresentada como fase de transição, não?
Gentil Corazza - Ela nunca foi apresentada como fase de transição. Na realidade, o governo nunca deixou claro isso. Apareceu como uma grande surpresa, mas o governo nunca deixou dúvidas de que o rumo era esse. Causou perplexidade no início, porque se esperava que o governo conseguisse materializar seu projeto, que veio sendo construído junto com o Partido dos Trabalhadores e com o que ele representava. A definição da política econômica do governo Lula causou perplexidade por todos os lados. Da parte daqueles que o elegeram foi uma decepção; da parte daqueles que eram contrários também foi uma surpresa. Ele nunca apresentou essa política como uma transição. Sempre deixou claro que essa era a única alternativa e não tentou uma alternativa diferente, nem sequer sinalizou alguma possibilidade de mudança. Apenas abriu algum espaço, em algumas áreas, para a discussão do projeto de desenvolvimento nacional. Parece-me que essa porta, esse espaço se fechou com a saída do professor Lessa do BNDES.

IHU On-Line - Definiu-se, portanto, o papel do governo para a área do desenvolvimento econômico e social...
Gentil Corazza - Isso já estava bastante claro na definição da política macroeconômica, estruturada com base em alguns dogmas, que dizem caber ao governo estabilizar a economia, que a estabilidade é uma condição necessária e também suficiente para o desenvolvimento, que a abertura comercial e financeira é sempre benéfica, que ao Estado não compete mais atuar nessa área. Essa posição foi construída nesses pressupostos e ela não deixava dúvidas quanto a isso.

IHU On-Line - Essa visão está, necessariamente, ligada a uma idéia diferenciada do papel do Estado?
Gentil Corazza - Ela está claramente definida sob uma filosofia. Ela pode dizer que ao governo não cabe mais promover o desenvolvimento, isso é um problema do mercado. Ao adotar-se uma política dessas está implícita toda uma concepção de desenvolvimento econômico. Ao governo cabe garantir a estabilidade monetária. O desenvolvimento passa a ser um problema do mercado. Os investimentos são os privados. Ao governo não compete mais esse papel. Isso já estava claro. Apenas se abriu um espaço, e havia uma certa contradição. A saída do professor Lessa não deixou mais dúvidas quanto a isso. O governo tem um projeto de desenvolvimento, que não compete mais ao Estado definir. É o setor privado que vai promover o desenvolvimento nacional. O governo se restringiu aos papéis mais clássicos, de fazer a política monetária e fiscal. Isso significa uma mudança, uma visão monetarista do processo. Entre a discussão do desenvolvimento e a estabilidade, venceu a estabilidade. Aqueles que pensavam e ainda pensam diferente, na possibilidade, ainda, de se lutar, de construir um projeto de longo prazo, que acreditam ainda na necessidade do governo ser um ator estratégico nesse processo, eles não estão mais no poder, no governo, perderam a importância. 

IHU On-Line - Como se chegou a esse estágio, uma vez que, durante anos, intelectuais, pesquisadores e militantes da área da economia, elaboraram um projeto de desenvolvimento diferente do adotado?
Gentil Corazza - Na forma como o projeto veio se desenvolvendo nos anos 1950 a 1980, ele entrou em crise, porque o Estado se endividou muito, enfraqueceu-se como ator estratégico. E o Estado enfraquecido, endividado, perde a força e a capacidade de articulação e tem que voltar-se um pouco para o saneamento fiscal. Essa mudança não é só um problema de lutas de idéias. Existe toda uma situação, uma conjuntura de crise do Estado, principalmente pelo endividamento. A dívida interna e o compromisso de pagá-la se torna uma prioridade da política econômica. A dívida externa e a necessidade de pagá-la faz com que a economia do País esteja sendo direcionada para essa finalidade. Em cima disse se constrói toda uma ideologia, uma filosofia. São idéias que vieram se consolidando em nível internacional, e os organismos internacionais que monitoram a economia, como o FMI e o Banco Mundial, também, de certa forma, condicionam sua ajuda à adoção dessa política de saneamento. É isso que está acontecendo. Talvez ainda haja espaço para adotar um plano de desenvolvimento diferente. O baixo crescimento econômico, e as dificuldades de se retomar um crescimento estão mostrando isso. Os investimentos privados são insuficientes para manter um crescimento dos empregos. Isso está ficando claro. O governo precisa acreditar que ele pode se dedicar a promover o desenvolvimento. Em primeiro lugar precisa ter idéias claras e convicções quanto a isso. Precisa assumir que, apesar da crise, o Estado ainda é um ator importante, cabendo ao governo buscar recursos, definir políticas, prioridades. Mas no momento em que o governo, que veio com uma outra orientação, uma outra finalidade, uma outra ideologia, abandona tudo isso, não acredita mais, quando fica evidente que ele não tem essas idéias nem as convicções políticas necessárias, o que está associado a uma dificuldade conjuntural de endividamento, de crise do Estado, é nesse momento que as coisas tomaram esse rumo que estamos vendo. Não foram só as idéias que mudaram. A realidade mudou significativamente.

IHU On-Line - Pode-se dizer que o modelo desenvolvimentista padece de uma indefinição?
Gentil Corazza - Ele se esgotou. As condições internas e externas que impulsionaram e deram força àquele modelo se esgotaram. Não podemos mais voltar a ter aquelas condições. Isso não significa que nada possa ser feito. Uma coisa é ver que as condições mudaram, que mudou o papel do Estado, que ele está em crise, mas isso não significa que não podemos fazer mais nada. Precisa ser debatido qual é esse papel. O Estado não pode ficar reduzido a fazer política macroeconômica. Tem que procurar um saneamento fiscal, é evidente que sim, mas isso vem sendo feito, de certa forma, porque há um esforço fiscal grande no sentido de arrecadar mais. O governo aumentou sua arrecadação de forma espantosa nos últimos sete, oito anos. A carga tributária em 1994, estava em 27%; hoje está em 38%. E há uma contenção de despesas, de investimentos públicos. Há um sucateamento generalizado das instituições, universidades, escolas... Verbas para a educação e a saúde estão sendo contidas para se gerar um superávit. Está se gerando um superávit extraordinário, que, em parte, vem reduzindo o endividamento. Mas os juros que são pagos para conter a inflação vêm corroendo, absorvendo esses recursos que são gerados pela política fiscal. Entretanto, há um espaço para o governo flexibilizar a política monetária e a fiscal e criar as condições de devolver ao Estado um papel mais importante nos investimentos, na infra-estrutura. Mal o País começa a engatinhar no crescimento e já vem o pé no freio, que está muito acentuado agora, porque nós não temos investimentos. Qualquer pequeno crescimento de 3% ou 4% já faz pressão sobre os recursos. Esse é o impasse, a camisa de força em que o governo está metido. Para ele mudar a política macroeconômica e retomar o crescimento do País, ele tem que investir.

IHU On-Line - Esse crescimento econômico paralelo ao controle da moeda é uma reinvenção de um projeto desenvolvimentista...
Gentil Corazza - Em escala menor, mais modesto. Aí tem um problema de concepção. A concepção monetarista acha que é possível estabilizar a moeda de qualquer forma, por essas medidas. Na realidade o que vemos é que estamos em uma luta de mais de dez anos de estabilização, com baixo crescimento econômico e uma estabilização que ainda não está garantida, não está sustentada, porque não se criaram as condições de uma estabilidade verdadeira. Ela só vem com o crescimento e as duas coisas têm que andar juntas. Só estabilidade ou só o crescimento representa um falso dilema. Naturalmente, os desenvolvimentistas também querem a estabilidade.

IHU On-Line - O senhor aponta no mundo, nas economias assemelhadas ao Brasil, alguma iniciativa ou modelo que possa ser estudado?
Gentil Corazza - O que serve de modelo, considerando as experiências todas, mas ainda sinaliza a possibilidade de que algo diferente pode ser feito, são os países asiáticos, como a Coréia, a Malásia, Singapura, que passaram por uma crise, mas não abandonaram o antigo projeto, trataram de redefini-lo. Para eles o Estado tem um papel importante. Eles estão nos dizendo que é possível fazer algo diferente e eles têm tido sucesso nisso. Eles estão crescendo, reduziram a fragilidade externa. Há muita coisa a ser discutida. A questão toda é que, quando as idéias cristalizam, elas viram dogma, doutrina e se tornam hegemônicas, dominantes, tirando o espaço da discussão, e o governo não dá espaço para discussão. Então as portas se fecham e ficamos pensando que só temos essas possibilidades, o que não é verdade.

IHU On-Line - O espaço para discussão hoje é menor do que há alguns anos?
Gentil Corazza - O espaço para a discussão é menor. Não há dúvida nenhuma. O governo não aceita discutir a política econômica dele, mesmo dentro do Partido dos Trabalhadores. Houve uma reunião no dia 21 de novembro em que as posições críticas, mesmo dos dirigentes do PT, não tiveram voz. O espaço para o debate é restrito. A mídia também tem criticado aqueles que não estão de acordo. Cria-se uma mentalidade, uma ideologia, uma corrente de opinião que domina em nível nacional. Nas universidades há discussões. Mas o espaço público para a discussão é muito mais restrito do que já foi, sem dúvida nenhuma.

IHU On-Line - Hoje as entidades e instituições são menos ouvidas, porque o governo não as escuta e porque a mídia também não dá espaço para essas manifestações?
Gentil Corazza - Forma-se uma espécie de unanimidade nacional de que não há outro caminho. Mede-se o acerto e o erro pelos resultados. Não dá para negar que há algum resultado. Mas o verdadeiro resultado da política econômica do governo é o crescimento econômico. Apesar de estar anunciado que vamos crescer 4,5%, é um crescimento abaixo do mundial. E para o ano que vem já está projetado algo bem menor, porque não há nada que o sustente. O que torna o crescimento econômico mais sustentável são os investimentos. E a taxa de investimentos está 18, 19%. O governo reduziu as suas expectativas de crescimento. Ele acha muito bom crescer 3%. Esse é um crescimento muito pequeno para dar emprego aos novos trabalhadores e para reduzir a massa de desempregados. O Lula está se conformando com uma situação que não é nada boa. Nós precisamos crescer 5% em média para poder dar emprego. Se não dermos emprego, temos que estar com um programa de assistência social, fazendo caridade para fazer com que a população sobreviva. Tem um custo muito grande não crescer. Claro que essas condições não se criam de uma hora para outra, mas já estamos nessa política desde 1994. O rumo é esse, o governo Lula não só deu continuidade a esse rumo, mas o tornou mais ortodoxo ainda, por incrível que pareça.

IHU On-Line – Qual é sua expectativa com relação ao futuro do governo?
Gentil Corazza – Eu não estou otimista. Falta ao governo uma visão estratégica, de pensar a longo prazo, abrir os horizontes. Ele está preso à conjuntura, fez uma opção de conquistar credibilidade do mercado. Na minha visão de economista, o mercado sozinho não nos leva a lugar nenhum, é instável, precisa ser regulado. O Estado é imprescindível e não vejo nada dentro do governo que sinalize nessa direção. Alguma coisa melhorou, mas as coisas básicas ainda não foram tocadas. É possível criar alguma estratégia de médio e de longo prazo. Temos que pensar nisso, senão os gargalos não se resolvem. Ou então vai acontecer o que está acontecendo hoje, o governo botou o pé no freio e está tentando conter o crescimento econômico. Por incrível que pareça, pois ele está preocupado com a inflação. Se não se constroem as bases do desenvolvimento, do crescimento econômico, qualquer problema na conjuntura internacional gera uma pressão sobre a infra-estrutura. Aí o governo tem que pisar no freio. Então, a perspectiva não é sustentável.

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