Edição | 29 Novembro 2004

"SÓ UMA CRISE DE GRANDES PROPORÇÕES MUDARÁ O RUMO DO GOVERNO"

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Signatária do recente Manifesto dos Economistas dirigido ao governo federal Leda Maria Paulani assevera que o título do referido documento – E Nada Mudou - expressa, concretamente, a percepção dos seus idealizadores sobre a política econômica brasileira. Economista, doutora em Teoria Econômica, professora da USP, ela acha que “se tivemos mudança, foi para pior”. E não vê qualquer perspectiva de alteração de rumo, a não ser que ocorra “uma crise de grandes proporções”, algo que não está colocado no cenário atual. A entrevista que segue foi por ela concedida na última semana, por telefone. Leda Maria Paulani é professora na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP) e é presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política. É doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da USP, e tem sua tese intitulada Do Conceito de Dinheiro e do Dinheiro como Conceito. É co-autora de O Heterodoxo e o pós-moderno: o cruzado em conflito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Lições da década de oitenta. São Paulo: Edusp, 1995; e A Nova Contabilidade Social. São Paulo: Saraiva, 2000. Leda Maria Paulani participará do 1º Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, a ser realizado no próximo ano, aqui na Unisinos. No dia 23 de junho, a professora falará sobre o tema A Utopia de um novo paradigma para a economia.

IHU On-Line – Na sua opinião, de fato, nada mudou  no cenário econômico brasileiro?

Leda Paulani –
Nada mudou, isto é, mudou no pior sentido. Aprofundaram-se as diretrizes da política liberal e, se tivemos alguma mudança, não foi no sentido de algo diferente do que vinha sendo feito particularmente na última gestão do governo do Fernando Henrique. Do ponto de vista da política econômica, strictu sensu, nada mudou mesmo.

IHU On-Line – Essa abordagem do tipo “nada mudou” não contém uma ênfase por demais acentuada na questão macroeconômica?

Leda Paulani
– Eu não acredito que seja possível separar as coisas como esta visão faz crer que é. Quem defende esse tipo de postura e, ao mesmo tempo, julga que é possível isso se combinar com uma postura desenvolvimentista ou mais à esquerda advoga o seguinte: política macroeconômica tem que ser assim, tem que ser uma política dura, etc., e a gente faz a diferença na política social. Quer dizer: toda a diferença estaria na política microeconômica. E todos os problemas passam a poder ser tratados na esfera microeconômica. Eu acho essa visão completamente equivocada. Por mais que sejam bem sucedidos os programas do tipo renda compensatória como o Fome Zero, Bolsa Família – que estão sendo conduzidos de uma forma muito atrasada, muito antiga, com uma visão muito paternalista do Estado e do próprio Presidente –,o que temos são milhões de famílias dependendo de uma espécie de esmola que vem do Estado. Seria muito diferente a situação dessas famílias se arrumássemos um emprego para o pai ou a mãe de cada uma delas. Isso é dar cidadania, horizonte de vida, perspectiva. Do contrário, o problema imediato é minorado, mas permanece o problema, propriamente dito, não muda a questão orgânica da sociedade. Que futuro tem essa gente? Com a política econômica atual, esses problemas continuam absolutamente sem resolução.

IHU On-Line – O ambiente internacional seria favorável para uma mudança de rumos do País ou isso pouco importa?

Leda Paulani
– Se o governo Lula tivesse utilizado o capital político que tinha no início, para fazer mínimas mudanças, hoje teríamos uma autonomia maior para deliberar internamente sobre os nossos rumos sem ficar dependendo tanto do que acontece no panorama da economia mundial. Cito os dois exemplos de sempre, China e Índia, que deliberam sobre as suas políticas. E por quê? Porque têm uma política externa, do ponto de vista das relações econômicas, que os protege. Esses países têm uma espécie de escudo protetor. Então eles ganham autonomia para deliberar sobre a condução das suas economias internas. Hoje nós não temos essa condição, mas isso é resultado do fato de termos perdido a oportunidade histórica, que tivemos em mãos, para justamente criar essa condição.

IHU On-Line – Essa oportunidade histórica foi perdida devido ao pragmatismo político ou por uma convicção teórico-política da elite dirigente?

Leda Paulani
– Eu diria que isso se deve mais ao pragmatismo político. Julgou-se que o caminho menos conflituoso e doloroso, o caminho para a manutenção do poder, que custou tanto a chegar, (foram quatro eleições), o caminho que exigia menos esforço fosse esse. É mais fácil conciliar do que enfrentar os conflitos, isso é evidente. Então se optou por isso. Eu não sei se o Lula acredita de fato nisso, se o [Carlos] Lessa  tem razão ao dizer que ele está sendo enganado pelas elites, acho que o Presidente não é nenhum ingênuo. Mas também ninguém pode dizer que ele não possa, de repente, ter chegado à conclusão de que esse é o melhor jeito de fazer as coisas. Mas eu acho que muitas pessoas do governo sabem que não é possível termos uma perspectiva boa para o País com a continuidade dessa política. Contudo, acham que não têm nenhum espaço para fazer algo diferente. Como agora o que importa é manter o poder conquistado, então o governo se mantém nessa linha.

IHU On-Line – A senhora acha possível que ocorra uma reaglutinação dos movimentos sociais, forçando o governo a mudar sua linha?

Leda Paulani
– Esse é um outro problema. Nos últimos vinte anos, os movimentos sociais ficaram muito identificados com o Partido dos Trabalhadores. Não por acaso, pois o PT foi um produto da situação ditatorial vivida pelo país e nasceu de baixo, nasceu do movimento operário, dos movimentos sociais. Imediatamente ele ganhou um perfil de partido de esquerda, os intelectuais se alinharam a ele, e a partir de então, por todas essas razões, o partido passa a capturar, a atrair todos os movimentos sociais. Veja-se, para ficarmos em dois casos paradigmáticos, a ligação do PT com o Movimento dos Sem Terra (MST) e com a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que seria de trabalhadores autônoma, “não-pelega”... O que acontece hoje? O PT chegou ao poder e não está fazendo a política que se esperava, mas o fato de o partido estar no poder, de o Lula ser o Presidente, isso acaba constrangendo um pouco os movimentos sociais. O próprio MST anda falando uma coisa aqui e outra acolá, critica a política econômica, mas sempre preserva o Presidente. Com os resultados apresentados até agora, fosse outro o Presidente, o MST estaria bem mais bravo do que está. O professor Francisco de Oliveira  chama essa situação de “o seqüestro da sociedade civil”. Ele fala justamente dos movimentos sociais, das associações de classe, dos sindicatos, que ficaram meio aprisionados. Muitos militantes de base do MST se recusam a acreditar que o Lula não vá fazer aquilo que prometeu. Não se pode falar com eles e criticar o Presidente, eles não aceitam. Então não há um espaço político-ideológico completamente aberto para uma aglutinação e uma pressão para que o governo mude.

IHU On-Line – A sua perspectiva para o futuro do País é pessimista?

Leda Paulani
– Sim. Se considerarmos como otimismo a possibilidade de mudança, eu sou completamente pessimista. Acho que daqui para o final do governo, o que aconteceu nos últimos dias demonstra isso cabalmente, vimos o Lula declarar que a política econômica não mudará, que vai ser isso mesmo, reafirma duramente a política adotada. Como eu não acredito que se possa separar as coisas, não se pode fazer um governo ortodoxo na política econômica e de esquerda no resto, isso é uma ficção, então eu acho que nada vai mudar. A menos que qualquer evento inesperado, uma grande crise, faça com que o governo reavalie a situação e decida por alguma mudança. Mas essa mudança só virá ao preço de uma crise de grandes proporções. Uma crise externa, ou social, ou política, alguma coisa que não está no cenário ainda. Com o cenário atual, eu acho que tudo permanece como está até 2006.

IHU On-Line – A manutenção desse rumo não se deve também a uma certa fragilização do ideário desenvolvimentista?

Leda Paulani –
Sem dúvida. Desde o começo dos anos 1990 temos um ambiente muito arisco às idéias desenvolvimentistas, temos um ambiente agressivamente contrário a elas. Temos não só uma desqualificação das políticas keynesianas  de um modo geral, como temos, particularmente nos países do Terceiro Mundo, e mais particularmente ainda na América Latina, a idéia de que o desenvolvimentismo foi uma coisa errada, burra. O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco dizia isso com todas as letras. Dizia que era preciso apagar a Era Vargas – considerando a Era Vargas como o rótulo de um período que começa com Getulio Vargas em 1930 e vai até os governos militares, período em que ao Estado era atribuído um papel substantivo na evolução econômica. O Gustavo Franco definia o desenvolvimentismo e a Era Vargas como produtos da burrice. Esse era exatamente o termo que ele usava. Depois de cinqüenta anos de “burrice” em termos de política econômica, os iluminados iam fazer a política correta. Ele quebrou o País, que perdeu 45 bilhões de dólares por causa da sua política, mas quem é burro são os outros... Criou-se um ambiente onde, em determinados circuitos de economistas, por exemplo, falar em política desenvolvimentista é falar palavrão, a pessoa é imediatamente marginalizada, considerada incompetente, atrasada, burra e outras coisas mais. Logicamente, isso tudo acaba influenciando as possibilidades concretas desse tipo de idéia voltar a ter espaço.

IHU On-Line – A opção ortodoxa também está impedindo o governo de fortalecer o Estado em algumas áreas ou algo está sendo feito nesse sentido?

Leda Paulani
– Precisamos distinguir duas coisas. Por um lado, é preciso desmistificar a idéia corrente até no discurso da esquerda de que hoje o Estado é fraco, não tem capacidade, não tem condições, se enfraqueceu e se reduziu. Não é verdade. O que houve é que o Estado mudou de cara. No caso brasileiro, como se pode dizer que o Estado enfraqueceu frente ao aumento cavalar da carga tributária? Isso é contraditório. Por outro lado, o Estado brasileiro, diferentemente do Estado argentino, por exemplo, ainda detém instrumentos poderosos. Um deles é o próprio BNDES. Tem algumas estatais poderosas como a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal. Alguma coisa se salvou do vendaval privatizante. São instrumentos poderosos, mobilizam uma parcela da renda nacional bastante substantiva. Fora isso, temos o sistema de Previdência que, com todos os ataques que sofreu ainda é o responsável pelo programa social mais abrangente, acho que um dos maiores do mundo, que é, por exemplo, a previdência dos trabalhadores rurais. O Estado brasileiro é muito forte, muito estruturado. O que acontece é que se pode fazer uso desse Estado de um jeito ou de outro. Dizer que o governo está sem instrumentos para fazer uma política mais adequada ao desenvolvimento do País é algo que não se pode aceitar. Como a política econômica é determinante e todas as demais ações de política, em qualquer esfera, acabam se subordinando às decisões da área econômica, então se diz que o Estado está falido. Mas estruturalmente o Estado teria todas as condições de fazer um trabalho melhor. Como o Lessa, por exemplo, tentou fazer no BNDES, recuperando a capacidade do banco de ser de fato um banco de desenvolvimento, finalidade para a qual ele foi criado.

IHU On-Line – Para sairmos dessa situação, a senhora apostaria mais nos partidos políticos ou nos movimentos sociais?

Leda Paulani
– Apostaria mais nos movimentos sociais. Eles estão constrangidos, como vimos. Mas a forma “partido”, particularmente com este desdobramento da eleição do Lula, ficou muito fragilizada. Votou-se maciçamente no Lula e no PT, na esperança de que se mudasse alguma coisa de modo substantivo e não mudou coisa nenhuma. Então a própria idéia da política, essa que deriva da representação democrática por meio do parlamento, dos partidos, ficou muito fragilizada. Para a grande maioria das pessoas ficou parecendo que não há diferenças, pode-se votar em qualquer partido. Eu estou apoiando a criação do PSOL  mas acho que a forma “partido” e a própria idéia da democracia está fragilizada. Podemos manter uma democracia formal sem que isso represente mudança. A história da ascensão dos partidos de esquerda mostra que o resultado é a continuidade. Nesse sentido, aposto mais nos movimentos sociais.

IHU On-Line – A senhora gostaria de acrescentar outros comentários?

Leda Paulani
– Temos um fato simbólico recém-ocorrido que foi a morte do professor Celso Furtado. De uma certa forma, ele morreu junto com o enterro das idéias desenvolvimentistas que tanto defendeu ao longo da sua vida. Celso Furtado foi uma espécie de símbolo do desenvolvimentismo. Não só teoricamente, porque construiu o conceito de subdesenvolvimento, mas também porque ele tinha muito claro quais eram as providências que o Estado brasileiro deveria tomar para tirar o País do subdesenvolvimento. Elas nunca passaram apenas pelo desenvolvimento econômico strictu sensu, pela industrialização, por exemplo. Ele acrescentava a isso o planejamento, a participação ativa do Estado como organizador da economia, a absoluta necessidade de redução das disparidades de renda e das disparidades regionais. A isso, também acrescentava a necessidade do fortalecimento da sociedade civil e da democracia. Nada disso foi feito, os rumos do mundo depois dos anos 1970 foram em direção contrária. E o Brasil é uma boa expressão desse movimento contrário ao que ele pensava. Essas idéias foram simbolicamente enterradas, com estes dois eventos: a demissão do Lessa na quinta-feira [18-11-2004] e a morte de Celso Furtado no sábado [20-11-2004].

Últimas edições

  • Edição 553

    Arte. A urgente tarefa de pensar o mundo com as mãos

    Ver edição
  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição