Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Crise, consumo e endividamento

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Bruna Quadros

Tema será discutido no dia 04 de dezembro, no evento IHU Ideias

Mesmo em tempos de desestabilização nas balanças financeiras, a população continua consumindo, muitas vezes, exagerada e compulsivamente. Esta é uma situação que leva os indivíduos ao endividamento, fenômeno que “assumiu visibilidade nos últimos anos, mas principalmente neste, pois a população teve ampliado seu acesso ao crédito e agora está constatando que não consegue assumir tais compromissos”, conforme aponta, por e-mail, a Assistente Social Judiciária, da Comarca de Sapucaia do Sul, Neide Fontana, em entrevista à IHU On-Line. Ela, assim com a Juíza de Direito Estadual da 2ª Vara Cível da Comarca de Sapucaia do Sul, Clarissa Costa de Lima, estará no Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 4 de dezembro para falar sobre crise, consumo e endividamento. Elas irão debater o tema a partir do projeto do Poder Judiciário para o tratamento das situações de superendividamento do consumidor. A seguir, acompanhe as entrevistas concedidas pelas palestrantes:

IHU On-Line - Qual a atuação dos profissionais de serviço social, junto ao projeto “Tratamento das Situações de Superendividamento” proposto pelo Poder Judiciário?

Neide Fontana - O serviço social faz o acolhimento às pessoas que procuram o Projeto. O atendimento é realizado pelas estagiárias de serviço social da Unisinos, com a minha supervisão.  A atuação profissional se dá no âmbito da garantia de direitos, intervindo neste “novo” fenômeno social. Através do atendimento aos usuários do Projeto, é possível identificar outras implicações causadas pelo endividamento, como o sofrimento psíquico, os conflitos familiares, o estresse. Outra atividade do serviço social é identificar quais as instituições da rede de serviços podem estar agregadas nessa temática, oportunizando a inserção desta demanda, uma vez que o Judiciário não tem como dar conta de todas as implicações que o problema do endividamento apresenta.

IHU On-Line - Em que regiões do Estado o endividamento é mais freqüente?

Neide Fontana - Como o Projeto atualmente está presente somente nas cidades de Sapucaia do Sul, Charqueadas, Sapiranga, Porto Alegre e Santa Maria, temos dados concretos somente das mesmas. Contudo, compreendemos que o endividamento é um fenômeno presente em todo país vide a grande recorrência do assunto na mídia. O que observamos é que ele assumiu visibilidade nos últimos anos, mas principalmente neste, pois a população teve ampliado seu acesso ao crédito e agora está constatando que não consegue assumir tais compromissos. Antes se falava em pessoas endividadas, hoje são superendividados. Há a impossibilidade do consumidor leigo e de boa-fé pagar todas as suas dívidas atuais e futuras.

IHU On-Line - Em sua opinião, que fatores levam os consumidores ao superendividamento?

Neide Fontana – São vários os fatores que causam o superendividamento, mas posso destacar principalmente a oferta excessiva e irresponsável de crédito, a falta de ações educativas para o consumo, a pulverização do crédito consignado, comprometendo principalmente os idosos. Por fim, outro fator que implica nessa situação é que cada vez mais o consumo tem se tornado uma forma de inclusão social. Como diz Bauman, o sujeito contemporâneo tem no consumo a centralidade da vida, ou seja, os indivíduos têm no consumo uma fonte de felicidade e realização. Somado a isso, o Brasil não possui uma legislação de proteção ao crédito.

IHU On-Line - O que falta para que haja mais conscientização da população, em termos de economia e planejamento das finanças?
Neide Fontana
- Ações de caráter sócio-educativas que possibilitem a educação para o consumo. Diríamos que temos que avançar na construção de uma “cultura do orçamento doméstico”, que implica em ações educativas mais amplas, como, por exemplo, na escola o professor incluir no programa atividades que levem às crianças essa cultura, como se avançou na temática do meio ambiente. Constatamos que o superendividamento se dá em todas as situações de renda, o que nos leva a crer que se trata de um fenômeno característico do tempo em que vivemos.

IHU On-Line - Como sobreviver em tempos de crise financeira mundial, sem entrar para a lista dos consumidores endividados?

Neide Fontana - O planejamento financeiro com a participação da família é uma alternativa para evitar o superendividamento e essa é uma dica importante não só em momentos de crise, mas deveria ser um hábito cotidiano.

IHU On-Line - Que perspectivas podemos adotar diante deste desequilíbrio monetário? A tendência é continuar crescendo o número de devedores?

Neide Fontana – Infelizmente sim, haja vista que, em meio à crise atual, o presidente da República pede que a população continue consumindo, iludindo a população de que a crise internacional não vai nos atingir. Porém, algumas atitudes podem auxiliar as pessoas a manter o equilíbrio das finanças: planejar os gastos, como já mencionei, procurar não cair nas armadilhas do crédito fácil e voltar aos antigos hábitos de comprar à vista, de economizar para depois adquirir.

IHU On-Line - Como o Poder Judiciário pode contribuir no enfrentamento do superendividamento?

Neide Fontana – Através do Projeto, o Poder Judiciário mostra sua preocupação com o problema e tem o objetivo de proporcionar a reinserção social do consumidor endividado através de uma conciliação com seus credores. O Projeto pretende, também, coletar subsídios para a formulação de uma legislação específica de proteção ao crédito aos moldes de países que já passaram por situações semelhantes, como Portugal e França. A iniciativa do Poder Judiciário já atingiu 80% de conciliação entre devedores e credores.

IHU On-Line - Há quanto tempo é desenvolvido o projeto para o tratamento das situações de superendividamento do consumidor? Como surgiu esta iniciativa do Poder Judiciário e de que maneira é realizada?

Clarissa Lima - A iniciativa surgiu a partir dos estudos de direito comparado realizado no Núcleo de Estudos do Superendividamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O procedimento é consensual (voluntário) e gratuito. Tem início a partir da iniciativa do próprio consumidor superendividado que recorre ao projeto com a intenção de pagar as suas dívidas de acordo com o orçamento familiar, sem prejuízo do sustento de sua família.

IHU On-Line - A partir do projeto, que resultados já foram obtidos junto aos consumidores? Já é possível perceber uma mudança na relação entre consumidor e credor, a partir da iniciativa? Qual?

Clarissa Lima - Os resultados são muito positivos. No primeiro ano de execução do projeto nas Comarcas do interior, obtivemos um índice de conciliação superior a 60%. Nos primeiros seis meses de projeto em Porto Alegre, o índice chegou a atingir 80% de conciliação. Os índices são muito superiores à média nacional de 30% divulgada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Notamos algumas mudanças no comportamento entre devedores e credores. A primeira delas é que os credores valorizam a iniciativa do superendividado em recorrer ao projeto, reconhecendo o esforço deles em pagar as dívidas e honrar os contratos celebrados. Os credores parecem também mais solidários em relação aos superendividados passivos, ou seja, àqueles que se endividaram, não porque gastaram mais do que ganhavam, mas por razões involuntárias, a exemplo do desemprego, divórcio/separação, doença etc. Alguns credores já estão percebendo que ninguém lucra com a exclusão do superendividado do mercado e que é preciso buscar uma alternativa para sua reinserção social. De outro lado, o superendividado adquire um aprendizado ativo, a partir de sua participação no projeto e nas Oficinas de Orçamento Doméstico, onde recebe noções sobre os contratos de crédito, sobre os riscos e endividamento excessivo e sobre a importância de elaboração de um orçamento familiar para evitar novos casos de endividamento.

IHU On-Line - Em sua opinião, qual é o fator que acaba dificultando a negociação, em caso de endividamento? Neste sentido, qual é o papel do Poder Judiciário?

Clarissa Lima - As maiores dificuldades se deve à insuficiência da renda de alguns superendividado para pagar todos os credores e aos elevados encargos cobrados que acabam aumentando muito o valor da dívida. No projeto, o papel do Judiciário restringe-se à mediação, facilitando o diálogo entre as partes, além de auxiliar na elaboração de um plano conjunto de pagamento, compatível com a renda do superendividado.

IHU On-Line - De que maneira a senhora avalia a situação de endividamento no Rio Grande do Sul, por parte dos consumidores, e o que, em sua opinião, desencadeia este processo?

Clarissa Lima - Inúmeros fatores sociais, políticos e econômicos podem contribuir para o endividamento excessivo do consumidor gaúcho. Destacaria como fator preponderante a excessiva oferta de crédito por parte de alguns fornecedores sem o cumprimento dos deveres de informação como determina o Código de Defesa do Consumidor. Há ainda o problema da concessão do crédito sem a respectiva avaliação prévia da capacidade de reembolso do consumidor.

IHU On-Line - Quais os prejuízos para o Estado, com o superendividamento da população? É possível minimizar os danos? De que maneira?

Clarissa Lima - O Estado pode ter inúmeros prejuízos com o endividamento excessivo da população. O superendividamento não é um problema apenas jurídico, tem repercussões em outros domínios. Nas relações familiares, o superendividamento pode gerar situações de violência doméstica ou mesmo problemas conjugais; no emprego pode gerar instabilidade em razão da redução da produtividade ou das seqüelas que traz à saúde do empregado (desequilíbrio emocional, quadros depressivos). Todas essas situações, sem dúvida, têm um custo social muito elevado para o Estado. É possível minimizar os danos através de uma ação preventiva com foco na educação e informação e através da disponibilização de uma Lei de tratamento deste fenômeno como já fazem alguns países: França, Alemanha, Bélgica, Eua, Canadá, entre outros.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição