Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Invenção - Sérgio Alcides

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André Dick

Editoria de Poesia

O poeta Sérgio Alcides nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1967, e mora em São Paulo desde 1998. Bacharel em Comunicação Social e mestre em História Social da Cultura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), além de doutor em História Social, pela USP, Alcides é autor dos livros de poesia Nada a ver com a lua (Rio: Sette Letras, 1996) e O ar das cidades (São Paulo: Nankin, 2000). Também publicou o estudo Estes penhascos – Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (São Paulo: Hucitec, 2003), e organizou uma edição de Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos (São Paulo: Ática, 2005). Além disso, como tradutor, verteu para o português os livros O caçador de sonhos e outros contos da criação (São Paulo: Companhia das Letras, 2003) e O que é a verdade? Poemas de bichos (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), ambos de Ted Hughes. Com o poeta Ronald Polito, por sua vez, organizou e traduziu poemas do catalão Joan Brossa, em Poemas civis (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998), e do mexicano Julio Torri, em Almanaque das horas e outros escritos (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2000).

Desde seu primeiro livro, Sérgio Alcides mostra uma grande preocupação em sintetizar uma percepção sobre o cotidiano. Seu contato com os mais diversos poetas, como os mencionados anteriormente, mostra também um conhecimento profundo da tradição poética. O poema “Combustão”, do livro O ar das cidades, nesse sentido, é bastante referencial: “Uma cidade cercada de incêndios. / Vivemos debaixo de fuligem nesta seca. / Há muita cortesia, como se nada. / Como se as narinas não ardessem. / E os troncos acesos dessem flor. / Também agarro algum crepitar de meu. / Sob o céu amarelo, sob a lua roxa”. Em poucos versos, Alcides compõe o retrato de uma cidade, remetendo aos seus sinais: “incêndios”, “fuligem”, “troncos acesos”, sob um “céu amarelo” e uma “lua roxa”. Trata-se de uma paisagem urbana delineada com cuidado, revelando a “combustão” presente no título.

O sujeito incorporado pela cidade

No poema “Às minhas costas”, ocorre outra característica: o sujeito acaba sendo incorporado pela cidade: “As portas do metrô mastigam / o ar condicionado.  / / Estou em trânsito, com os demais. / Percorremos a rede incorpórea / que há de permanecer. / / Não se ultrapassa a linha amarela. / Nada cheira. E a escada rolante / – áspera via – até se alegoriza / / ao conduzir-nos de volta ao simulacro / passageiro das avenidas. / / Na saída, ponho os óculos escuros”. Mais uma vez, Alcides consegue compor a paisagem urbana moderna, focalizando a falta de espaço da cidade grande, assim como a indefinição do sujeito (“Estou em trânsito, com os demais”). Nesse ambiente, “nada cheira” e a escada rolante “se alegoriza” para conduzir o sujeito a um “simulacro”, a um ar diferente.

No entanto, diante dessa turbulência do movimento cotidiano, o sujeito coloca os “óculos escuros” – como se não quisesse enxergar devidamente o que se passa à sua volta, ou então como se quisesse se proteger da realidade. Em “Rodoviário”, compõe outros versos que remetem à permanente dúvida desse sujeito: “Desço do ônibus para o dia, / vou lavar o rosto na dúvida. / / Acordei sem chegar, cheguei”. E o seu sufocamento, em “Um ‘slide’”: “Mal consigo ler / a cidade no meio das letras / a gente fora dos outdoors. / /Há muitos destroços / de palavras e luzes, rebites e bits / cobrindo o coração”.

Num poema como “Falta”, ainda inédito em livro, o poeta compõe imagens que remetem, no entanto, a um espaço mais amplo: “Maré baixa. O píer não se precipita / senão sobre o resíduo que vem dar na praia, / memória do mar, areia raiada ainda / pelas pegadas das águas em fuga, flauta / soprando invertida, para dentro de seus / pulmões: distância como concerto de sons / ausentes, renúncia da ventania, sujas / espumas abandonadas como se fossem bens, / algas e conchas entre ruínas de garrafas, / desperdício de mensagens, paus. perdidos”. Há um movimento, nesse poema, da beleza do oceano para a realidade urbana, com “algas e conchas entre ruínas de garrafas”. No mesmo poema, escreve: “o caranguejo flana entre / fragmentos de propaganda e etiquetas loucas”.

Nos poemas inéditos que Sérgio Alcides enviou à IHU On-Line é possível perceber essa saída da realidade urbana para um espaço mais amplo, mais especificamente do sertão de Minas Gerais. Neles, Alcides apresenta um verso mais longo do que em seus dois primeiros livros, mostrando acréscimos em sua poética. 

Assentamentos

No sertão tudo se torna alegoria.

A seriema não se distrai de ser um signo.

De dia, o anu-preto apita seus anúncios.

De noite, uma rasga-mortalha corta os hábitos noturnos.

O céu está em ordem: não pesa nas costas do rio.

(O santo flui por intermédio).

O céu assiste sem ironia às obstinações que passam.

Logo acima do grão de terra já fica o céu.

O céu se apresenta em demasia.

Onde é real, parece um sonho.

A paisagem toda forma uma leitura.

Quem chega, é como ter nascido e ser amparado por uma letra A.

 

 

Cifro

O rio baldio não vale a pena. Então, vai.

Agora que o vejo correr por fora de mim,

depois de tanta procura por dentro,

percebo que somos os dois estrangeiros.

Um para o outro, como duas margens.

Que correm? Como pode? Se não sou eu

o rio despenhado, por que me fertiliza?

Continuo. Falto a mim. E vim, reflui

aquilo que fui, por cima dos acidentes.

Giro pelo sertão, onde tudo fica fora...

Entrei, e já não me reconheço

no ar livre que respira, na secura, nem

nas paisagens deste outro vazio aonde

vim representar um pássaro a mais

sem saber ao menos o que cifro.

Plumagem da minha estranheza,

cante alguma coisa para mim.

 

 
Reverdece

Já terminou a floração dos ipês:

entre os espetos da paisagem despida,

a displicência daqueles amarelos,

o aspecto de sua espera pelas águas

sob o céu sangrado de azul do sertão.

Foi “chuva de broto”, me disseram.

No fim de agosto, chuva a contragosto.

Abafado, o trovão fez soar o bocejo

do pasto seco sem fim, rangendo

para entrar na primavera. A natureza

se renova, estou num lugar-comum,

não posso voltar atrás. Vou levar

para ela as primeiras flores roxas

da árvore velha que nos recebeu

tão seca e desfolhada, faz um mês,

e continuava nua há uma semana,

quando ela partiu, mas reverdece.

    Pé do Morro, MG
     Setembro de 2008

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