Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Identificar as Ciências Sociais com a hermenêutica: uma mutilação lamentável

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Graziela Wolfart

Rodolfo Gaeta não acredita que a hermenêutica de Gadamer constitua um aporte favorável para o desenvolvimento das Ciências Sociais. Ele não entende “por que consideram válido introduzir o conceito de campo magnético e de atração gravitacional na física, por exemplo, e não o de classe social ou o de mercado nos estudos sociais”. E sobre as origens das Ciências Sociais, Gaeta afirma: “Assim como o homem aprendeu, na prática, os princípios da física, da astronomia ou da biologia desde o início da espécie humana, a vida em grupo ofereceu, desde o primeiro momento, o que, com o passar dos séculos, se converteria nas ciências da sociedade”.

Retomando o tema de capa da última edição da IHU On-Line, As Ciências Sociais hoje. Os 50 anos do curso de Ciências Sociais da Unisinos (número 283, de 24-11-2008), entrevistamos por e-mail o professor Rodolfo Gaeta. Ele confessa que não cansa de tentar compreender “como alguns filósofos da ciência contemporâneos manifestam tanta resistência contra o holismo metodológico, caracterizado pela referência a classes ou grupos sociais, ao mesmo tempo em que defendem a imprescindibilidade da utilização de termos teóricos nas Ciências Naturais”. E não entende “por que consideram válido introduzir o conceito de campo magnético e de atração gravitacional na física, por exemplo, e não o de classe social ou o de mercado nos estudos sociais”. Sobre as origens das Ciências Sociais, Gaeta afirma: “Assim como o homem aprendeu, na prática, os princípios da física, da astronomia ou da biologia desde o início da espécie humana, a vida em grupo ofereceu, desde o primeiro momento, o que, com o passar dos séculos, se converteria nas ciências da sociedade”.

Rodolfo Gaeta, doutor em Filosofia, é professor titular da Universidade Nacional de La Plata, Buenos Aires, e da Universidade Nacional de Luján. É co-autor de Aspectos críticos das Ciências Sociais. Entre a realidade e a metafísica, ao lado de Nélida Gentile e Susana Lucero (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008).

IHU On-Line – O que podemos entender pela Filosofia das Ciências Sociais? 

Rodolfo Gaeta - É conveniente começar com o estabelecimento de algumas precisões conceituais. Em primeiro lugar, quando nos referimos à filosofia das ciências — seja ela a filosofia da ciência em geral, a filosofia de um conjunto de ciências ou a filosofia de uma disciplina científica em particular —, estamos aludindo a um grupo de problemas que, mesmo encontrando-se relacionados, devem diferenciar-se. Freqüentemente, a expressão “filosofia da ciência” se restringe aos aspectos metodológicos e procura descobrir quais são as estratégias de investigação que efetivamente têm levado ao desenvolvimento e ao êxito das ciências ou, em todo caso, quais deveriam ser tais estratégias. Outras concepções filosóficas acerca da ciência se preocupam quase que exclusivamente com certos valores sociais, como a necessidade de melhorar o bem-estar físico dos seres humanos ou eliminar as injustiças derivadas dos sistemas econômicos e políticos, ou seja, contrapõem o conhecimento dos objetos de estudo com a urgência de transformar a realidade, e esta última tendência é muito notável na filosofia, explícita ou implícita, que campeia nas Ciências Sociais. A busca de conhecimento e o empreendimento de ações voltadas a transformar a realidade são duas atitudes que, longe de se enfrentar, complementam-se. Se não dispomos de conhecimentos adequados, arriscamos a efetividade das ações.

Metodologia

Em relação aos aspectos metodológicos das Ciências Sociais, as clássicas dicotomias naturalismo/antinaturalismo, individualismo/holismo, livre arbítrio/determinismo — embora componham temáticas muito interessantes no campo da filosofia — tampouco me parecem tão decisivas. É curioso que muitos epistemólogos e cientistas sociais, sobretudo alguns que pretendem seguir Marx, não parecem advertir que o autor de O capital, em consonância com sua fé materialista, inclinava-se, a sua maneira, pelo monismo metodológico. Do mesmo modo, não canso de tentar compreender como alguns filósofos da ciência contemporâneos manifestam tanta resistência contra o holismo metodológico, caracterizado pela referência a classes ou grupos sociais, ao mesmo tempo em que defendem a imprescindibilidade da utilização de termos teóricos nas Ciências Naturais. Não entendo por que consideram válido introduzir o conceito de campo magnético e de atração gravitacional na física, por exemplo, e não o de classe social ou o de mercado nos estudos sociais. É indiscutível que, em última instância, os processos sociais remetem a situações ou ações protagonizadas por seres humanos individuais, mas este reducionismo ontológico não é o suficiente para justificar uma metodologia exclusivamente individualista.

IHU On-Line – O que é mais importante quando falamos das origens e da história da sociologia?

Rodolfo Gaeta - Todas as disciplinas científicas têm uma origem incerta, visto que surgem a partir dos conhecimentos elaborados pelas diferentes culturas, em épocas muito remotas. Assim como o homem aprendeu, na prática, os princípios da física, da astronomia ou da biologia desde o início da espécie humana, a vida em grupo ofereceu, desde o primeiro momento, o que, com o passar dos séculos, se converteria nas ciências da sociedade. Dizem que as Ciências Sociais são mais jovens que as Ciências Naturais, mas creio que se trata de uma certa confusão. Em todo caso, pode ser verdade que as nomenclaturas acadêmicas e sua organização sistemática sejam relativamente recentes, mas não a tentativa de conhecer os fenômenos sociais e descobrir suas características. Alguns autores sustentam, inclusive, que o processo tem sido, em boa medida, inverso: adotaram-se conceitos criados para dar conta dos fenômenos sociais para projetá-los, então, sobre a natureza. Assim, a idéia de culpa ou responsabilidade, por acaso, chegou a converter-se na noção de causa que as Ciências Naturais utilizam. No que se refere à sociologia moderna, os antecedentes precedem às publicações de Comte, que introduziu precisamente o nome “sociologia” para batizar esta classe de estudos; e a lista de quem contribuiu em constituí-la, mesmo num quadro de preocupações mais amplo, como Hobbes,  Rousseau,  Saint Simon  ou Adam Smith,  é muito extensa. Gostaria de destacar que quem realizou esses aportes advertiu muito precocemente as estreitas relações que existem entre os aspectos sociológicos e as questões econômicas. Não por casualidade, estas últimas se encaixaram em uma disciplina que recebia a denominação de “Economia Política”. Na atualidade, a sociologia tem se dividido em uma série de especialidades que focalizam em seus respectivos objetos de interesse, como aconteceu com as ciências naturais.

IHU On-Line - Quais são as principais contribuições de Max Weber, Pierre Bourdieu e Anthony Giddens para a sociologia?

Rodolfo Gaeta - Os principais aportes de Weber  à sociologia foram, em primeiro lugar, proporcionar uma finíssima análise de um grande conjunto de questões metodológicas das Ciências Sociais, especialmente sobre a maneira de combinar a “compreensão” da conduta humana com explicações de caráter objetivo. Em segundo lugar, a atenção que é dada ao peso dos aspectos culturais, por si própria, contribuiu para contrapesar o excessivo economicismo que a tradição marxista adquiria. Deve se destacar também a introdução do recurso conceitual dos tipos ideais. Com este instrumento, Weber assumiu uma vocação que marcou a conveniência de superar o nível da mera coleta de dados empíricos para transcendê-la em favor da elaboração de hipóteses expressas por meio de termos teóricos, embora nunca tenha perdido de vista a necessidade de validar tais hipóteses com a ajuda do contraste empírico.

Bourdieu

Pierre Bourdieu,  cuja notoriedade se tem visto enormemente favorecida por sua decisão de participar ativamente dos conflitos sociais que tinham lugar na sociedade francesa de sua época e, sobretudo, ao que hoje se costuma chamar “exposição midiática”, sabia fazer bom uso das aulas das grandes figuras que o precederam: Marx,  Durkheim  e Weber. Seguindo os passos de Weber, “temperou” o economicismo dos marxistas, mas aproveitou, embora alterando seu significado original, a tese da importância do “capital” nas relações humanas. Na sua obra, Bourdieu já não trata do capital expresso em termos monetários, mas em uma série de capitais de diferentes tipos: capital social, cultural, simbólico. Além disso, o conceito de luta de classes que atravessa completamente a sociedade e até mesmo, a longo prazo, transcende as fronteiras dos países e adquire dimensões mundiais, de acordo com os marxistas, aparece nas teses de Bourdieu fragmentado em um conjunto de conflitos disseminados nos distintos campos de poder nos quais se distribuem as variadas atividades sociais. Assim, tanto o mundo da moda como o da investigação científica constituem, junto com muitos outros, campos de batalha relativamente isolados, nos quais se enfrentam os setores dominantes com os dominados. Tenho a impressão de que Bourdieu atualizou a teoria sociológica recolhendo resultados que estavam quase ao alcance do sentido comum e manifestou grande agudeza para identificar os fatores relevantes da dinâmica social e batizá-los através do recurso de re-significar conceitos preexistentes.

Giddens

O pensamento de Giddens  apresenta um caráter marcadamente eclético, que procura questionar o que considera falências das posições que rivalizavam no âmbito da sociologia, porém conservando algumas de suas virtudes. Outra proposta original de Giddens é a concepção da metodologia das Ciências Sociais como uma “dupla hermenêutica”. Os pluralistas metodológicos encontravam na hermenêutica um elemento definidor das Ciências Sociais, apoiados na convincente crença de que não se pode entender as ações dos agentes, a menos que se tome em consideração o que eles conhecem e aplicam ao atuar no modo como o fazem.

IHU On-Line – Além destes, quais outros autores e obras da sociologia o senhor sugere para compreendermos as sociedades contemporâneas?

Rodolfo Gaeta - Devo ser sincero e confessar que é praticamente impossível responder a esta pergunta. Somente arrisco dizer que há muitos autores em cujas obras encontraremos idéias que esclarecerão nosso pensamento sobre a sociedade contemporânea, embora isso não signifique que devamos coincidir plenamente com a totalidade das teses que sustentam. Porém, podemos, sem dúvida, aprender, como já sugeri, tanto com as reflexões dos clássicos quanto com as dos contemporâneos. Podemos evitar, por exemplo, a imagem do denotado Maquiavel descrevendo ante seu Príncipe como se comportam os governantes astutos, quando nos inteiramos das decisões que tomam nossos políticos? Parecia que a obra de Marx se encaminhava ao esquecimento quando foi derrubado o muro de Berlim, porém faz poucos dias que li num jornal que, na Alemanha, estavam esgotando as edições de Das kapital. O número de exemplares vendidos crescia em proporção inversa à queda do valor das ações nas bolsas de comércio mundiais. No entanto, não acredito que estejamos diante da catástrofe final do capitalismo: o mais provável é que, de algum modo, dentro de um certo período, tudo volte ao normal e, neste caso, seguramente também se acalmará a demanda nas livrarias alemãs.

IHU On-Line - Qual é o principal legado da Escola de Frankfurt para as Ciências Sociais?

Rodolfo Gaeta - A Escola de Frankfurt  nasceu num contexto histórico que soava promissor para o marxismo. Parecia mais que justificado, então, partir das idéias de Marx e desenvolvê-las conforme o método científico. A via devia ser uma elaboração mais fina das idéias de Marx e sua complementação com a investigação empírica. A ascensão do fascismo e a exaltação da ideologia nazi, que atraíam as massas, surgiram como um cataclismo inesperado. Os gestores da Escola de Frankfurt resistiam em abandonar o marxismo, porém não podiam deixar de reconhecer que os conceitos elaborados pelo fundador dessa corrente de pensamento não davam conta da marcha da história. Frente a essa situação, surge uma saída inesperada: as limitações da teoria marxista devem atribuir-se ao resultado de uma epistemologia equivocada. Habermas  adverte com lucidez o naturalismo implícito na concepção epistemológica de Marx. De acordo com ele, a falida libertação do homem só pode resolver-se por meio de um tipo especial de racionalidade, a qual denomina “razão emancipatória” e que se opõe, sobretudo, à “razão instrumental”, que procura o domínio técnico e é própria das ciências naturais. A razão emancipatória constitui o elemento principal do que Habermas denomina “ciências críticas”, representadas pela psicanálise e pela sociologia. Para mim, o legado que a Escola de Frankfurt transmite à sociologia é a proposta de transformar-se numa corrente da filosofia social.

IHU On-Line - De que modo a hermenêutica de Gadamer contribui para a constituição das Ciências Sociais?

Rodolfo Gaeta - Não estou convencido de que a interpretação da conduta humana ofereça condições para traçarmos uma diferença epistemológica substancial entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais. Em conseqüência, não creio que a hermenêutica de Gadamer  constitua um aporte favorável para o desenvolvimento das Ciências Sociais. Creio que há uma série de equívocos em relação a conceitos tais como os de sentido, compreensão ou interpretação. Há maneiras de formular hipóteses interpretativas que se ajustam perfeitamente aos padrões metodológicos das ciências naturais e, paralelamente, as ciências naturais também comportam ou toleram certas modalidades de interpretação. Nada impede, por exemplo, de atribuirmos certas crenças e intenções a um ser humano e o aspecto decisivo não radicar em como nos ocorrem essas atribuições. Pretender que as Ciências Sociais se identificam com a hermenêutica parece-me que seria impor-lhes uma espécie de mutilação lamentável.

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