Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Fantasia e Filosofia: uma estrada diferente ou um diálogo estranho?

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Análises dos diálogos entre os personagens de Lobato

O diálogo abaixo entre a boneca Emília e o sabugo Visconde é um trecho da tese de André Moura,  pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Sua pesquisa de doutorado investiga as relações existentes entre a filosofia e a literatura de fantasia, especialmente na obra infantil de Monteiro Lobato. Essa homenagem ao universo do Sítio do Picapau Amarelo não pode ser encontrada em nenhum dos livros de Lobato, mas traduz com êxito o dialogismo que costura as aventuras protagonizadas pelos “picapauzinhos”. A narrativa lobatiana concilia opostos, para redescobri-los não tão contrários assim, em uma clave polifônica que põe em xeque qualquer tentativa de compreensão monolítica e endógena da cultura, da ciência e da experiência humana como um todo.

André Moura é formado em Biologia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e mestre em Letras, pela mesma universidade. Em seguida, confira outro diálogo entre os pesquisadores André Moura e Thatty Castello Branco, referente à conversa de Emília e Visconde.

Diálogo 1

Como o calor da segunda quinzena de dezembro já havia começado, pondo por terra qualquer esperança de atividade prolongada, Emília e Visconde se deitaram para um banho de sol, certas vezes comendo calmamente uma fruta ou tomando um suco gelado, mas na maior parte das vezes, lagarteando. Vez ou outra, um fiapo de idéias poderia se distinguir dos seus derretidos fluxos de consciência – evidentemente resultado de algum relaxamento momentâneo. Foi durante um destes breves momentos que eles se voltaram para a Filosofia, para discutirem questões filosóficas que sempre tiveram um efeito estimulante sobre os dois.

Visconde: Emília, eu acho que a Fantasia e a Filosofia têm algo em comum.

Emília (duvidando): É mesmo, Visconde? Eu acho que você está fazendo uma danada de uma confusão com todos estes livros que você tem lido das prateleiras. Lido? Às vezes eu acho que você tem é “comido eles”. Mas tudo bem, eu quero ouvir o que está na sua mente bolorenta. Comece com o seu ponto de vista. Qual o tipo de Fantasia vai ser o ponto de partida? 

Visconde: Eu acho que vale a pena comparar alguns mundos paralelos, porque eu realmente acho que esta é a chave para compreender as obras destes autores...

Emília (interrompendo): Ei, ei, espere um segundo, parem as máquinas! Que autores? Eu perdi alguma coisa?

Visconde: Oh, desculpe, você tem razão, você sabe, às vezes eu me esqueço que as pessoas não podem ler a minha mente. Alguns autores que criaram mundos alternativos, mundos paralelos, que estão definitivamente conectados com os “mundos primários”. Lewis Carroll, com Alice e o país das maravilhas, L.F. Baum,  com Dorothy e Oz, C.S. Lewis e sua turma de Nárnia;  
 
Emília (interrompendo de novo): Lobato e a mais maravilhosa boneca do mundo, Emília, euzinha, eu mesma, Astrid Lindgren  e…
 
Visconde (bravo): Você tem certeza de que quer um diálogo?

Emília (resmungando): Hmmm. Só queria ajudar… Também me lembrei de Astrid Lindgren, mãe da minha querida amiga Píppi, emilíssima como eu, outra menina da pá virada, como a Rãzinha…

Visconde: Tentando seguir de onde eu parei, acho que é possível comparar alguns mundos secundários, pois eu realmente creio que esta é a chave para a compreensão do trabalho destes autores. Na minha opinião, eles não são apenas criadores de fantasia, não são apenas “fantasistas”. São críticos da realidade, são filósofos, são pensadores. Eles usavam a fantasia como um modo de alcançar, apreender, pensar o universo que os circundava. A fantasia como uma ferramenta ontológica e epistemológica. É o que pretendo investigar.

Emília: Bem, deixe-me ver se eu entendi bem… Você está sugerindo a fantasia como uma ferramenta filosófica, certo? Então o seu enfoque faz da fantasia uma literatura utilitária, com um propósito específico, bem como a partir de um ponto de vista didático, didatizante, ou como aquelas histórias com moralidades, purgantes em embalagens de livro… E como é que fica o prazer estético, para usar um conceito barthesiano, a fruição da Fantasia?

Visconde: No meu ponto de vista, tais enfoques não são excludentes. Poderíamos pensar em camadas de interpretação, assim como camadas de leitura. Por exemplo, podemos ouvir uma canção sem pensar nas letras ou podemos focar a atenção apenas no que o letrista quis dizer e, ainda, podemos dançar sem atentar para letra ou música… Você está me acompanhando?  
 
Emília (bocejando): Sim, estou, mas acho que você está tomando a trilha errada… Mas eu quase concordo com você. Você quer dizer que é possível pensar e dançar, não é isso?
 
Visconde: Sim, mas, como eu disse, não são dimensões excludentes. Podemos pensar que se pode ler em uma vereda muito presa ao enredo enquanto que outros podem descolar, em uma interpretação da realidade que tenha um viés filosófico…
 
Emília: Bom, muito bom, bisótimo você ter mencionado “viés filosófico”… Nós temos séculos e séculos de filosofia. Qual será o seu viés, o seu convés filosófico, Sr. Sábio Sabugo Sabichão de uma figa? Qual barca vai tomar nesta viagem tão especial? A de Gleyre…(mal segurando o riso)
 
Visconde: Bem… bem… Devo confesso que agora você me pegou, sua danadinha! Mas me vejo tentado a pensar que a chave então esteja nos filósofos anteriores a Platão e Aristóteles, nos pré-socráticos. Antes dos filósofos separarem mimesis e poiesis, mythos e logos… Ainda estou refletindo, mas é certo que a civilização ocidental transformou realidade e fantasia em opostos. Suspeito que tenham se perdido, e costumavam andar juntas, ou trabalharem juntas. Como Kathryn Hume afirma em seu livro Fantasy and mimesis, são pontas separadas de algo contínuo. As relações entre fantasia e ontologia podem ser muito interessantes! Jill Patton Walsh salienta que “uma obra de fantasia compele o leitor a um estado metafórico da mente. Uma obra realista, por outro lado, permite leituras muito literais… Ou mesmo pior, é possível chegar ao cúmulo de ler uma obra realista como se ela não fosse uma obra de ficção!!”.

Emília (com dificuldade para manter os olhos abertos): Idéias interessanteszzzzzzz...

Visconde: Ainda de acordo com Kathryn Hume, e falando de Filosofia, parece água para meus lábios sedentos quando ela afirma que “os filósofos clássicos abriram um rombo na consciência crítica ocidental quando eles estabelecem sua atitude negativa acerca de sua tradição mitológica, que foi fortalecida com mudanças culturais, levando a um descrédito generalizado da fantasia”. Também gostaria de citar Paul Ricoeur,  em seu livro A metáfora viva: “A metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso libera o poder que algumas ficções têm de redescrever a realidade”. E também J. R. R. Tolkien,  em seu ensaio seminal, “On fairy-stories”, no qual ele formula que “A fantasia é uma atividade humana natural. Ela certamente não destrói ou mesmo insulta a razão.” E ele prossegue, com uma das minhas frases favoritas: “quanto mais precisa e clara for a razão, melhor a fantasia irá torná-la”.

Neste instante, Emília se levanta para pegar algo para beber. Ela deixa Visconde sozinho, mas ele nem percebe.

Visconde: Percebo que há muitas coisas sobre fantasia e Filosofia, mas as conexões ainda não estão totalmente claras para mim. Recordo de muitas coisas que li como Eric Rabkin, por exemplo: “a imaginação fantástica é um significante modo de conhecimento humano”. Acho que já li análises que articulam Andersen  e Kierkegaard,  Nietzsche e Lobato, J.K. Rowland e Hume … Se estes autores tiveram uma formação filosófica, ou mesmo interesse em leituras filosóficas, então talvez suas leituras tenham influenciado seus próprios textos own writings. A filosofia influenciando fantasias filosóficas… Ursula Le Guin  e o Taoísmo é um bom exemplo. E nós, Emília, fomos objetos de uma análise que utilizou os conceitos das pulsões apolínea e dionisíaca abordados n’A origem da tragédia ou Helenismo e pessimismo, de Friedrich Nietzsche. Você se lembra quando fomos ao Rio de Janeiro?

Foi então que o sabugo percebeu que a boneca não mais estava.

Visconde (irritado): Ei, Emília, Emília! Você me deixou falando sozinho!

Emília (sentando-se novamente): Calma, estou de volta! Olha, sei muito bem que certos críticos geralmente acusam a fantasia de escapismo, não é verdade? Bem, eu escapei do seu interminável papo de fantasia… (Gargalhando sozinha)

Visconde (sério): Emília, que péssimo comportamento! Olha, eu já ia encerrar esta minha reflexão, mas já que percebi que você não está gostando e, mais importante, que você não está me respeitando, estava eu pensando: Será que deveria puni-la com mais duas horas de explanação?  

Emília fica louca de raiva e foge dele, deixando Visconde sozinho. Ela grita para ele, dizendo que tem coisas melhores com que se preocupar, por exemplo, ela precisa ficar lagarteando perto do ribeirão, pois Píppi Meialonga virá ao Sítio. E é claro que a boneca quer matar a menina sueca de inveja do seu bronzeado.

 

O olhar de Lobato sobre o Brasil

Thaty Castelo Branco também analisa os diálogos entre as personagens de Lobato. Para a pesquisadora da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio, todas as formas de saber o mundo, das mais científicas às mais fantásticas, se unem no Sítio para conduzir o leitor à aventura do conhecimento. Em sua dissertação sobre o diálogo entre o maravilhoso e o fantástico na literatura infantil de Monteiro Lobato , a autora destaca que “Lobato soube devorar (como o Visconde de Sabugosa devorou os livros de Dona Benta) o que havia de mais poderoso nas culturas estrangeiras e trazê-lo para a literatura brasileira”.

Confira a seguir o diálogo entre os pesquisadores André Moura e Thaty Castelo Branco sobre a obra lobatiana, e as percepções do autor sobre o Brasil. Thaty Castelo Branco é formada em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Letras, pela mesma universidade. Também é mestre em Literatura Brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Thaty Castelo Branco - O Sítio foi um altar de rituais de antropofagia, na acepção oswaldiana do termo, já muito antes de as nossas vanguardas organizarem a idéia em manifesto.

André Moura - Muito pertinente sua formulação, Thatty. É bom que atentemos para uma revisão do lugar que Lobato tem ocupado nos estudos de historiografia literária. Trata-se, em verdade, de um indivíduo que não pode ser rotulado meramente como “pré-modernista” ou avesso às vanguardas, com repulsa ao novo. Sua atuação multifacetada nos deixou um legado muito profundo e complexo. Considero que Lobato era um pensador do Brasil, que criticava através de sua criação diversas áreas do conhecimento, aliando, a um só tempo, praxis e poiesis.

Thaty Castelo Branco - Podemos refletir se uma revisão da recepção da obra lobatiana começa a se desenhar. Neste ano em que se completam 60 anos da morte do escritor, temos o relançamento, em novo selo editorial, de toda sua obra, e não apenas de literatura infantil. Vejamos a vasta produção de artigos, resenhas, seminários, cursos sobre Monteiro Lobato. É significativo esse interesse em reencontrar o autor de Negrinha no ano da eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América. Num tempo em que o petróleo é motivo de orgulho para a economia brasileira. Mais do que nunca, precisamos de intelectuais que, no dizer popular, metam as mãos na massa. 

André Moura - Mais do que visionário, Lobato soube ler a sociedade americana em profundidade. Poderíamos até brincar, afirmando que ele mesmo teria utilizado o porviroscópio (artefato que permitia ver o futuro, criado pela personagem Professor Benson em O presidente negro ou o choque das raças). Em 1926, foi capaz de criar Jim Roy, o suposto 88º presidente dos Estados Unidos no então distante ano de 2228. Trata-se de um livro que aborda uma miríade de temas, muitos característicos da época e ainda de grande relevância, como o darwinismo social, a eugenia e a emancipação política da mulher. Mas, na realidade, não é um exercício de futurologia, é tão-somente o olhar arguto de um pensamento crítico que antecipa os fatos vindouros como natural conseqüência dos acontecimentos. Enxergar o futuro é ler o presente nas entrelinhas. Lobato não via a arte, a literatura como uma dimensão apartada da vida, da sociedade. Ele alinhava o sonho e a ação. Para ele, o escritor não poderia ficar confinado em torres de marfim. Seu engajamento se fazia sem se filiar a nenhum partido político, seus textos não eram panfletários, ainda que defendessem certas causas importantes, e, como vemos hoje, tão caras ao país. Um exemplo é a questão do petróleo, que foi uma luta que ele levou ao limite, resultando em sua prisão. Recentemente, com a autonomia e com a descoberta da jazida na camada pré-sal, já se vislumbra a possibilidade do país passar a exportar petróleo.
  
Thaty Castelo Branco – Penso que Monteiro Lobato tinha um projeto de Brasil. Ao lado de suas lutas pelo petróleo e pelo ferro, concluiu que era necessário recomeçar pelas crianças. Sendo elas a certeza do futuro, a semeadura de inteligência, de cultura e de amplitude de pensamento, tinha que começar por elas. Para isso, construiu para elas uma literatura infantil brasileiríssima sem abrir mão das preciosidades de outras culturas: ao contrário, soube devorar (como o Visconde de Sabugosa devorou os livros de D. Benta) o que havia de mais poderoso nas culturas estrangeiras e trazê-lo para a sua literatura de brasileiro. Certamente motivado por seu célebre engajamento, Lobato criou uma literatura infantil onde crianças brasileiras ficcionais e personagens de nosso folclore convivem em situação de igualdade com os personagens mais célebres da cultura universal, isto é, em relação de profunda afetividade e cumplicidade, mas sem a reverência obtusa que impede novas formas de ser, de pensar e de criar. O projeto de Lobato era fazer das crianças leitoras do mundo.
Como nos mostram os dois diálogos que homenageiam o criador do Jeca Tatu, Monteiro Lobato foi um brasileiro que sempre primou pelo diálogo, quer seja este do campo com a cidade; da criança com o adulto; do passado com o futuro; do Brasil com os Estados Unidos, e também com a Argentina; do moderno com a tradição; das idéias com a ação; do texto com o leitor. Ler Lobato no século XXI, refletir sobre suas idéias e ideais, é rediscutir o país e construir novos caminhos, tendo o seu legado como ponto de partida.

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