Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Lobato como tradutor

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Giovana Cordeiro Campos

Giovana Cordeiro Campos, doutoranda do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), dedica-se ao estudo de traduções literárias e ao aprofundamento da pesquisa sobra a prática tradutória e editorial de Monteiro Lobato.

No artigo que segue, enviado à IHU On-Line, Giovana revela a intensa atividade de tradutor que Lobato empreendeu. Por seu intermédio, chegaram ao leitor brasileiro obras como D. Quixote, de Cervantes, As viagens de Gulliver, As aventuras de Tom Sawyer e inúmeros contos de Grimm. Como tradutor, tinha a preocupação de aproximar a linguagem à realidade brasileira, bem como de apresentar ao público local outras realidades culturais. Em sua dissertação de mestrado, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, a pesquisadora estudou as traduções do romance For whom the bell tolls, de Ernest Hemingway, realizadas respectivamente por Monteiro Lobato (1941) e Luís Peazê (2004). Conheça mais sobre o Lobato tradutor no texto a seguir.

Monteiro Lobato é mais conhecido como escritor de obras infantis. Contudo, esta é apenas uma de suas múltiplas facetas, as quais incluem o jornalista, o editor, o empreendedor, o intelectual e o tradutor. Entre as suas muitas atuações, Lobato foi o responsável pela entrada de diversas obras estrangeiras no Brasil por meio de traduções por ele realizadas e/ou editadas.

Lobato iniciou seu ofício como tradutor quanto era promotor em Areias, em 1908. Ele realizava traduções de artigos do Weekly Times para O Estado de S. Paulo e já nessa época mostrava-se descontente com a grande influência da literatura francesa no cenário nacional. Para o então promotor-tradutor, a literatura inglesa era muito mais variada e interessante: “Para neutralizar esta Areias [...] injeto-me de inglês [...]  O francês anda a me engulhar as tripas. A literatura inglesa é muito mais [...] variada [...]. Não há tigres [...] na literatura francesa, e a inglesa é toda uma arca de Noé” (Lobato, 1955b, p. 225-226). Essa preferência viria posteriormente a impulsionar toda uma política editorial com vistas à renovação do cenário cultural brasileiro por meio de obras estrangeiras, sobretudo advindas do contexto anglo-americano (ver Campos, 2004). De acordo com Denise Mendes (2002), Lobato traduziu 72 obras, sendo que 67% delas eram de origem anglo-americana. Os outros 33% representavam obras de outros contextos, como o francês e o alemão, entre outros.

Lobato editor

Lobato começou seu ofício de editor a partir da compra da Revista do Brasil, em 1918. Pela revista, havia publicado seus primeiros livros – Saci: resultado de um inquérito (sob pseudônimo) e Urupês (sob seu nome verdadeiro). Ambos tiveram grande sucesso, contudo levaram Lobato a perceber a necessidade de expandir a rede de distribuição. Com esse intuito, o jornalista, escritor e agora editor teve a idéia de enviar livros em consignação a comerciantes diversos, ampliando os postos de venda de 30 para cerca de dois mil. Além disso, passou a fazer propaganda e a investir não apenas em capas mais chamativas, com ilustrações e cores, como também na importação de tipos modernos. Com o amigo Octalles Marcondes Ferreira,  Lobato criou a editora Monteiro Lobato e Companhia. Posteriormente, acreditando na continuação do sucesso da editora, reorganizou a empresa como Companhia Gráfica Editora Monteiro Lobato. Todavia, com a intensificação da crise de 1924, a empresa teve que ser liquidada. Em novembro de 1925, Lobato e Marcondes fundaram a Companhia Editora Nacional que, entre outras coisas, iria inundar o mercado editorial nacional com diversas traduções.

Por intermédio de Lobato, obras como The happy prince (O príncipe feliz), de Oscar Wilde,  Gulliver’s travels (As viagens de Gulliver), de Jonathan Swift,  Dom Quixote, de Cervantes, For whom the bell tolls (Por quem os sinos dobram) e A farewell do arms (Adeus às armas), de Ernest Hemingway , White fang (Caninos brancos) e A daugther of the snows (A filha da neve), de Jack London,  The adventures of Tom Sawyer (As aventuras de Tom Sawyer) e Hucleberry Finn (As aventuras de Huck), de Mark Twain,  Contos de Grimm e Novos contos de Grimm, de Hans Christian Andersen,  entre muitas outras, chegaram ao Brasil em língua portuguesa do Brasil. Esse contato com outras literaturas estrangeiras que não apenas a de origem francesa (o referencial da década de 1920) permitiu ao leitor brasileiro vivenciar novas e diferentes culturas, vindo a promover uma renovação no cenário literário nacional. O contato com livros e personagens estrangeiras também era feito por meio da inserção dos mesmos nas obras escritas por Lobato. Desse modo, Emília ficava curiosa e tentava ler Dom Quixote que estava na última prateleira da estante; Dona Benta encomendava um livro original em inglês para descobrir quem era Peter Pan e Narizinho podia se encontrar com vários personagens de outras culturas no Sítio do Picapau Amarelo.

Inovando a literatura infantil

Lobato percebera que havia uma lacuna na literatura infantil do contexto brasileiro. Esta seria preenchida não apenas pela criação de toda uma nova literatura infantil nacional, com obras escritas por Lobato, mas também pelas diversificadas traduções publicadas e/ou realizadas pelo tradutor-escritor-editor. Nesse sentido, é possível afirmar que as traduções também funcionaram como uma força inovadora, e não apenas a produção autoral do referido autor.

Lobato também procurou combater as traduções indiretas (realização de traduções a partir de outras traduções), bem como daquelas feitas para o português de Portugal. Para ele, as traduções deveriam ser realizadas diretamente, e para o português do Brasil. O estilo rebuscado das traduções era outro motivo de aborrecimento. Lobato almejava um uso mais simples e brasileiro da linguagem nas suas obras, sendo esse também seu objetivo no que tangia à atividade tradutória. Ao encomendar uma tradução, a recomendação era a de que o estilo deveria privilegiar o contexto nacional: “Vá traduzindo [...] em linguagem bem simples, sempre na ordem direta e com toda a liberdade. Não te amarres ao original em matéria de forma – só em matéria de fundo” (Lobato, 1955c, p. 232). O tradutor, portanto, deveria observar os acontecimentos, temas, personagens etc. do texto-fonte, mas não o modo como tudo isso era expresso. Assim, se o objetivo tradutório era o de uma renovação, esta se dava somente em termos culturais, não abrangendo à linguagem. O critério era o da facilitação da leitura, da fluência, com vistas a levar o texto até o leitor e não o contrário (ver Campos, 2004).

Como exemplo da postura tradutória de Lobato, tomemos trechos extraídos da análise da tradução das obras For whom the bell tolls (1940) e de A farewell do arms (1929), ambas de Ernest Hemingway, intituladas Por quem os sinos dobram (1941) e Adeus às armas (1942), respectivamente.

No caso de Por quem os sinos dobram, os referenciais culturais foram mantidos – o nome das personagens, os temas (a guerra civil espanhola, a amor de Robert e Maria, a traição de Pablo etc.), os locais, as palavras em espanhol faladas pelas personagens, a alimentação, como a paella (Hemingway, 1942, p. 74) etc. Desse modo, tem-se uma troca cultural por meio da alteridade advinda da obra estrangeira. No que se refere à linguagem, por outro lado, predominou o estilo do autor-tradutor, o qual privilegiava a “língua da terra” (Lobato, 1955c, p. 276). Como exemplo, tomemos o trecho do texto-fonte com sua respectiva tradução:

Look at her, he said to himself. Look at her.
He looked at her […].
She walks like a colt moves, he thought. You do not run onto something like that. Such things don’t happen. Maybe it never did happen, he thought. Maybe you dreamed it or made it up and it never did happen. Maybe it is like the dreams you have when some one you have seen in the cinema comes to your bed at night and is so kind and lovely. He’d slept with them all that way when he was asleep in bed. He could remember Garbo still, and Harlow. Yes, Harlow many times. Maybe it was like those dreams (Hemingway, 1995, p. 137).


Lá está ela, disse Jordan para si mesmo. Olhem-me só aquilo.
Maria, feliz [...]. Tem o andar dum potro novo, pensou Jordan. Nunca encontrei ninguém assim. É coisa rara. E será que isto aconteceu? Não será um sonho? Não estarei por acaso sonhando? Talvez tudo não passe dum desses sonhos que o cinema nos cria na imaginação. Muitas vezes dormi com as sombras da tela. Ainda me lembro da Garbo e da Harlow — sempre mais desta que da outra. Quem sabe se Maria não é um sonho desses? (Hemingway, 1941, p. 118-119).

Os trechos grifados remetem para a não observância da forma do original, prevalecendo o estilo de Lobato. Um bom exemplo é a transformação das frases justapostas, nas quais há repetição do advérbio “maybe” (talvez, em português), em interrogativas explícitas, quando no original não há o uso de ponto de interrogação. Vale ressaltar que a repetição era um recurso estilístico de Ernest Hemingway. Lobato reescreveu as sentenças como quem ouviu uma história e a está recontando com “palavras suas” (Lobato, 1955a, p. 127). Do mesmo modo, a opção de traduzir o segundo “look at her” por “olhem-me só aquilo” e a de omitir o trecho seguinte — “he looked at her” — não apenas demonstram a opção pelo abrasileiramento do texto, mas, principalmente, a predominância do estilo próprio do escritor-tradutor. Semelhante procedimento pode ser observado em todo o excerto (observar grifos).

Mendes (2002) cita várias passagens de Adeus às armas (1942), nas quais Lobato realizou intervenções. Um exemplo em que, novamente, prevaleceu o estilo de Lobato é: “[...] and in the fall when the rains came the leaves all fell from the chestnut trees and the branches were bare and the truncks black with rain” (Hemingway, 1929). Lobato assim traduziu: “[…] e quando chegou o outono as folhas dos castanheiros também caíram e vimos a galhada e os troncos desnudos e enegrecidos pelas chuvas” (Hemingway, 1942). Houve a omissão de “when the rains came”. Além disso, as adjetivações ficaram mais longas e conotativas: “desnudos” e “enegrecidos”. O tradutor também não observou o estilo de Hemingway, aqui representado pelo recurso da enumeração: “primeiro, vieram as chuvas; depois, caíram as folhas, o que demonstra o efeito das chuvas sobre os galhos e troncos” (Mendes, 2002, p. 48). A narração traduzida, portanto, deixou de apresentar uma gradação dos fatos para apresentar apenas uma constatação do que ocorreu.

As duas traduções analisadas corroboram o projeto ideológico lobatiano de uma renovação literária por meio do contato com literaturas estrangeiras, bem como a busca por uma língua brasileira. Nesse sentido, como observou Mendes, os procedimentos tradutórios de Lobato se aproximavam dos ideais antropofágicos da década de 1922, uma vez que Lobato devorava as culturas estrangeiras utilizando os recursos da língua nacional. Embora o estágio atual do pensamento tradutório privilegie traduções em que o estilo do autor é mantido, as intervenções operadas por Lobato no texto-fonte não devem ser julgadas como falhas. Há que se observar que os procedimentos tradutórios adotados foram modelados pelas necessidades do Brasil da década de 1940, servindo aos propósitos de tal contexto. 

Projetando um país diferente a partir da literatura

Monteiro Lobato teve papel fundamental na modernização do mercado editorial brasileiro, bem como exerceu influência na política tradutória do Brasil, tendo publicado e traduzido uma série de escritores estrangeiros, principalmente de língua inglesa, colaborando para que ela fosse promovida como a nova língua de cultura no Brasil. Toda a contribuição de Lobato, tanto como autor quanto editor e tradutor, adveio de sua visão crítica do Brasil como sendo um país atrasado, que deveria desenvolver-se tecnologicamente, ao mesmo tempo em que deveria fortalecer a própria cultura. Em sua prática, Lobato conseguiu dar maior visibilidade à tradução, valorizando não apenas a tarefa, mas também seus realizadores. Seus ideais o levaram a lutar pelas causas brasileiras, desde a necessidade de melhores condições no campo à luta pelo petróleo e siderurgia nacionais em uma época que se dizia não haver petróleo no Brasil. Por conta de suas posições políticas, chegou a ser preso, mas isso não abalou sua crença na possibilidade de um Brasil moderno.

Sugestões de leitura

* AZEVEDO, Carmen Lúcia de, et al. (1998). Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. 2. ed. São Paulo: SENAC SP.

* HALLEWELL, Laurence (1985). O Livro no Brasil: sua história. Trad. Maria da Penha Villalobos e Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: T. A. Queiroz: Ed. da Universidade de São Paulo.

* HEMINGWAY, Ernest (1941). Por quem os sinos dobram. Trad. Monteiro Lobato. São Paulo- Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional.

* HEMINGWAY, Ernest (1997). For whom the bell tolls. New York: Scribner Paperback Fiction.

* LOBATO, Monteiro (1955a). Traduções. LOBATO, Monteiro. Obras Completas de Monteiro Lobato. v. 10 – Mundo da Lua e Miscelânea – São Paulo: Brasiliense, p. 125-130.

* LOBATO, Monteiro (1955b). A Barca de Gleyre – 1º Tomo. LOBATO, Monteiro. Obras completas de Monteiro Lobato. v. 11, Rio de Janeiro: Brasiliense.

* LOBATO, Monteiro (1955c). A Barca de Gleyre – 2º Tomo. LOBATO, Monteiro. Obras completas de Monteiro Lobato. v. 12, Rio de Janeiro: Brasiliense.

* MENDES, Denise Rezende (2002). Monteiro Lobato, o tradutor. Monografia (Bacharelado em Letras: Ênfase em Tradução – Inglês), UFJF.

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