Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Evocação de Lobato

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Antonio A. Serra

O artigo a seguir foi enviado à IHU On-Line por Antonio A. Serra, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em homenagem ao sexagésimo aniversário da morte de Monteiro Lobato, o pesquisador participou das Jornadas Lobatianas promovidas pela Cátedra Unesco de Literatura PUC-Rio. No texto a seguir, Serra percorre a vida e a produção literária de Lobato, viajando entre uma e outra, e revelando um homem que pensou em alternativas para o Brasil e que inculcou nos brasileiros a justificativa científica e política da viabilidade do petróleo e do ferro. Antonio A. Serra é formado em Filosofia, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e é mestre em Comunicação, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Enquanto me preparava para participar do debate “Monteiro Lobato – O homem público”, fiquei a matutar: tratava-se, certamente, do Lobato editor, empresário, especialmente do Lobato das campanhas de industrialização do Brasil, quando ele foi o estudioso que investiga antes de agir e o empreendedor que não teme envolver-se com a vida prática e assume o êxito e o fracasso.

Estas lutas, com seus dissabores, mostram hoje os resultados. Sou do tempo em que falar de petróleo no Brasil era expor-se ao ridículo e muitos consideravam tal possibilidade quimérica ou pretexto de agitação subversiva. Agora, que o país se dá ao luxo de discutir como administrar seus gigantescos poços e, especialmente, como não cometer os gravíssimos erros de desperdício, predação ambiental e dependência do combustível fóssil, Lobato é mais do que um precursor, visionário ou mártir, pois foi ele quem inculcou nas cabecinhas brasileiras a justificativa científica e política da viabilidade do petróleo e do ferro.

As investidas (digamos assim) “desenvolvimentistas” de Lobato não se nutriram apenas de vontade férrea e obstinação. O exemplo de nações então mais avançadas como os Estados Unidos, mas acima de tudo o que sua voracidade de leitor lhe ensinara do valor do conhecimento e das ciências levaram nosso herói a se preparar munindo-se de referências objetivas e de saberes consistentes que conferissem fundamentos minimamente sólidos às suas investidas. Deste modo, num ambiente econômico marcado pelo tradicionalismo, o clientelismo do estado ou os arroubos aventureiros, Lobato ensinava que as sociedades dispõem de repertório de conhecimentos que pavimentem os caminhos do desenvolvimento.

Embora o cultivo sistemático das ciências datasse no Brasil dos inícios do século XIX e instituições diversas e cientistas notáveis viessem mantendo a pesquisa e aplicando-a na saúde, engenharia, agricultura ou mineração, o fato é que tanto o acervo das ciências como o modo peculiar da ciência tratar a realidade não faziam parte da educação comum e tampouco freqüentavam as conversas dos políticos.

Literatura: um instrumento para divulgar a ciência

Certamente estimulado por autores como H. G. Wells,  Will Durant,  Julian Huxley  e depois Bertrand Russell,  Lobato assumiu uma postura esclarecida diante das ciências (mas evitando delas fazer o pretexto para doutrinas totalizantes e definitivas, tão ao gosto da época) e decidiu divulgar a ciência para um amplo público, em traduções (para aos adultos) e estrategicamente em obras destinadas ao público infantil.

A verdade é que Dona Benta revelou-se expositora admirável do estado dos conhecimentos daquele momento, da astronomia, geografia, ciências da natureza, história, tecnologia, matemática e linguagem. Como testemunham as crianças do Sítio na Viagem ao céu, o que se mostra tão complicado e abstruso na algaravia dos “sábios de cartola” flui cristalino nas palavras da velhinha. Qual o milagre? Dona Benta acrescenta mais esta lição: é que só conseguimos ser entendidos quando nós mesmos entendemos. Simples, não? Mas que estocada ferina nos retóricos vazios, antes preocupados com seu renome do que em esclarecer.

Dona Benta era “tão sabida” porque leu muito, muito mesmo. Mas leu “por dentro” dos livros e se fez interlocutora deles e dos autores, daí o êxito assombroso de sua proficiência expositiva, clara, confiante e sem causar modorra nos ouvintes. Não menosprezemos, porém, este outro personagem quase tão sábio, Visconde. É certo que muitas vezes Lobato confere excessiva solenidade aos “pronunciamentos” do Sabugo, ditos com aquela presteza e precisão da Enciclopédia Britânica. Por isto mesmo, ele é um ser misto, um remanescente vegetal, porém vivo: depois de passar um tempo esquecido entre uns livros das Aventuras de Sherlock Holmes, Visconde, embolorado pelo mofo, é resgatado e revela-se um estupendo detetive, solucionando o caso embaraçoso do falso Gato Félix. Muito bem: um saber típico da assimilação, saber-esponja, reconhecido, necessário e meritório, mas insuficiente para cumprir a vocação inovadora do conhecimento que Lobato enfatiza para seu jovem público.

As crianças, por sua vez, satisfeitas com as lições de Benta ou do Sabugo, põem-se a observar e a experimentar. A inquietude alia-se à curiosidade e ambas, naturais da idade, dão-lhes asas e alçadas pela liberdade fomentada por Dona Benta aprendem Astronomia pisando o chão da Lua ou fazendo escorrega nos anéis de Saturno. Ou saem das aulas de geologia do Visconde para logo estarem a prospectar e escavar as camadas donde surgirá o petróleo.

O espírito alerta e os olhos abertos de Lobato, a postura rigorosamente anti-dogmática e a disposição de admitir o exame de tudo, de qualquer pretensa verdade e de preconceitos, favoreceram esta aposta na experimentação como fonte tanto de conhecimento como de ações. Nada aceitar por comodismo ou por imposição; buscar sempre ver, tocar e postar-se diante do fenômeno para formar seu juízo próprio; não temer introduzir modificações para verificar os efeitos.

Estas atitudes não são restritas àquilo que chamamos “conhecimento” nem são meros expedientes de sala de aula: são parte do ethos realista e sem dúvida individualista que Lobato aprecia como componente da vida de seres independentes. Nas reformas, a vontade um tanto prepotente de Emília altera o funcionamento da natureza (A reforma da natureza) ou reduz a estatura dos humanos (A chave do tamanho), invocando razões respeitáveis de utilidade, eficiência ou de encerramento da guerra e da violência. Lobato nos faz acompanhar estas experiências e, com franqueza, expõe todos seus aspectos: ou seja, ele não antecipa sua conclusão moral, mas nos induz a ver e constatar o que acontece.

(Diga-se de passagem que é tocante o respeito de Lobato pelas crianças: o maravilhoso e fantasioso das histórias jamais autorizam o engodo e a dissimulação. Ele as trata com carinho, atento à sua psicologia e ambiente, mas sempre com lealdade e sem escamotear os descaminhos do mundo e do humano. Foi por isto que elas sempre o admiraram e amaram).

As conseqüências das “reformas” vão além do esperado. Em Chave do tamanho, os reclamos daqueles que perderam o tamanho e hoje são presa fácil de pintos e gatos impõem a Emília decidir se religa ou não a chave. Ela, porém, arroga-se o direito de examinar diretamente a situação do mundo após a mudança. Segue-se uma daquelas viagens de aprendizado, Emília constatando como havia conseguido realizar o sonho de Dona Benta, que vivia a se lamentar com a guerra mundial. Os combates cessaram e homens prepotentes e arrogantes, como Hitler ou o imperador do Japão, eram hoje minúsculos animaizinhos escondendo-se e fugindo dos predadores domésticos. (É verdade que milhões de soldados afogaram-se sob seus uniformes ou congelaram na neve.) Ela e Visconde visitam uma povoação recentemente fundada por um grupo de humanos nos Estados Unidos que se abrigaram sob um balde emborcado (daí o nome Pail City) e logo fincaram um núcleo pioneiro para lidar com esta nova realidade. Assim, rapidamente se adaptaram (alimentando-se, por exemplo, de minhocas secas ao Sol) e começaram a experimentar tecnologias e modos de vida, numa atitude que chamamos hoje de “propositiva”.

Tudo isto recomendaria, no pensamento de Emília, a manutenção do recente statu quo. Por fim, decide-se votar e Emília perde (ela pensara que Visconde era seu eleitor de cabresto). E, cumprindo a deliberação democrática, a boneca retorna à Casa das Chaves e, a contragosto, gira ao contrário a chave do tamanho e tudo volta ao normal.

Nestas histórias uma louvável reflexão: as “grandes reformas”, que prometem solucionar “definitivamente” os erros e corrigir os males “para sempre” geralmente vêm acompanhadas da perda de liberdades, e por isto é sempre bom olhar com cuidado tais promessas.

O saber não é apenas o que os séculos depositaram nos livros e os lábios de Dona Benta revelam. O saber é o resultado dinâmico do suor e ousadia de muitos indivíduos, da convicção de que o conhecimento e a educação são os grandes meios dos seres humanos se aperfeiçoarem (a clássica paidea), de melhorar a si próprios e ao mundo que nos rodeia. Conhecimento e educação nascem da liberdade, sem a qual não há pensamento nem descoberta.

Um convite à imaginação

As obras voltadas para nós, então crianças, são este convite ao esvoaçar da imaginação, aos saltos libertários que nos fazem escapar dos grilhões da causalidade, de um clima permanente de “férias” e disponibilidade para a aventura, pois eram virtudes que Lobato apreciava nas crianças e que considerava fundamental cultivar e propiciar para que não crescessem encruados e mirrados iguais a pintos esquecidos pelas mães. As aventuras, entretanto, eram também harmonicamente associadas às estripulias dos saberes, quando o aprender se faz ouvindo os mais sábios, mas sempre conferindo por conta própria (é assim que amadurecemos). Enfim, aprender pode ser tão gostoso quanto espichar-se num galho de jaboticabeira e ali tocar sem fim “a música de sempre - tloc! pluf! nhoc!” (Reinações de Narizinho).

As gerações que vivenciaram estas histórias (que as leram, ouviram e sorveram) incorporaram Lobato como os gregos digeriram Homero:  fonte de admiração, de prazer e de ensinamento. Quando estas gerações percorreram seus períodos escolares sentiram e refletiram sobre os contrastes entre a escolaridade rígida com sua sensaboria e a vivacidade dos serões e as peripécias “laboratoriais” do Sítio, seu igualitarismo destoante das hierarquias da escola. Aí está, sem dúvida, um belíssimo horizonte de formação de seres humanos esclarecidos, cooperativos e independentes.

Mas a virtude que Lobato mais estimava nas crianças era a sinceridade, cuja escassez entre os adultos fora o motivo principal de não mais escrever para marmanjos. Ele próprio vivera as agruras de sua franqueza. Além de não gostar de se enganar com ilusões, de repudiar a “literatice de salão” com seus personagens e ambientes tirados de outros livros e não da vida, Lobato adotara como regra dizer o que pensava e como método escancarar as janelas da realidade.

A repercussão inesperada de Velha Praga e Urupês, tanto o ensaio brasiliano como a ficção provêm justamente deste olhar de frente o mundo e dizer o que é, como faziam os primeiros filósofos. A opinião ilustrada daquela época era protegida do “real” pela distância social e geográfica, era engalanada pelo ufanismo grandiloquente ou o desprezo transatlântico por nossa “raça degenerada” de mestiçagem incomodamente indefinida.

Lobato falou de nós brasileiros com agudo senso crítico, não nos cortejou nem ficou a tecer o véu diáfano de fantasias. Com aspereza e quase desespero, mas logo, com igual franqueza e sinceridade, retificou seu diagnóstico e, literalmente, pôs o dedo na ferida: o Jeca é, ante de tudo, doente. Doente pelo abandono, pela incúria, pela exploração. (E nós, pela conivência ou vantagem, somos outros tantos Jecas.)

Resistindo sempre a reverenciar as verdades estabelecidas e as autoridades (de governo e das letras) autoconsagradas, Lobato fez da verdade seu Rocinante, seu elmo de Mabrino, sua adaga antiga, o moscardo socrático a espicaçar os dormentes da vida.

É Emília, sua porta-voz eleita, quem resume o ideário lobatiano, na conclusão de suas Memórias:

Antes de pingar o ponto final quero que saibam que é uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu coração. Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração - só que não é de banana. Coisinhas à-toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou convencida de que o maior mal do mundo é a justiça. Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu coração dói. Quando vejo trancarem na cadeia um homem inocente, meu coração dói. Quando ouvi Dona Benta contar a estória de Dom Quixote, meu coração doeu várias vezes, porque aquele homem ficou louco apenas por excesso de bondade. .... Quantos homens não padecem nas cadeias do mundo só porque quiseram melhorar a sorte da humanidade? Aquele Jesus Cristo que Dona Benta tem no oratório, pregado numa cruz, foi um. Os homens do seu tempo que só cuidavam de si, esses viveram ricos e felizes. Mas Cristo quis salvar a humanidade e que aconteceu? Não salvou coisa nenhuma e teve de agüentar o maior dos martírios. (Memórias da Emília, capítulo XV)

Foi com “lições” como esta que aprendi um pouco sobre a hoje tão famosa “esfera pública”. E, com Lobato, que a boa vida pública começa com a franqueza, a verdade e a transparência.

Era bom, agora, viajar às Grécias de Lobato. Mas fica para outro dia.

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