Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Cartas revelam diferentes “Lobatos”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin

Emerson Tin analisa as cartas escritas por Lobato ao longo da vida e constata que existiram pelo menos seis “Lobatos” diferentes

Autor da tese Em busca do “Lobato das cartas”: a construção da imagem de Monteiro Lobato diante de seus destinatários (São Paulo, 2007), Emerson Tin apresenta as múltiplas facetas do escritor brasileiro. “Cada um deles aparece de uma maneira diferenciada, moldada não só pelas circunstâncias de tempo e lugar, mas também pelo destinatário a que se dirige”, comenta. Diferente daqueles que consideram o escritor brasileiro preconceituoso e atrasado, Tin destaca, entre tantas personalidades, um “homem bastante culto, que tinha acesso, desde a juventude, às mais diversas obras, que leu vários dos clássicos universais (Ilíada, Odisséia, Eneida), que lia autores dos mais diversos (Camilo, Eça, Fialho de Almeida, Casanova, La Bretonne, Flaubert, Maupassant, Zola, Anatole France, H. G. Wells, Nietzsche, entre tantos outros) e que não apenas os lia, mas emitia opiniões a respeito do que lia”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, Tin também destaca o interesse de Lobato em emitir comentários sobre os diversos assuntos através de cartas destinadas a amigos e familiares. Segundo ele, esses escritos revelam uma compreensão das percepções de Lobato sobre o mundo e o Brasil. Segundo o pesquisador, muitos dos problemas brasileiros evidenciados há 60 anos, ainda permanecem. Nesse sentido, completa, a releitura das obras lobatianas “nos permite tentar buscar uma resposta para esta pergunta insolúvel: no que temos errado?”. E dispara: “A releitura das obras de Lobato pode e deve ser feita para que o leitor possa manter contato com um ficcionista de grande qualidade, um polemista aguerrido, um crítico inteligente. E, com isso, possa o leitor enriquecer-se, tanto em sua história de leitura quanto na sua compreensão do Brasil”.

Tin é graduado em Letras, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas),  mestre  em Teoria e História Literária, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, e doutor em Teoria e História Literária. Atualmente, é docente das Faculdades de Campinas (Facamp) e também leciona no curso de Pós-Graduação em Literatura, do Centro Universitário Padre Anchieta. Experiente na área de Letras, atua em temas como correspondência, Literatura Brasileira, Portuguesa e Francesa dos séculos XVII e XVIII. Entre suas obras, citamos A arte de escrever cartas (São Paulo: Unicamp, 2005), Quando o carteiro chegou – Cartões-postais a Purezinha (São Paulo: Editora Moderna, 2006) e Antologia de poesia barroca brasileira (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007).

IHU On-Line - Como o senhor descreve o “Lobato das cartas”? É possível estabelecer diferenças entre o Lobato escritor e o Lobato das cartas?

Emerson Tin - Essa imagem de um “Lobato das cartas” surge da própria correspondência do escritor. Na conclusão de uma carta escrita em São Paulo a 2 de junho de 1904, quando estava terminando o curso de Direito, Lobato afirma: “Estou prestes a fechar o meu curso. Entro na ‘vida prática ’ em dezembro e creio que realizarei o meu sonho: ser fazendeiro. A minha vida ideal (isto é, de ideais) está a pingar o ponto final. Vou morrer – vai morrer este Lobato das cartas. E nascerá um que te fale em milho e porcos, e te dê receita para acabar com o piolho das galinhas”. É importante notar, nesse trecho, que Lobato desdobra a própria existência em duas, a de um Lobato ideal, o Lobato das cartas – que morreria com a entrada na “vida prática” –, e a de um Lobato real, que seria fazendeiro. Assim, o “Lobato das cartas” seria esse cuja imagem se delineia na correspondência.

IHU On-Line - Podes comentar um pouco sobre as imagens dos seis Lobatos identificados pelo senhor?

Emerson Tin - Essa idéia de buscar as imagens de Lobato na correspondência surgiu a partir da leitura de um livro de Nelson Palma Travassos,  que conheceu e conviveu com o escritor, intitulado Minhas memórias dos Monteiros Lobatos. Ou seja, parecia não haver um Lobato, mas múltiplos Lobatos. Procurei identificar como cada um desses Lobatos surge a partir da sua correspondência. Assim, levantei seis Lobatos. Cada um deles aparece de uma maneira diferenciada, moldada não só pelas circunstâncias de tempo e lugar, mas também pelo destinatário a que se dirige: o Lobato familiar é brincalhão e espontâneo ao escrever para a mãe, mas enche-se de cuidado e formalidade ao escrever para o pai, reveste-se de lugares-comuns românticos da correspondência amorosa ao escrever para a noiva, embora os ridicularize aos amigos; o Lobato escritor e editor é reconhecido como mestre por aqueles com quem se corresponde, mas recusa o título, embora tome atitudes de formação perante os destinatários, e divide-se entre, como afirma em suas cartas, ser daqueles “que decidem do destino das coisas literárias do país” e ser “uma pobre besta que trabalha, e nada mais”; o Lobato dos Estados Unidos, estupefato diante da grandeza do país em comparação com a pobreza do Brasil que acabara de deixar e que se deixava enganar, como no caso da miss Brasil no concurso de Galveston, narrado por ele a vários de seus destinatários; o Lobato do ferro e do petróleo, ora um soldado “que nasceu para morrer na sentinela”, ora um novo São João Batista clamando no “deserto de inconsciência” em busca do ferro e do petróleo para o Brasil; o Lobato do cárcere, apresentando-se ironicamente como um mártir do petróleo; e o Lobato das crianças, ora apelando para o nonsense e o absurdo, ora assumindo a persona de um de seus personagens, como na carta em que responde a um seu leitor, mas assinando-a como sendo o Visconde de Sabugosa.

IHU On-Line - Que perfil de Lobato podemos encontrar através das correspondências enviadas pelo escritor? O que elas revelam sobre seu modo de ser e agir?

Emerson Tin - Lobato viveu num tempo em que o ato de escrever cartas era visto como uma atividade social. Contudo, da mesma forma que era um meio de se fazer presente nas mais diversas ocasiões, alegres ou tristes, era também um meio de intervenção. Nesse sentido, vemos o Lobato mais combativo que surge nos anos 1930, levando adiante as campanhas pelo ferro e pelo petróleo. Mas encontramos outros Lobatos nessa correspondência, e foi isso que procurei demonstrar em minha pesquisa. Tanto é assim que Lobato chegou a afirmar, de modo jocoso, em carta para Godofredo Rangel, datada de 5 de setembro de 1943: “Minha correspondência geral é incrível. Tenho cartas de todo mundo importante desta terra e de outras. Se procurar bem, sou capaz de descobrir algum autógrafo do Pithecanthropus erectus...”. Assim, penso que talvez seja na melhor compreensão desse exercício de civilidade e desse meio de intervenção – certamente não exclusivo de Lobato – que possamos entender de modo mais aprimorado a historiografia e a literatura brasileiras.

IHU On-Line - As cartas ajudam a compreender, de alguma maneira, o sentido da obra lobatiana, e as percepções de Lobato sobre o mundo e, especialmente, o Brasil?

Emerson Tin - Certamente. Há quem sustente uma imagem reacionária de Lobato, ligada ao que pode haver de mais atrasado e preconceituoso. O que a leitura das cartas me trouxe foi a imagem de um homem bastante culto, que tinha acesso, desde a juventude, às mais diversas obras, que leu vários dos clássicos universais (Ilíada, Odisséia, Eneida), que lia autores dos mais diversos (Camilo,  Eça,  Fialho de Almeida,  Casanova,  La Bretonne,  Flaubert,  Maupassant,  Zola,  Anatole France,  H. G. Wells, Nietzsche, entre tantos outros) e que não apenas os lia, mas emitia opiniões a respeito do que lia. Ou seja, encontramos um leitor bastante sofisticado. Ao lado disso, vemos Lobato emitindo opiniões sobre os mais diversos assuntos, que variavam de acordo com o momento da escrita da carta: desde questões de política local até discussões de amplitude mundial. Lobato sempre se posicionava sobre um determinado assunto, e é isso que podemos ver registrado em sua correspondência. Nesse sentido, as cartas permitem, sim, uma compreensão das percepções de Lobato sobre o mundo e sobre o Brasil. Porém, não podemos nunca nos esquecer de que essas percepções, porque expressas em cartas, veículos efêmeros, momentâneos, devem ser tomadas como elas efetivamente são, ou seja, o registro de um momento específico. Assim, se alguém afirma alguma coisa numa carta, isso não pode ser tomado de forma absoluta. Devemos pensar apenas que esse é o registro do pensamento do remetente naquele momento específico. Para extrair maiores conclusões, a carta pode ser um indício, mas não a única prova definitiva.

IHU On-Line - O que as cartas de Lobato ao amigo Godofredo Rangel, publicadas no livro A barca de Gleyre, revelam sobre a produção literária do autor e a maneira como ele pensava e projetava seus personagens? É possível traçar semelhanças entre as cartas e os livros infantis do autor?

Emerson Tin - A barca de Gleyre reúne parte das cartas enviadas por Monteiro Lobato a Godofredo Rangel em mais de 40 anos de correspondência, mais precisamente entre os anos de 1903 e 1948. A maior parte das cartas, porém, é de um período anterior à produção literária infantil de Lobato, de modo que encontramos ali várias alusões a obras da fase adulta do escritor. Podemos ter idéia de como era a produção literária de Lobato, sim. Por exemplo, vemos que ele escrevia e reescrevia seus contos e aconselhava: “O melhor é passarmos os nossos contos à letra de forma do Minarete, para melhor os consertarmos”. O que não quer dizer que não haja cartas sobre os livros infantis. Encontramos na correspondência comentários de Lobato sobre livros e personagens, sobre seus projetos, inclusive aqueles que não foram levados a cabo, como o livro que projetara sobre a história da América contada pelo Aconcágua, projeto que, pelo que se sabe, Lobato sequer chegou a iniciar. Quanto a semelhanças entre as cartas e os livros infantis de Lobato, acho que há semelhanças, sim, principalmente ligadas à linguagem e ao à-vontade com que Lobato insere os assuntos em suas cartas, à maneira que o faz em vários episódios de seus livros infantis.

IHU On-Line - Qual é o destaque de Lobato no pré-modernismo, considerando que ele era contrário a todas as apropriações estrangeiras, sendo favorável a uma arte totalmente brasileira?

Emerson Tin - Por um lado, esse rótulo de “pré-modernismo” diz muito mais do que parece: definir alguma coisa como “pré” ou “pós” acaba por lançar luz a um outro período que não aquele que é assim definido. Nesse sentido, não apenas a obra de Monteiro Lobato, mas toda a obra de autores de um período que ficou conhecido como “pré-modernismo” submergiu diante do fenômeno do modernismo. Por outro lado, não considero que Lobato fosse contrário a todas as apropriações estrangeiras (assim como o Modernismo também não o foi). Tanto que Lobato lia e traduzia autores estrangeiros, inspirava-se neles (ele tem, por exemplo, um conto intitulado “Meu conto de Maupassant”) e incorporava-os em sua obra. Basta nos lembrarmos do que ele faz com os contos de fadas europeus, a mitologia grega ou D. Quixote em suas obras infantis. Nesse sentido, não é possível, em minha opinião, dizer com todas as letras que Lobato fosse favorável a uma arte totalmente brasileira, não pelo menos nesse sentido de ser contrário a todas as apropriações estrangeiras. O que Lobato condenava, segundo penso, era a transplantação irracional dos estrangeirismos. Ilustra bem isso o episódio que teria dado origem ao inquérito do Saci-pererê. Lobato teria, durante um passeio no Jardim da Luz, se deparado com anõezinhos do Reno, encapotados e barbados, enfeitando os jardins. A presença dos anõezinhos indignou Lobato, que não compreendia por que se utilizavam anões germânicos para decorar um jardim de um país tropical. Tal como hoje, às vésperas do Natal, enfeitamos a árvore de Natal – um invernoso pinheiro – com algodão à guisa de neve... Penso que era contra isso que Lobato lutava.

IHU On-Line - Qual o conteúdo das cartas escritas por Lobato no cárcere? Em que sentido elas se assemelham as correspondê ncias escritas por Gramsci e Frei Betto, por exemplo?

Emerson Tin - Antes de mais nada, é necessário desfazer uma confusão que acontece em muitas fontes biográficas. Houve dois períodos em que Lobato ficou preso: o primeiro, em janeiro de 1941, durante quatro dias; o segundo, durante três meses, entre março e junho do mesmo ano. Do primeiro período, temos apenas uma carta, escrita à esposa, D. Purezinha. Essa carta difere das restantes escritas no cárcere pelo seu tom melancólico, até mesmo desesperado, já que Lobato se encontra preso e incomunicável. As cartas do segundo período, quando Lobato já podia se comunicar, podia trabalhar na prisão, receber visitas, diferem completamente. Nelas encontramos um Lobato por vezes mais irônico do que de costume, procurando ridicularizar tanto a prisão quanto os seus algozes. Quanto às semelhanças que elas teriam com as escritas por Gramsci  ou Frei Betto, decorrem tão-somente do fato de serem todas exemplares de um subgênero epistolar – o das cartas de prisão – e de provirem de períodos ditatoriais: Lobato sob a ditadura de Vargas, Gramsci sob a de Mussolini, Frei Betto sob a do regime militar de 1964. Também se assemelham pelo fato de tratarem do cotidiano da prisão, inclusive ao denunciar abusos e violências. Nesse sentido, é exemplar a carta que Lobato escreve ao interventor do Estado de São Paulo, Fernando Costa, em 04 de junho de 1941, em que relata as torturas de que chegou a ter notícias na detenção.

IHU On-Line - Em que sentido a releitura de suas obras ainda são intensas para compreender o Brasil de hoje?

Emerson Tin - Na medida em que, infelizmente, muitos dos problemas do Brasil de Lobato são ainda os do Brasil de hoje, a releitura de suas obras nos permite tentar buscar uma resposta para esta pergunta insolúvel: no que temos errado? Não fosse por isso, a releitura das obras de Lobato pode e deve ser feita para que o leitor possa manter contato com um ficcionista de grande qualidade, um polemista aguerrido, um crítico inteligente. E, com isso, possa o leitor enriquecer-se, tanto em sua história de leitura quanto na sua compreensão do Brasil.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição