Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Lobato: um escritor eugenista?

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Patricia Fachin

Para Dirce Waltrick do Amarante, a obra de Lobato expõe o sentimento de racismo ainda existente no Brasil

“A obra de Monteiro Lobato revela muito sobre o racismo no Brasil, a começar pelo modo paradoxal ou contraditório como o tema é tratado nos seus livros”, afirma Dirce Waltrick do Amarante, professora de Literatura Infanto-Juvenil, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ela, as contradições apresentadas pelo autor no que se refere à questão racial são evidentes. “Se por um lado Lobato escreve uma obra como O presidente negro, seu ‘grito de guerra pró-eugenia’, como ele mesmo afirmava, onde o autor fala friamente do extermínio dos negros, por outro lado, no conto ‘Negrinha’, o escritor traz à tona o relato cruel da vida de uma menininha negra, filha de ex-escravos que vagava pela casa da patroa branca de sua mãe, mais como um animal de estimação do que como um ser humano. Diferente de seu grito pró-eugenia, ‘Negrinha’ é um relato comovente, que chama a atenção para o destino infeliz que os negros tiveram após a abolição da escravatura, já que, apesar de livres, o olhar de superioridade sobre eles não havia mudado", explica. Produzida num período em que o movimento eugenista brasileiro se destacava, a obra lobatiana O presidente negro “propaga com entusiasmo alguns preceitos do movimento eugênico brasileiro, ou seja, a supervisão da imigração, a esterilização das supostas ‘raças inferiores’ e o controle de casamentos para que não houvesse miscigenação racial”, considera.

Dirce é graduada em Direito, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e mestre e doutora em Teoria Literária, pela mesma universidade. Atualmente, realiza o segundo ano de pesquisa de pós-doutorado júnior, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela também é membro do Núcleo de Estudos de Literatura, oralidade e outras linguagens, da UFSC. Além disso, colabora no site www.culturainfancia.com.br e no jornal de Literatura Infanto-Juvenil O Balainho. Textos e traduções da pesquisadora podem ser encontrados no site www.centopeia.net. Confira a seguir a entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line.

IHU On-Line – O que a obra de Lobato revela sobre o racismo no Brasil? A composição familiar e social estabelecida no Sítio do Picapau Amarelo apresenta a estrutura da época ou o sentimento do autor em relação a esse contexto?

Dirce Waltrick do Amarante - A obra de Monteiro Lobato revela muito sobre o racismo no Brasil, a começar pelo modo paradoxal ou contraditório como o tema é tratado nos seus livros.

Se por um lado Lobato escreve uma obra como O presidente negro, seu “grito de guerra pró-eugenia”, como ele mesmo afirmava, onde o autor fala friamente do extermínio dos negros, por outro lado, no conto “Negrinha”, o escritor traz à tona o relato cruel da vida de uma menininha negra, filha de ex-escravos que vagava pela casa da patroa branca de sua mãe, mais como um animal de estimação do que como um ser humano. Diferente de seu grito pró-eugenia, “Negrinha” é um relato comovente, que chama a atenção para o destino infeliz que os negros tiveram após a abolição da escravatura, já que, apesar de livres, o olhar de superioridade sobre eles não havia mudado.

De certa forma, nosso olhar sobre a raça negra e nossa idéia de racismo é ainda hoje bastante paradoxal, entre simplista e ingênuo. Fazemos nossa mea culpa, por exemplo, quando reservamos um certo número de vagas para os negros nas universidades, mas só fazemos isso porque não oferecemos oportunidades ideais de trabalho e estudo para os seus antepassados. Será que os negros terão emprego garantido tão logo estejam formados? Ou será que nossa “benevolência” termina justamente aí? 

Quanto à composição familiar e social do Sítio, lá vive uma família ao mesmo tempo típica e atípica para o Brasil daquela época. Típica, porque mantém tia Nastácia, a negra velha, a “negra de estimação”, como lemos em Reinações de Narizinho, a maior parte do tempo na cozinha, entre um quitute e outro. Atípica, porque lá encontramos Dona Benta, uma mulher independente, culta e aberta a novas experiências, que administra sua propriedade sozinha. Totalmente diferente das mulheres de O presidente negro, que, saudosas dos velhos “machos”, arrependeram-se de sua tentativa de independência.

IHU On-Line – Como a senhora interpreta as questões raciais na obra de Lobato? Os diálogos entre Emília e tia Nastácia, por exemplo, revelam um paradoxo sobre o racismo no Brasil e as posições do autor sobre o tema, uma vez que Nastácia pode ser vista como uma negra ignorante ou como uma sábia de histórias populares?

Dirce Waltrick do Amarante - A obra de Monteiro Lobato é bastante paradoxal no que diz respeito à questão racial, assim como o Brasil o é. Basta lembrar da abolição da escravatura: negros e brancos abolicionistas comemorando juntos à abertura das senzalas. Depois da festa, no entanto, à senzala teve que correr novamente o negro, porque não se fez mais nada por ele.

Quanto à tia Nastácia e Emília, a relação delas é bastante complexa, podemos pensar que se trata de relação entre mãe (afinal, foi tia Nastácia quem coseu a bonequinha) e filha. Portanto, no Sítio, tia Nastácia não é uma figura menor, já que dela nasce a boneca Emília. No entanto, Nastácia só lhe dá corpo. Ela não lhe dá a alma, nem a independência de pensamento, nem a fala.

A boneca, “filha” da negra Nastácia, tão logo ganha o discurso “douto” (de um tal doutor, o Dr. Caramujo), renega a sua origem humilde e popular.

IHU On-Line – Muitos especialistas destacam aspectos positivos da obra lobatiana, como a produção infantil. No que se refere ao aspecto racial, a senhora acredita que o autor tentou, nas entrelinhas, incentivar a diferença de raças e estimular também o preconceito entre as crianças? 

Dirce Waltrick do Amarante – Não acho que Lobato quisesse incentivar a diferença racial no seu Sítio, até porque ele é contraditório e em alguns momentos propõe situações “normais”, não racistas. Além disso, a tia Nastácia e também o tio Barnabé são personagens simpáticos e importantes na trama. Eles detêm a sabedoria popular, à qual recorrem, vez por outra, os personagens brancos da narrativa lobatiana.

IHU On-Line – O que a obra O presidente negro revela sobre a personalidade e o modelo de América sonhado por Lobato?

Dirce Waltrick do Amarante – O romance revela um Lobato absolutamente eugenista, que não faz nenhuma concessão. O livro propaga com entusiasmo alguns preceitos do movimento eugênico brasileiro, ou seja, a supervisão da imigração, a esterilização das supostas “raças inferiores” e o controle de casamentos para que não houvesse miscigenação racial. Lemos no livro: “é impossível protelar por mais tempo com paliativos ilusórios a solução do binômio racial. Ou extirpamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estamos pela maré montante do pigmento”. No entanto, ao final do romance, a heroína norte-americana, branca e de olhos azuis, se rende aos encantos do brasileiríssimo e provavelmente miscigenado protagonista da trama, originado uma raça que podemos supor mista, como que à revelia do autor. Essa, imagino, era a miscigenação racial sonhada por Lobato, admirador fervoroso dos Estados Unidos da América. 

IHU On-Line – Que releituras ainda são possíveis na obra Sítio do Picapau Amarelo?

Dirce Waltrick do Amarante - Muitas. Uma dela é livrar o Sítio do adjetivo infanto-juvenil. É literatura, boa literatura para qualquer leitor. Guardadas as devidas diferenças de gênero e estilo, podemos comparar o Sítio do Picapau Amarelo às Alices, de Lewis Carroll,  livros que se esticam e encolhem segundo a idade do seu leitor.

Uma outra leitura possível seria a de se refletir sobre uma idéia quase que consagrada acerca do “raciocínio evolutivo” ingênuo de Lobato, o qual teria substituído, na sua obra, a figura do índio pela do caboclo, pois é possível pensar que, na obra de Lobato, Visconde de Sabugosa representa a figura do índio, pois, segundo a mitologia ameríndia mesoamericana, os primeiros homens vieram do milho. 

IHU On-Line – Quais as diferenças entre os contemporâneos Mário de Andrade e Monteiro Lobato, no que se refere ao modo de observar o Brasil e apresentá-lo em suas obras? O que os personagens negrinho de Será o Benedito!, de Andrade e a tia Nastácia do Sítio, de Lobato, revelam sobre o olhar de ambos escritores sobre as questões raciais da época?

Dirce Waltrick do Amarante - Lobato dizia, a respeito do Brasil, que “o nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas”. E complementava, “progresso cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas”. Lobato foi um crítico feroz do progresso desordenado brasileiro, do funcionalismo público inútil, da falta de visão e educação do brasileiro.
Apesar disso, foi o Brasil, o interior do Brasil, que ele quis descrever nas suas obras. Embora mantivesse seu olhar lá na Europa e principalmente nos Estados Unidos, país que admirava e que via como exemplo a ser seguido.

Quanto à nossa cultura popular, Lobato, ao mesmo tempo em que traz à tona, em sua obra, a cultura popular brasileira (Histórias da tia Nastácia), nosso folclore (Saci), critica aquilo que ele chama de “histórias do povo”, as quais não são se comparam à literatura de “Oscar Wilde  e Lewis Carroll”. Tia Nastácia e tio Barnabé são os porta-vozes da nossa cultura popular, que, apesar de criticada, é o centro de boa parte das boas aventuras que Lobato narra.   

Mário de Andrade, ao contrário, era um escritor que, como diz Silviano Santiago,  estava “entregue à tarefa didática não só de contrapor ao pensamento eurocêntrico das nossas elites o abominado passado nacional, como também de reabilitar este pelo viés da multiplicidade das culturas populares que, no silêncio das elites, estiveram prestando-lhe contornos insuspeitos”. Mário de Andrade deu início, desse modo, ao “abrasileiramento do Brasil”, o qual só seria possível, segundo o escritor, quando o país fosse visto como ele é, quando se começasse a sentir saudades dele (do Brasil) e não do “cais do Sena em plena Quinta de Boa Vista”. Para Mário de Andrade, enquanto o brasileiro não se abrasileirasse ele continuaria sendo um “selvagem” ou um indivíduo sem identidade (como o protagonista de sua “História com data” (1921), um rico herdeiro da capital paulista que recebe, depois de um acidente, o cérebro de um operário italiano; ou o próprio Macunaíma,  seu herói sem caráter): nem nacional, nem estrangeiro, nem elite, nem operário, nem local, nem cosmopolita.   

O modernismo de Mário de Andrade passa da “fase do mimetismo, pra fase de criação”, como ele mesmo escreveu. Em Macunaíma, o escritor traz à tona não mais o índio do romantismo, que era o paradigma das virtudes do país, mas um herói sem identidade.

Quanto ao negrinho de Será o Benedito!, sabe-se que Mário de Andrade gostava, como ele dizia, de “parar [na rua] e puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição”. O escritor não põe em dúvida essa cultura, razão pela qual, na história do negrinho, o protagonista – que é o próprio Mário de Andrade - se ressente de não ter podido falar mais com ele.
 
IHU On-Line – Como a cultura e a sabedoria popular é apresentada pelos autores?

Dirce Waltrick do Amarante - Mário de Andrade traz à luz, pela primeira vez em língua portuguesa, um dos maiores mitos brasileiros, Macunaíma. Lobato, por sua vez, leva o Saci, a Cuca, o Curupira etc. dos confins do campo para a cidade.

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