Edição 284 | 01 Dezembro 2008

As pulsões infantis e a invenção de uma nova cultura

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Clarice Abdalla e Gilda Carvalho

Para o psicanalista Carlos Mário Alvarez, Monteiro Lobato extravasou o universo das crianças, propondo uma práxis onde as pulsões do infantil reinavam de forma a inventar uma nova cultura

Emília, Narizinho, Visconde, Dona Benta, Tia Nastácia, Pedrinho, entre outras personagens, fazem parte do imaginário brasileiro há décadas, graças ao escritor José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), um dos maiores nomes da literatura infantil de todos os tempos. O ano de 2008, que está sendo pródigo em evidenciar nomes importantes da cultura nacional, não poderia deixar de lembrar Monteiro Lobato, que levantou questões cruciais de sua época, como o modernismo, a descoberta do petróleo, a participação política através do voto secreto, a resistência à ditadura Vargas, e a criação de espaços para o infantil na literatura em que a criança tornou-se protagonista de uma fala de destaque no ambiente familiar. O programa Sítio do Picapau Amarelo durante anos foi encenado na televisão, popularizando as personagens que conquistaram o público, trocando idéias com as crianças e com isso educando-as de forma não convencional. Ele também atraiu o leitor adulto com seu romance O presidente negro.

Monteiro Lobato escreveu inúmeros artigos e contos para os jornais e revistas - entre eles, O Estado de S. Paulo e Revista do Brasil - e impulsionou o mercado editorial nacional, lançando novos talentos e melhorando a qualidade e a quantidade de livros distribuídos em todo país. Por perceber muitas questões políticas, filosóficas e literárias bem adiante de seu próprio tempo e possuindo uma cultura vastíssima, é considerado hoje um pensador. Para falar sobre o legado da obra lobatiana, do espaço da criança na literatura e da influência de Nietzsche no trabalho do escritor paulista, Clarice Abdalla, professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e doutoranda em Literatura Brasileira na mesma Universidade, entrevistou o psicanalista Carlos Mário Alvarez, Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutorando em Letras, pela PUC-Rio.

IHU On-Line - Em 2008, a Literatura Brasileira celebrou os 400 anos de nascimento do padre Antônio Vieira (1608-1697), 100 anos de morte de Machado de Assis (1839-1908), 100 anos de nascimento de João Guimarães Rosa (1908-1967) e 60 anos de morte de Monteiro Lobato (1882-1948). Foram programados eventos importantes espalhados pelo Brasil afora para lembrar escritores de destaque da nossa cultura. No caso de Monteiro Lobato, quais principais questões que você ressaltaria na obra do escritor paulista e que ainda hoje permanecem?

Carlos Mário - Penso que Monteiro Lobato é uma figura única para nós brasileiros. Falo especificamente de sua obra infantil, que penso ser o que há de mais brilhante em sua escrita. Nunca, no nosso país, alguém estabeleceu um diálogo tão franco e próximo do universo da criança como ele. O que Lobato ousou fazer, de forma única, foi estabelecer um ethos para a questão do infantil. Isso implica dizer que, ao imaginar o Sítio e todos seus componentes, ao tornar isso tudo um universo possível e acessível a crianças e adultos, ele situou um ambiente possível de existência, convivência e entendimento entre pequenos e grandes. Lobato inventou um lugar e propôs uma práxis onde as pulsões do infantil reinavam de forma a inventar uma nova cultura. Ele foi o único até então. Seu feito não se reduz e nem pode ser tomado equivocadamente como se ele tivesse apenas escrito para crianças. Ele foi além disso: articulou o infantil – de forma brilhante! - na cena brasileira. Trata-se de um sujeito cuja dimensão infantil recusou-se a dar lugar a qualquer outra forma de ser.
Lobato não só vivia plenamente o infantil, como acreditava que nele residia toda potência de mudança da cultura. Ele dialogou com as crianças porque conseguiu, ele próprio, acessar as dimensões do infantil sem reservas ou inibições. Sua genialidade foi ter inventado uma literatura cujos poros de emanação de potência partiram das dimensões infantis.

Adultos e crianças, em Lobato, se entendiam através dos signos do infantil: ternura, curiosidade, respeito e alegria. Por isso, sua obra desperta a fascinação de todos aqueles que, assim como ele, se sensibilizam com a experiência de vida, que acreditam que viver é uma aventura, algo que pode ser fantasiado sem ser fantasioso, lúdico sem ser menor e leve sem ser banal. O Sítio deve ser visto como lugar, como ethos, como potência imanente capaz de fazer efeitos de transformação na cultura. Em Lobato, o Sítio não é ficção.

IHU On-Line - Percebe-se, na convivência entre as personagens do Sítio, que a fala da criança é muito ouvida pelos adultos de forma sincera e respeitosa. No entanto, na época em que a obra de Lobato foi lançada, a estrutura patriarcal era muito forte. A criança não era ouvida praticamente. Qual a importância do impacto da obra de Lobato nos valores da sociedade daquela época?

Carlos Mário - Ouvir as crianças e estabelecer com elas um mundo possível, incluindo aí o adulto, foi seu maior mérito. Fazer com que esse encontro entre a criança e o adulto seja atemporal, que se dê na espontaneidade, foi uma aposta que trouxe dignidade às crianças e convidou os pais e educadores a se reposicionarem também de forma digna. É como se o sentido de sua obra dissesse: “Vamos reconhecer as crianças no que elas têm de melhor, na sua dimensão infantil, envolvidas por desafios, mistérios e paixões, sem, contudo, resvalar para a perversidade destrutiva do adulto. Encontremos no universo infantil motivos suficientes para deixarmos de sermos niilistas. Sejamos adultos, mas resguardemos nossas crianças e as crianças que residem em nós”. Lobato era nietzschiano, sabemos disso. Contra os pactos perversos típicos das sociedades contemporâneas, Lobato oferecia um projeto do “Pacto pelo infantil”. Muitos, na época, e ainda hoje, conseguiram acompanhar e se deixar afetar por essa idéia. Mas a grande maioria, acabou por perder o fio da meada ao longo dos tempos. Afinal, vivemos numa cultura que tem compulsão pelo que é banal, grotesco e violento.

IHU On-Line - A sociedade hoje ouve as crianças, considera as suas opiniões?

Carlos Mário - As crianças nunca tiveram tanta voz como hoje em dia. Mas o problema é que elas fazem ecoar uma espécie de discurso rebatido do adulto. As crianças estão sendo adultizadas rapidamente. O universo infantil, inaugurado por Lobato, está se descaracterizando. Os adultos – cada vez mais ocupados com seus trabalhos e suas mil e umas funções para juntar dinheiro, adquirir sucesso e gozar intensamente a vida – não têm tempo para os pequenos. A criança encontra seu lugar como consumidora ávida, como alguém capaz de trafegar no mundo adulto de forma sagaz. Eis aí o “pacto perverso”. As crianças estão perdendo seu “Sítio” e estão ganhando contorno de adultos depressa demais. Elas também entraram no redemoinho da compulsão e se tornaram esvaziadas em relação a determinadas posturas. Prova disso é que, incitadas por uma violência que parece ser estruturante, desafiam seus pais, desqualificam seus professores e agem de maneira hiperativa.

IHU On-Line - O senhor escreveu um artigo em que faz uma ligação entre as idéias de Nietzsche, Freud e Lobato em torno da criança e do seu espaço na sociedade. Sabe-se que Lobato leu muito Nietzsche  e não possivelmente Freud.  Mas, de qualquer modo, o que Lobato levou para sua obra desses autores?

Carlos Mário - Os três autores pensaram o infantil como lugar de potência. Deram dignidade às crianças e reconheceram nelas um lugar privilegiado. Nietzsche, em seu Zaratustra, ao pensar nas três metamorfoses, elevou a criança como sendo a última etapa da metamorfose (antes ele fala do camelo e do leão). Via aí o lugar de transvaloração de todos os valores. Para ele, o homem deveria chegar à condição do infantil se quisesse ultrapassar seus limites moralistas (camelo) e sua condição niilista (leão). Freud mostrou que os adultos nada mais são do que crianças que se neurotizaram. Seria preciso que se reconectassem com o infantil para que se curassem. Segundo ele, as crianças abrigariam, desde sempre, uma diversidade de pulsões e paixões que o trabalho de educação trataria de reprimir e formatar. Lobato parecia estar afinado com esses autores, pensou um lugar possível para o infantil de maneira que o processo civilizatório delas fosse capaz de mudar a cultura e não de se submeter de forma a perder sua potência: ele inventou o Sítio, esse sim, um interessante “estatuto da criança”.

IHU On-Line - Pelas cartas que lemos de Monteiro Lobato ao seu amigo Godofredo Rangel, muitas delas reunidas no livro A barca de Gleyre, o escritor revela que Emília é poderosa demais, que às vezes parece “escrever-lhe por contar própria”, tamanha a força do discurso da personagem. Emília já foi considerada alter ego de Lobato. Do ponto de vista psicanalítico, o discurso de Emília representa a superação da fala reprimida da criança daquela época?

Carlos Mário - Diria que Emília apresenta a potência do infantil. Ela não está no lugar de algo (ou seja, ela não representa), mas ela funda algo: Emília transita entre o lúdico e o sério, entre a alegria e a dor, entre o mágico e o concreto, entre a criança e o adulto, enfim, entre o humano e o inumano. Emília é o infantil. Precisaríamos de mais Emílias e menos Power Rangers e toda essa histeria de mau gosto que invade, sem pedir licença, o imaginário das crianças. Precisaríamos também de mais Donas Bentas, elementos que se interessavam em se debruçar diante das crianças e conduzi-las, de forma generosa, a lugares dignos. Creio que os pais de hoje em dia se acomodaram (e se acovardaram), deixando que a função de diálogo e trocas com as crianças passassem a ser feitos pela TV e os videogames. Perdemos a generosidade lobatiana encarnada pela Dona Benta e o Tio Barnabé e caímos no caldeirão do “cada um por si e todos contra todos”.

IHU On-Line - Monteiro Lobato também gostava de pintar e fez ilustrações inclusive de personagens inspiradas de sua obra literária. Que poder tem a imagem na obra lobatiana?

Carlos Mário - Impossível ler Lobato sem ser convidado a figurar. O poder de sua obra infantil está no impacto que suas imagens nos causam.

IHU On-Line - A obra de Lobato considerada como “adulta” traz reflexões importantes e pontuais, como por exemplo, o racismo, a sociedade americana (fordismo) e o comunismo de Prestes. De que forma o escritor colaborou para ajudar a pensar o país diante de tantas questões polêmicas como o analfabetismo e a falta de investimento na edição de livros, além dos assuntos que acabei de citar?

Carlos Mário - Todas essas questões são importantes para se pensar a cultura. Lobato não se furtou a elas. Ao contrário, buscava entendê-las e usava de provocações e sagacidade para articulá-las em seus textos e idéias. Lobato era um pensador nômade, não via problemas em se desdizer ou mudar de opinião. Por isso, seu texto fluía, por isso, suas idéias se movimentavam e causavam movimento. Isso foi o que lhe permitiu criar com fibra e consistência. A consistência de alguém que amava a escrita, as idéias e os homens. Um tipo generoso que não se curvou diante da estupidez dos poderosos e da cegueira do senso comum. Lobato foi um tipo único, uma espécie de grão de ouro em um saco de pedras.

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