Edição 284 | 01 Dezembro 2008

Literatura lobatiana expressa o “falar gostoso do povo brasileiro”

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Gilda Carvalho e Patrícia Fachin

Para o escritor Gerson Valle, o brasileirismo de Lobato tornou-se signifi cativo para muitas gerações por um motivo especial: ele tinha vontade de formar brasileiros independentes e honestos

Admirador do progresso americano, principalmente dos Estados Unidos, Lobato “desejava o desenvolvimento aqui e não a submissão como muitos outros admiradores da nação do norte”, considera Gerson Valle, escritor e poeta, e membro da Academia Brasileira de Poesia. Ao constatar a ambigüidade nas obras do escritor brasileiro, Valle afirma que a relação entre realidade e fantasia é o ponto atrativo nos livros de Lobato. “Em tudo que escreve, evidencia-se o Lobato com os pés na terra, sua terra Brasil, com olho no mundo, e uma incansável imaginação que o faz mudar palavras, usar de contos de fadas, unindo ingredientes aparentemente contraditórios”, explica.

Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ao comentar a obra O presidente negro, Valle ressalta o lado humanista do escritor brasileiro e afirma que sua personalidade “se põe de forma inteira no que escreve com a honestidade de observação e sentimento, e ao mesmo tempo, é bastante dialético”. Nessa dialética, aponta, aparecem contradições que são visíveis quando o autor “exalta a livre iniciativa no parâmetro da economia norte-americana, visa o desenvolvimento nacional, preocupado com nossas diferenças sociais. Tanto isto é verdade, que, com toda sua admiração pelos Estados Unidos, no final de vida escreve verdadeiros panfletos para os comícios do Partido Comunista. Sua preocupação é com o bem-estar do povo brasileiro”, esclarece.

Gerson Pereira Valle formou-se em Direito pela faculdade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Fez pós-graduações na França (Institut Européen des Hautes Études Internationales e Diplôme d’Études Approfondies en Droit de la Paix et du Développement, ambos da Université de Nice), Holanda (Académie de Droit International de La Haye) e Portugal (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa). De sua vasta produção literária, citamos Aparições (São Paulo: Poiésis, 2001), Vozes trazidas pelos ventos (São Paulo: Poiésis, 2005), Vozes novas para velhos ventos (Brasília: Thesaurus, 2006) e A novela de Ipanema (Rio de Janeiro: Catedral das Letras, 2006).

IHU On-Line – O que motivou Monteiro Lobato a escrever um romance de ficção científica no distante ano de 2228, e nos Estados Unidos, contrariamente a tudo que até então escrevia passado na realidade brasileira?

Gerson Valle – Em 1926, Monteiro Lobato, recém-nomeado adido comercial do Brasil em Nova Iorque, escreve, em somente três semanas, seu único romance para adultos, O choque das raças ou O presidente negro. Com espírito pragmático, pretendia publicar nos Estados Unidos uma tradução deste romance, achando que haveria interesse na sociedade de lá, ao colocá-la numa ficção futurista. Se fosse bem vendido, o livro compensaria o que perdera em alguns negócios. Lobato, a par do escritor e intelectual de notável personalidade com muitas idéias próprias, iniciava sempre novos empreendimentos, visando não só ao lucro pessoal como também participar num desenvolvimento brasileiro dentro do espírito do liberalismo, cujo modelo maior é os Estados Unidos. Desejava o desenvolvimento aqui e não a submissão, como muitos outros admiradores da nação do norte.

IHU On-Line – Pode-se compreender, então, que Monteiro Lobato possuía, a par de seu subjetivismo estético como escritor, um espírito pragmático, visando mesmo objetivos imediatos para seus escritos?

Gerson Valle – Tendo herdado uma fazenda no interior de São Paulo quando era promotor público, foi obrigado a vendê-la por falhar nos negócios que nela pensou desenvolver. Chegou a fundar mais de uma editora, e, mais do que isto, na década de 1930, uma companhia de minério e petróleo. Suas iniciativas normalmente malogravam, apesar de seu entusiasmo e lógica. Também seu livro sobre os Estados Unidos – que pensava que lhe daria “dólares à beça”  – foi lá recusado. Atrás do sucesso do livro, pensava criar a editora “Tupy Publishing Company”, que transformaria editor e editados em milionários, em seus sonhos. Escreveu carta ao amigo Godofredo Rangel relatando a razão de nada disso ter dado certo: “Meu romance não encontra editor. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam negros. Os originais estão com o Isaac Goldberg para ver se há arranjo. Adeus, Tupy Company”. 

IHU On-Line – Choca a leitura desse fragmento. Há alguma forma de compreendê-lo melhor, à luz da posição do homem e do escritor Monteiro Lobato?

Gerson Valle – É preciso refletir sobre certa característica lobatiana. Há, antes de mais nada, uma constante ambigüidade em seus textos, cuja sinceridade procura a realidade que lhe chega e sentimentos naturais com a mesma abordagem que faz de suas fantasias. É esta ambigüidade realista-fantasista que tanto atrai em seus livros infantis. Em tudo que escreve, evidencia-se o Lobato com os pés na terra, sua terra Brasil, com olho no mundo, e uma incansável imaginação que o faz mudar palavras, usar de contos de fadas, unindo ingredientes aparentemente contraditórios. E uma irresistível tendência ao que então chamavam de “blague”, como esta de dizer que seria melhor compreendido pelos norte-americanos quando linchavam negros.  Tal tipo de “gozação” (moderna forma de falar “blague”) era típica de sua inteligência dialética.

IHU On-Line – Então, há uma relação entre um posicionamento aparentemente tão chocante e a honestidade de propósitos intelectuais de uma formação de época?

Gerson Valle – Seus contos de nosso pré-modernismo do início do século XX (tal como um Lima Barreto,  Euclides da Cunha  ou Augusto dos Anjos ) o enquadram como um analista de uma realidade (chegando a configurar um tipo do interior paulista, o “fraco” Jeca Tatu, como Euclides tachou o nordestino como um “forte”). Nesse realismo, há “cientificismos” positivistas da época, inclusive a de ensaios sobre raças. Impressionou-se ainda jovem com “L’homme et les sociétés”, de Gustave Le Bon e o Conde de Gobineau,  ambos tratando da desigualdade das raças, e da degenerescência causada pela miscigenação. Isto vai aparecer em O presidente negro, em que Miss Jane, filha do cientista Benson, inventor do “porviroscópio”, máquina que mostra o futuro, na linha da Literatura que ele tanto admirava de H. G. Wells  (de “A Máquina do Tempo”), mas com um nome típico de suas criações para crianças (Lobato é sempre Lobato), afirma que o mal do Brasil está na miscigenação; nos Estados Unidos, a segregação foi sábia, pois brancos e pretos não se devem misturar, cada um tendo suas características próprias (e coloca a força dos pretos na intuição e a dos brancos na inteligência...). Isto leva ao crescimento dos pretos rivalizando com os brancos. Até o ponto em que um negro torna-se presidente dos Estados Unidos. Este o “argumento” central.

IHU On-Line – Não chega a ser curioso que um racionalista desconfiado das religiões mascararem a realidade para o povo, foi de uma intuição profética: no ano de 2228 (e estamos em 2008, com o mesmo 2 inicial e 8 final), um negro disputaria as eleições norte-americanas com uma mulher (e aí ele prevê, além da rivalidade entre raças, a rivalidade entre os sexos)?

Gerson Valle – Sim, a curiosidade é maior quando se lê no mesmo livro outras previsões como a possibilidade de no futuro as pessoas trabalharem mais em casa, como ocorre com a internet, e ainda não se pode deixar de lembrar que ele foi quem, contra todas as posições oficiais, insistia na existência do petróleo no Brasil.

IHU On-Line – Intuições? Deduções lógicas?

Gerson Valle – Há um pouco dos dois abrindo possibilidades, como, por exemplo, ante a existência da alma ou o espiritismo então em voga, pactuando com Godofredo Rangel que o primeiro a morrer viria dizer ao outro se existia algo mais que a matéria.

IHU On-Line – Onde se encontra, em sua Literatura infantil, a intenção objetiva de Lobato em transmitir sua visão de mundo, de molde a possibilitar reflexões sobre a realidade e até possíveis decorrências no futuro?

Gerson Valle – Antes de escrever para criança, no texto Os livros fundamentais , Monteiro Lobato chamava a atenção da importância da leitura na infância para a formação do futuro da nação: “O menino aprende a ler na escola e lê em aula, à força, os horrorosos livros de leituras didáticas que os industriais do gênero impingem no governo. Coisas soporíferas, leituras cívicas, fastidiosas patriotices...”. “Além disso, sai o menino da escola com esta noção curiosíssima, embora lógica: a leitura é um mal, o livro, um inimigo; não ler coisa alguma é o maior encanto da existência”. E o que ele julga que o cérebro infantil, que “sonha acordado”, “fundamente imaginativo” pede? Ficção, contos de fada, história de anõezinhos maravilhosos, “mil e uma noites”, quando apenas consegue, na leitura que lhe dão “fazer considerar a abstração “pátria” como um castigo da pior espécie”. Produzindo sua Literatura infantil, Lobato vai dar à infância brasileira o que ele julgava essencial para a formação. Como bem escreveu Eliana Yunes: “Mesmo em seus livros paradidáticos – Serões de D. Benta, Emília no país da gramática, Aritmética de Emília, História das invenções, História do mundo para crianças – refutam o tom dogmático, sapiencial e institucional de quem ensina centrado em verdades inabaláveis. A tática será permitir a discordância, favorecer a expressão da divergência, numa palavra, instaurar a instância crítica”.

IHU On-Line – Pode ser entendida como dialética a escrita simultaneamente realista e fantasista de Monteiro Lobato?

Gerson Valle – A personalidade de Lobato se põe de forma inteira no que escreve com a honestidade de observação e sentimento e, ao mesmo tempo, é bastante dialético. Nesta dialética, parece haver contradição, quando há afirmação das verdades perceptíveis, mesmo que contrárias. Quando exalta a livre iniciativa no parâmetro da economia norte-americana, visa o desenvolvimento nacional, preocupado com nossas diferenças sociais. Tanto isto é verdade, que, com toda sua admiração pelos Estados Unidos, no final de vida escreve verdadeiros panfletos para os comícios do Partido Comunista. Sua preocupação é com o bem-estar do povo brasileiro.

IHU On-Line – Dentro de uma tal “dialética”, é possível que sua análise, partindo de sentimentos verdadeiros, possam, por vezes, contradizer o intelectual de percepção mais “científica”, no sentido “positivista” de sua época? 

Gerson Valle – Insisto em suas posições sinceras, mesmo quando o humanista que era, pudesse se chocar com elas. Desenhando e pintando desde cedo, o que julgava sua verdadeira vocação mais que a Literatura (e esta tem sempre o lado descritivo do pintor), habitua-se ao academismo que lhe chega a São Paulo do início do século. Estranha tudo na primeira exposição com linguagem modernista, de Anita Malfatti.  Publica a discutida crítica “Paranóia ou mistificação”, na qual ataca todas as escolas novas, ignorantemente, como sendo “impressionismos”, e estes seriam caricaturas e não arte verdadeira. Um crítico mais convencional abriria uma “leitura” para o que na Europa poderia se dizer, e não seguiria tão atabalhoadamente suas convicções.

IHU On-Line – Tal colocação espontânea pode lhe ter granjeado inimizades com aqueles que perseguiam inovações estéticas contra o statu quo da arte e pensamento estabelecidos?

Gerson Valle – De certa forma, os modernista brasileiros, que iriam se destacar a partir de 22, colocaram-no como seu oponente. Meia verdade também. Lobato segue o “falar gostoso do povo brasileiro” em sua literatura, tal como preconizou Bandeira  em seu poema, sem participar abertamente do convívio com os modernistas. Ele foi “modernista” a seu modo. E como inovou! Todas estas coisas integram suas aparentes contradições de “realista imaginoso”. Não se deve mesmo esquecer que no campo filosófico ficou muito impressionado com Nietzsche,  que seria uma inteira inovação no pensamento de então, não se podendo, sob tal aspecto, chamá-lo de reacionário.

IHU On-Line – Mas, como, dentro de tudo isto, coexiste certa forma “politicamente incorreta”, na expressão em voga, em seu posicionamento sobre as questões étnicas?

Gerson Valle – Tal como a visão acadêmica de artes plásticas, existia na importada cultura européia de um brasileiro de seu tempo, a visão estética também das raças. Basta lembrar, na tradição européia, do encontro de Papageno (um homem-pássaro) com o negro Monostatos na ópera A flauta mágica, de Mozart.  Cada um sai assustado correndo para lados opostos, como vendo monstruosidades! O próprio Goethe  compara um negro a um macaco. Os traços finos com cabelos lisos comporiam a idéia de beleza tradicional do europeu. E Monteiro Lobato, um cultor da Grécia antiga e das artes acadêmicas, tinha isto em alta conta. Tudo no negro parecia grosseiro, sendo, quando de seu nascimento, os escravos que só mereciam se ocupar do trabalho pesado. Estávamos longe do “black is beautiful” e da cultura ocidental incorporar valores não eurocentristas. Daí ele escrever no “presidente negro” ser necessária uma “eugenia” (palavra terrível que iria ser usada pelos nazistas) de um clareamento das raças!

IHU On-Line – Como se concilia o recebimento de influências de um popularismo até mesmo grosseiro de então, como era a discriminação do negro e do mestiço, com o intelectualismo do muito lido Lobato? 

Gerson Valle – O humanista Lobato prefere seguir sua espontaneidade, como uma eterna criança, não se fechando num intelectualismo livresco. Emília é um seu alter-ego. Outro é D. Benta. Entre ponderado e irreverente, o real e a fantasia. A idéia de o negro ser mais instintivo do que racional parece esquecida quando elogia André Rebouças,  considerando-o “o homem mais meticuloso do Império”.  Estava, no caso, entusiasmado com a recente publicação de seu diário. Mas sua maior contradição é considerar a miscigenação como produtora de decadência, quando, na comovida homenagem que escreve para uma publicação argentina sobre o centenário de Machado de Assis,  lembra que este nascera como “um pardinho”, recebendo a “marca divina”, ascendendo à perfeição (chama-o “Perfeito”), “a mais bela orquídea de pensamento jamais desabrochada neste setor (a Literatura) das Américas”; “Somos todos uns bobinhos diante de você, Machado...” 

IHU On-Line – A literatura brasileira continuou, a seu ver, sendo escrita por “bobinhos”, como ele se auto-classificou ante a grandeza de Machado?

Gerson Valle – Monteiro Lobato teve uma grande responsabilidade no fato de as gerações formadas por sua literatura infantil perderem muito de nossa natural e subdesenvolvida “bobice”. Pessoalmente, posso testemunhar que minha infância aprendeu com ele a encarar o aprendizado e a leitura como prazeres. Com a irreverência de nunca aceitar coisa alguma sem antes ouvir seu próprio sentimento. Erra-se muito assim, é evidente. Como nos parece o caso das colocações racistas de O presidente negro, e observo aí que, ao contrário do que ele previa, Obama não é o negro a competir com o branco, mas mestiço, que as “teorias” de então chamariam degenerado. E a candidata mulher não quis afirmar-se contra os homens, num feminismo extremado. Como, aliás, Obama também não competiu como negro, mas sim como uma das facções políticas norte-americanas, os democratas. Erros, por vezes, que podem desqualificá-lo como profeta. Mas, por outro lado, se Emília “goza” os “beiços” e as superstições da Tia Nastácia, esta é uma contadora de histórias ao sabor e saber de nossa gente. E Dona Benta respeita suas opiniões. Isto num sítio simbólico de um país onde se vivencia a liberdade que deveria existir por toda parte. As autoridades familiares não são os pais preocupados com a continuidade, mas uma meiga e sábia velhinha, que constitui exatamente com a Tia Nastácia as duas adultas da casa (duas mulheres), fora a sapiência de um sabugo de milho...

IHU On-Line – Entre a espontaneidade e a racionalidade das exposições que perpassam a narrativa de Lobato, como acha que pode ser visto seu significado literário e social após 60 anos de sua morte?

Gerson Valle – Monteiro Lobato foi quem me ensinou, desde a infância, a conviver entre o real e o imaginário, e a ter prazer com a leitura, incitando-me sempre a escrever expondo meus sentimentos, idéias tolas ou preciosas, sem medo! Seu brasileirismo, na vontade de formar o brasileiro independente e honesto, tornou-se muito significativo por gerações. Espero que seus leitores mirins sempre aumentem, não para eliminar negros, mas os agressores mentirosos deste país, que não tiveram na infância a sorte de tê-lo lido.

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