Edição 283 | 24 Novembro 2008

O mundo secular precisa de promessas

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Graziela Wolfart

Na opinião de Benjamín Arditi, deixamos de ser cartesianos e aceitamos que não há escapatória à guerra de interpretações interminável na qual se converteu nossa condição humana

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor da Universidade Nacional do México, Benjamin Arditi, acredita que a sociologia e todas essas disciplinas e escolas de pensamento “buscam compreender o mundo, e às vezes, inclusive, tentam modificá-lo, mas nenhuma delas e nenhum de nós podem pretender ter as respostas decisivas aos problemas urgentes que enfrentamos. Isto não significa que não possamos fazer nada”. Para Arditi, “devemos experimentar, em contato com o real, explorando opções e corrigindo-as quando pareçam que não servem ou quando tenham deixado de ser úteis para explicar nosso contexto”.

Arditi é um teórico político e professor na Universidade Nacional do México (Unam). Seu trabalho é voltado para o pensamento continental e suas pesquisas e publicações mais recentes centraram-se sobre vários aspectos da política pós-liberal. Atualmente, dedica-se a analisar os prós e os contras do “êxodo” e da política viral para explorar formas de política fora do âmbito da teoria da hegemonia apoiada por muitos pós-marxistas. Isso faz parte de uma pesquisa em curso sobre o dever-ser da política. De suas obras, citamos Democracia post-liberal? El espacio político de las asociaciones (Barcelona: Anthropos, 2005) e Politics on the edges of liberalism, difference, populism, revolution, agitation (Edinburgh University Press: Edinburgh University Press, 2007).

IHU On-Line - Como o senhor avalia a política e a teoria social no mundo contemporâneo? Como a sociologia política pode contribuir para uma melhor compreensão desses fenômenos?

Benjamin Arditi - Devo responder a esta pergunta com um pequeno “rodeio”. Zygmunt Bauman propôs, em um de seus livros, a distinção entre legisladores e intérpretes para qualificar dois tipos de intelectuais. Os legisladores, ou intelectuais do passado, eram aqueles que possuíam a verdade e se sentiam autorizados para ilustrar e guiar a massa inculta para melhorar a sociedade ou, ao menos, impedir que se desintegrasse, enquanto que os intérpretes são o tipo de intelectual próprio de uma época na qual desconfiamos de todo o conhecimento que se apresenta a si mesmo como detentor de certezas absolutas. Deixamos de ser cartesianos e aceitamos que não há escapatória à guerra de interpretações interminável na qual se converteu nossa condição humana. Parece-me que se pode dizer algo parecido no caso da compreensão do mundo contemporâneo por parte das diversas disciplinas e escolas de pensamento, desde os habermasianos aos deleuzianos, desde os propulsores das teorias da escolha racional aos marxistas. Trata-se de uma declaração de humildade intelectual. Todas essas disciplinas e escolas buscam compreender o mundo, e às vezes, inclusive, tentam modificá-lo, mas nenhuma delas e nenhum de nós podem pretender ter as respostas decisivas aos problemas urgentes que enfrentamos. Isto não significa que não possamos fazer nada. Devemos experimentar, em contato com o real, explorando opções e corrigindo-as quando pareçam que não servem ou quando tenham deixado de ser úteis para explicar nosso contexto.

IHU On-Line - A partir de seu livro Democracia pos-liberal? El espacio político de las asociaciones, qual é a importância das associações enquanto fenômeno social?

Benjamin Arditi - Os ensaios desse livro não pretendiam avaliar e resgatar a importância das organizações, pelo menos não no sentido de sujeito de Alain Touraine e Alberto Melucci, que desenvolveram marcos conceituais para pensar um tipo de ação coletiva que ocorria à margem dos partidos políticos e, com isso, buscavam reivindicar a legitimidade de organizações e movimentos sociais. O que nos interessava, a mim e aos demais autores, eram duas coisas. Por um lado, ver se era possível falar de uma certa formalização do fazer político destes movimentos e organizações para, assim, dar consistência às teses de Claus Offe  e Philippe Schmitter  acerca de um possível segundo circuito da política. Por outro lado, queríamos propor um certo descentramento da política a partir da imagem do arquipélago, ou seja, as reflexões estavam guiadas pela suspeita de que tem começado a surgir um cenário político pós-liberal da política, composto por três âmbitos de ação paralelos, mas interconectados. Estes são o da cidadania primária, terreno tradicional da política liberal dos partidos e eleições; o da cidadania secundária ou social, terreno dos intercâmbios entre movimentos e organizações sociais; e o da cidadania supranacional, espaço emergente de intercâmbios entre atores supra-estatais, mas também sob o âmbito governamental, pois inclui guerreiros globais como os que associamos geralmente com o “movimento de movimentos”, surgido de redes tais como as geradas em torno do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

IHU On-Line - Em relação ao multiculturalismo, quais são os problemas que o senhor vê em preservar as culturas minoritárias, em defesa exclusivamente do respeito à diferença?

Benjamin Arditi - Parece-me que é conveniente fazer uma distinção preliminar para posicionar a resposta acerca do tema da diferença. É evidente que há que defendê-la de seus inimigos habituais. Os exemplos são bem conhecidos. Durante a primeira modernidade, que era caracterizada — como bem disse Gianni Vattimo  — pelo progresso e pelo valor supremo do novo, toda cultura subalterna era, por definição, uma cultura deficiente, algo como uma etapa infantil que a evolução terminaria por corrigir. Isto supunha uma clara hierarquia entre culturas centrais e periféricas. O resgate que Paul Klee  faz da linguagem pictórica do norte da África nos anos 1920 é uma das primeiras tentativas de romper com esta hierarquia entre centro e periferia. Entre os inimigos da diferença também há que mencionar o classismo, o racismo, o sexismo e a homofobia, esquemas de pensamento que estabelecem hierarquias igualmente rígidas e ilegítimas entre o bom e o mal ou o apropriado e o indecoroso.

A diferença como algo bom?

Mas também temos o perigo oposto, a saber, o de quem vê a diferença como algo bom em si mesmo e rejeita qualquer tentativa de questionar o diferente em nome do direito de ser diferente. Isso cria alguns problemas. Um deles é que pode levar ao que Shelby Steel chama “as novas soberanias”, isto é, a reivindicação de uma série de princípios de autodeterminação que exclui toda intervenção externa nos assuntos internos dos grupos particulares. Outro problema é que isto assume algo que é bastante questionável, a saber, que há um consenso interno imanente em todo grupo cultural e que toda dissidência é de origem externa. Se aceitarmos que isso é assim, então não teríamos direito a questionar a prática de compra-venda de mulheres, que é parte dos usos e costumes de povos indígenas em lugares como a Serra de Oaxaca, no México, ou a remoção forçada do clitóris de adolescentes no norte da África. O debate acerca do multiculturalismo se move entre estes dois pólos, o da crítica ao velho imperialismo das narrativas dos países centrais e o dos problemas de um particularismo que fanaticamente desconhece a legitimidade de toda crítica externa a seus modos de ser. Não há uma fórmula aristotélica para resolver esta tensão, algo como um meio justo para balancear os pólos. Ao contrário, a reflexão está obrigada a conviver com essa tensão que, de momento, parece insolúvel, ainda que, não por isso, seja intratável.

IHU On-Line - Quais são os rumos de uma sociedade cada vez mais secularizada?

Benjamin Arditi - As sociedades estão cada vez más secularizadas, é verdade, mas isso não significa que nos encontramos em um mundo desencantado no qual predomina o cálculo racional ou onde as pessoas vivam alegremente a morte de Deus anunciada por Nietzsche  há mais de um século. Estamos longe disso. Habitamos um mundo híbrido, onde ateus e agnósticos coexistem com toda uma gama de crentes, desde a direita religiosa nos Estados Unidos até o fundamentalismo islâmico, passando pela extraordinária expansão dos grupos evangélicos na América Latina e os esforços contínuos da Igreja Católica em conter essa expansão e denunciar, ao mesmo tempo, as conseqüências do secularismo.

Mas também deveríamos nos perguntar acerca da persistência do desejo de salvação. Em parte, isso se deve ao fato de que o crescimento econômico nem sempre nos oferece certezas num mundo em tamanha mutação. É por isso que Regis Debray  disse, certa vez, que talvez a religião não seja tanto o ópio do povo, mas a vitamina dos oprimidos: a religião como busca de mapas de navegação que nos dão alguma certeza diante da transformação acelerada das relações sociais, das referências cotidianas, da maneira de pensar, dos padrões de emprego, do movimento de capitais que, com a mesma facilidade com que podem tirar da pobreza milhões de pessoas, também podem — e é o que, em geral, acontece — deixá-las na miséria mais espantosa.

A questão da emancipação

Mas o peso do imaginário religioso também pode se dever a outra coisa. A emancipação continua sendo a versão secular da idéia teológica de salvação, pelo menos no sentido de projetos de redenção dos oprimidos neste mundo. Walter Benjamín  falava de uma débil força messiânica como eixo da emancipação, entendendo, por isso, não a espera de um Messias ou a busca de uma recompensa na outra vida, mas, melhor ainda, a necessidade da revolução dos oprimidos. Em seu belo livro Espectros de Marx, Jaques Derrida  reformulou isso, falando da estrutura messiânica ou da messianicidade da ação emancipadora, de uma messianicidade sem Messias, como componente de todo esforço em ir além do meramente possível. Em suma, em um mundo secular necessitamos promessas de algo diferente por vir. Enquanto nós, que desconfiamos de teólogos e sacerdotes, de deuses e de paraísos, formos incapazes de oferecer esquemas mundanos de como as coisas podem melhorar, a lista de quem vai aos templos ou pede que algum deus os salve crentes tende a aumentar.

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