Edição 283 | 24 Novembro 2008

As Ciências Sociais possuem uma metodologia própria?

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Graziela Wolfart

Segundo a professora Nélida Gentile, as idéias de Max Weber representam um antecedente de certas noções correntes na fi losofi a da ciência atual

Quando o assunto é a compreensão dos rumos de nossa sociedade contemporânea, Nélida Gentile considera impossível deixar de mencionar a importância capital da obra de Karl Marx. “Não só por seu valor intrínseco como modelo explicativo do desenvolvimento histórico da sociedade capitalista em particular, mas, além disso, como horizonte de inteligibilidade das contribuições de muitíssimos teóricos contemporâneos que, de uma maneira ou outra, reivindicam, reformulam ou criticam as teses do materialismo histórico.” Para ela, o principal legado da Escola de Frankfurt para as Ciências Sociais “reside precisamente naquele que não se pode alcançar, a saber, construir uma teoria da ciência social ancorada nas investigações empíricas das ciências positivas”. Leia estas e outras idéias na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, na qual ela fala sobre os principais pontos das origens e da história da sociologia e sobre as principais contribuições de Max Weber, Pierre Bourdieu e Anthony Giddens para esta área do conhecimento.

Nélida Gentile é doutora em Filosofia e professora titular das Universidades de Buenos Aires, Nacional de La Plata e Nacional de Luján. É co-autora de Aspectos críticos das Ciências Sociais. Entre a realidade e a metafísica, ao lado de Rodolfo Gaeta e Susana Lucero (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008).

IHU On-Line - Quais são os principais dilemas da filosofia das Ciências Sociais?

Nélida Gentile - Nas recentes discussões filosóficas em torno das Ciências Sociais, se destacam duas importantes questões envolvidas, a principio, com o âmbito metodológico: o debate entre holísticos e individualistas, por um lado, e a problemática do monismo e do pluralismo, por outro. De acordo com os defensores do individualismo metodológico, os eventos e as condições sociais de ampla escala devem ser investigados como agregados ou configurações dos indivíduos que participam deles. Em oposição a esta tese, os holísticos metodológicos advogam em favor da autonomia dos fenômenos sociais e consideram que estes só podem ser estudados no seu nível macroscópico: são os “todos” sociais e não seus elementos humanos os verdadeiros indivíduos históricos. Os monistas metodológicos, por sua vez, afirmam que existe um único método comum a todas as ciências, e esse método é empregado pelas ciências físico-naturais. Em contrapartida, os pluralistas metodológicos consideram que os fenômenos sociais constituem uma realidade sui generis, que não pode ser abordada pelos mesmos métodos da ciência natural, e propõem a compreensão ou a hermenêutica – nas diferentes versões que ela pode adotar – como metodologia específica para a análise da realidade social. Apesar de, em termos gerais, ambas as dicotomias serem apresentadas como perspectivas alternativas acerca da metodologia das disciplinas sociais, uma análise mais detalhada mostra que os argumentos apresentados por cada uma das partes incluem premissas que transcendem o âmbito estritamente metodológico e se entrecruzam com aspectos que desembocam em controvérsias sobre questões ontológicas e semânticas. Na minha opinião, contudo, o contraste entre ambos os pares de teses (holismo/individualismo e monismo/pluralismo) deve se conceber como uma diferença puramente pragmática, desligada de qualquer outro compromisso metafísico ou semântico.

IHU On-Line - Quais são os principais pontos a serem destacados em relação às origens e à história da sociologia?

Nélida Gentile - Um aspecto importante a ressaltar em relação às origens e à história da sociologia é, em meu juízo, a peculiar tendência que têm seguido, em sua evolução, as teorias sociológicas. Independente da filosofia, em seus inícios, a sociologia manifesta nos nomes de Adam Smith, Marx, Durkheim e Weber, por exemplo, a preocupação de investigar os fenômenos sociais relacionada com o tipo de investigação empírica própria de qualquer outra disciplina dentro do âmbito das ciências factuais. Depois de algum período de harmonia conjugal com o restante das ciências, começou uma etapa marcada pelo distanciamento e pela necessidade de ressaltar a autonomia no que diz respeito à ciência natural. A partir de então, a sociologia transitou por um caminho centrado na busca de seus próprios fundamentos que a levou, no meu entender, a retomar um forte compromisso com princípios e suposições abstratas, próximas às especulações próprias da metafísica.
 
IHU On-Line - Quais são as principais contribuições de Max Weber, Pierre Bourdieu e Anthony Giddens para a sociologia?

Nélida Gentile - Os escritos de Max Weber abarcam questões históricas, sociológicas, econômicas e epistemológicas. Do ponto de vista da sociologia, são importantes não apenas seus aportes teóricos como, também, suas contribuições metodológicas. Max Weber conjugou em suas pesquisas o tipo de explicação própria dos estudos históricos – explicação de eventos singulares – com a busca de explicações causais que dão conta do comportamento humano por meio de regularidades que o pesquisador extrai das disciplinas sociais, em particular da sociologia. Contudo, não podemos considerar Weber como um representante típico do monismo metodológico, pois, em sua opinião, as ações humanas devem ser analisadas em termos das atitudes e desejos dos agentes, isto é, a partir da compreensão (Verstehen) do sentido. O significado das ações aflora por meio da construção de certos tipos ideais, conceitos elaborados pelo cientista social, que cumprem a função metodológica de guiar a investigação empírica. Na medida em que os tipos ideais se assemelham às hipóteses e às expectativas que guiam uma investigação, as idéias de Weber representam um antecedente de certas noções correntes na filosofia da ciência atual.

Pierre Bourdieu

Os aportes de Pierre Bourdieu à teoria sociológica – de amplíssimo alcance, a propósito, como marco teórico para a análise da cultura e da sociedade contemporâneas – poderiam se caracterizar em termos de uma atitude crítica frente ao clima intelectual da época: existencialismo versus estruturalismo, objetivismo versus subjetivismo. Na opinião do autor, estas dicotomias representam uma distorção da realidade contra as quais Bourdieu elabora novas categorias de análise que tentam superar o dualismo entre indivíduo e sociedade. Campo de poder, habitus e capital cultural são os conceitos fundamentais sobre os quais edifica sua teoria sociológica e a partir dos quais tenta dar conta dos mecanismos de poder que estão por detrás das diferentes atividades da vida cotidiana.

Anthony Giddens

Nesta tentativa de superar os falsos dualismos aparecem, também, as contribuições sociológicas de Anthony Giddens. Giddens examina criticamente os aportes tanto dos clássicos da sociologia –  Marx, Weber, Durkheim, Simmel,  Parsons – como de autores contemporâneos – Habermas, Foucault, Althusser, Marcuse  – e elabora sua proposta sociológica alternativa, “a teoria da estruturação”, que complementa com um programa político de renovação da social-democracia. Quanto às suas considerações teórico-metodológicas, rejeita a antinomia levantada pela contraposição entre a estrutura e a ação dos indivíduos e redefine a relação em termos de dualidade de estrutura. Além disso, cunha o conceito de dupla hermenêutica para caracterizar a metodologia própria das Ciências Sociais: por um lado, encontra-se um marco de sentido próprio do mundo social tal como é construído pelos atores nas práticas cotidianas e, por outro, encontram-se as interpretações que os atores sociais elaboram a partir dessas práticas. Deste modo, Giddens enfrenta as concepções monistas em favor de uma doutrina decididamente pluralista. É também no contexto de superação das dicotomias que se localiza sua proposta política da “terceira via”, uma posição intermediária entre o capitalismo e o socialismo tradicional. Na opinião de Giddens, a terceira via procura a harmonização das políticas sociais-democratas com o novo mundo da globalização e a economia da informação. Talvez seja o caráter eclético da doutrina de Giddens – que combina e colore aspectos de posições muito diversas, tais como a fenomenologia, a teoria crítica, o compreensivismo e a filosofia da linguagem – o que ocultou a ausência de algum tipo de questionamento ao sistema de globalização próprio da sociedade contemporânea e permitiu, portanto, a difusão de suas idéias em muitos âmbitos acadêmicos de cientistas sociais relutantes em aceitar qualquer proposta que legitime as bases dos sistemas capitalistas.

IHU On-Line - Que outros grandes nomes da sociologia e quais obras são importantes para compreendermos os rumos de nossas sociedades contemporâneas?

Nélida Gentile - Naturalmente, não é possível realizar uma enumeração exaustiva dos valiosos aportes realizados por muitos outros teóricos da sociologia e das Ciências Sociais em geral, assim como das inumeráveis obras que possuem alguma relevância para a compreensão da sociedade contemporânea. Contudo, parece-me impossível deixar de mencionar a importância capital da obra de Karl Marx. Não só por seu valor intrínseco como modelo explicativo do desenvolvimento histórico da sociedade capitalista em particular, mas, além disso, como horizonte de inteligibilidade das contribuições de muitíssimos teóricos contemporâneos que, de uma maneira ou outra, reivindicam, reformulam ou criticam as teses do materialismo histórico.

IHU On-Line - Qual o principal legado da Escola de Frankfurt para as Ciências Sociais?

Nélida Gentile - O desenvolvimento teórico da Escola de Frankfurt leva a distinguir três etapas: um momento inicial marcado pela criação do Instituto para a Investigação Social, em 1923, tendente à elaboração de uma teoria construtiva para a análise da sociedade; um segundo momento, caracterizado por uma atitude crítica com relação às teses de Marx; e um período final, cristalizado na figura de Jürgen Habermas, discípulo de Adorno. O projeto original do Instituto para a Investigação Social, sob a direção de Carl Grünberg,  tendeu ao desenvolvimento de um programa de investigação interdisciplinar orientado em três direções: a) a integração teórica das investigações sociais com a teoria marxista (Horkheimer,  Herbert Marcuse e Friedrich Pollock) ; b) a fusão do materialismo histórico e a psicanálise (Erich Fromm); e c) a análise dos mecanismos da cultura de massa (Leo Löwenthal e Theodor Adorno).

A segunda etapa se vê projetada na convicção de que não era possível alcançar um progresso fundado na concepção marxista da história. O auge dos sistemas totalitários e o desenvolvimento da cultura de massas criaram nos membros da Escola um sentimento desesperançado, uma atitude negativa, que se traduziu em um questionamento já não da sociedade, mas da própria razão. O terceiro período na evolução da Escola de Frankfurt toma a filosofia negativa desenvolvida no estágio anterior como o ponto de partida para a restauração do projeto original. As investigações de Habermas ampliam o horizonte teórico da escola crítica com o aporte de outras áreas do conhecimento, como a filosofia analítica, a análise lingüística, o estruturalismo e a hermenêutica. Qual é, então, o legado da Escola de Frankfurt para as Ciências Sociais? O principal legado, entendo eu, reside precisamente naquele que não se pode alcançar, a saber, construir uma teoria da ciência social ancorada nas investigações empíricas das ciências positivas.

IHU On-Line - Quais os princípios da antropologia estrutural? Qual é a contribuição da teoria estruturalista para as Ciências Sociais?

Nélida Gentile - Os princípios fundamentais da antropologia estrutural, impulsionada por Lévi-Strauss a partir dos estudos em lingüística estrutural, preconizados por Ferdinand de Saussure, podem sintetizar-se nos seguintes pontos:

a) O importante não é o conjunto de elementos que se apresentam na observação direta das sociedades investigadas, mas, pelo contrário, a estrutura de relações que conformam a estrutura subjacente da vida social. Os elementos não existem fora da estrutura de relações sociais.

b) O sistema de relações subjacente tem um caráter geral e inconsciente.

c) Por detrás das aparentes diferenças entre sociedades espacial e temporalmente distantes, encontra-se uma estrutura comum, uma organização subjacente homóloga.

d) As diferenças manifestas entre as sociedades não são mais do que transformações operadas nas estruturas compartilhadas.

A questão em torno da contribuição da teoria estruturalista para as Ciências Sociais nos leva a analisar algumas questões. Qual é o alcance da afirmação de que existem leis ou estruturas universais subjacentes à aparente diversidade das manifestações culturais? Se se trata simplesmente de um procedimento metodológico, cabe notar que é perfeitamente compatível com o monismo metodológico. É já clássica a posição de Ernest Nagel contra aqueles que sustentam a impossibilidade de formular leis gerais em virtude do caráter histórico e culturalmente determinado dos fenômenos sociais. As Ciências Sociais devem, na opinião do autor, tender à busca de leis transculturais que não fazem referência a nenhuma manifestação cultural particular de uma determinada sociedade. Os estruturalistas, no entanto, parecem significar algo mais do que uma mera indicação metodológica. Parecem crer, e não como uma mera metáfora, que os sistemas sociais se comportam como sistemas lingüísticos, e que as totalidades sociais têm uma prioridade ontológica sobre a existência dos indivíduos. Se isso é assim, a natureza das discussões está mais próxima das especulações metafísicas que das legítimas questões científicas, tal como ressaltei ao responder a primeira das perguntas formuladas.

IHU On-Line - Como a hermenêutica de Gadamer pode contribuir aos rumos atuais das Ciências Sociais?

Nélida Gentile - A resposta à pergunta depende de uma questão prévia, a saber, se existe (ou não) uma metodologia própria das Ciências Sociais, diferente dos procedimentos aplicados nas ciências naturais. Em outras palavras, se se adota o pluralismo como uma posição essencial no âmbito das Ciências Sociais, então a hermenêutica marcaria, a princípio, uma diferença substantiva com conseqüências indicativas para o cenário atual da investigação social. No entanto, sem negar que existe uma diferença entre as ações humanas – ações intencionais tendentes a um fim – e os fenômenos físicos, sem deixar de admitir a importância de indagar qual é o sentido das ações de um agente, considero que isso não estabelece singularidade alguma à investigação social. No campo das disciplinas sociais, exatamente como no das naturais, é possível formular hipóteses interpretativas e submetê-las ao contraste.

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