Edição 282 | 17 Novembro 2008

Racionalidade cínica, raiz da anomia social

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Márcia Junges

Vladimir Safatle localiza em Hegel a equiparação de racionalidade com normatividade, desembocando em uma interversão da racionalidade em cinismo. Estabilização na decomposição, ou anomia social, é seu corolário. Convidado a discutir as idéias de sua recente obra Cinismo e falência da crítica (São Paulo: Boitempo, 2008), ele rebateu as acusações de niilismo que vem recebendo.

“Poderia dizer que desde Hegel sabemos que, a partir do momento em que racionalidade foi confundida com normatividade, as portas estavam abertas para esta interversão de racionalidade em cinismo”, esclarece o filósofo Vladimir Safatle, na entrevista exclusiva, a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Convidado a discutir as idéias de sua recente obra Cinismo e falência da crítica (São Paulo: Boitempo, 2008), ele rebateu as acusações de niilismo que vem recebendo. Para ele, niilismo “não é uma análise, mas simplesmente uma injúria, um termo impreciso que utilizamos quando se é questão de tentar desqualificar o oponente”. Em sua opinião, encontramo-nos “em uma situação muito peculiar de anomia, já que não se trata aqui de ausência de estruturas normativas, mas de indeterminação em nossos modos de aplicação daquilo que parecia fundamentar a racionalidade de nossas formas de vida”.

Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Comunicação Social, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, Safatle é mestre em Filosofia, pela Universidade de São Paulo (USP), e doutor em Lieux et transformations de la philosophie, pela Université de Paris VIII, com a tese La passion du négatif: modes de subjectivation et dialectique dans la clinique lacanienne. Professor da USP, atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na Filosofia do século XX e Filosofia da Música. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. É autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo: Unesp, 2006) e Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007) e um dos organizadores de A filosofia após Freud (São Paulo: Humanitas, 2008).

IHU On-Line - Quais são as raízes da racionalidade cínica à qual você se refere em Cinismo e falência da crítica?

Vladimir Safatle - Há duas formas de responder sua pergunta, mas a resposta correta é uma certa articulação cruzada entre estas duas formas. Primeiro, poderíamos dizer que a interversão da racionalidade em cinismo é resultado de uma certa desagregação da substância normativa das sociedades ocidentais. Isto acabou por generalizar uma situação onde critérios normativos intersubjetivamente partilhados continuam vigorando, mas sem poder garantir um campo seguro e não problemático de determinação. Desta forma, todos podem estar de acordo sobre quais os critérios e valores que devem vigorar em nossas sociedades ocidentais, No entanto, tais critérios e valores podem justificar situações contraditórias entre si. O que significa que entramos assim em uma situação muito peculiar de anomia, já que não se trata aqui de ausência de estruturas normativas, mas de indeterminação em nossos modos de aplicação daquilo que parecia fundamentar a racionalidade de nossas formas de vida.

Aqui entra um segundo aspecto. Poderia dizer que desde Hegel  sabemos que, a partir do momento em que racionalidade foi confundida com normatividade, as portas estavam abertas para esta interversão de racionalidade em cinismo. Por isto, meu livro começa com um comentário do que estava realmente em jogo na leitura hegeliana deste documento fundador das discussões a respeito da razão cínica, a saber, O sobrinho de Rameau, de Diderot.

Mas o que significa dizer que devemos evitar confundir racionalidade com normatividade? Quando nos perguntamos sobre o que fundamenta uma ação correta, dizemos que a ação correta é aquela que permite a realização de valores socialmente partilhados que se realizam necessariamente como norma. Assim, a ação justa é aquela que realiza a justiça como valor, enquanto a ação autônoma é aquela que realiza a autonomia como valor, e a ação democrática, aquela que realiza a democracia como valor. Isto parece trivial, mas não é. Pois trata-se de afirmar que o julgamento é uma comparação entre valores e casos particulares, entre normas e ações.

Neste sentido, diria que o cinismo nos mostra como a partilha de valores e a fundamentação de normas não podem fundamentar nossas ações. Pois posso, sem contradição (este é um ponto importante), enunciar valores de tolerância e agir de maneira intolerante, enunciar valores de democracia e agir de maneira totalitária. No fundo, o fenômeno do cinismo nos lembra que a partilha de valores e normas não serve para julgar a ação.

Insisto nestes dois pontos para mostrar como a análise de um fenômeno como a racionalidade cínica exige uma articulação profunda entre crítica da razão e crítica social. Tal articulação é nossa tarefa mais urgente.

IHU On-Line - Essa racionalidade cínica é a essência da racionalidade pós-moderna? Até que ponto ela é um corolário das sociedades capitalistas e as retroalimenta?

Vladimir Safatle - Como demonstrou Max Weber,  o capitalismo não é apenas um sistema de trocas econômicas, mas uma forma de vida que exige um ethos, um padrão de conduta social que acaba, inclusive, por moldar nossas formas de relação a nós mesmos. Se aceitarmos isto, devemos nos perguntar sobre qual o tipo de racionalidade que a etapa atual do capitalismo exige.

Esta é uma discussão muito marcada por estudos sobre o “novo espírito do capitalismo”, como os desenvolvidos por Luc Boltanski  e Eve Chiapello,  assim como por um certo enquadramento sócio-histórico de certas teorias psicanalíticas sobre socialização. Grosso modo, diria que a antecâmara da ética protestante do trabalho ascético weberiano, com sua exigência de afastamento do gozo dos bens que acumulo, foi fornecida por Freud  e sua teoria do supereu repressor que marca toda exigência de gozo com o selo da culpabilização.

No entanto, como este modo de trabalho modificou-se, como a vocação identitária e restritiva a funções específicas deu lugar à flexibilização, à maleabilidade, ao risco (suma aventura da nossa época) e à capacidade de romper regras (herança das utopias de 1968 que o mundo do trabalho soube absorver), então deveríamos nos perguntar sobre que tipo de racionalidade é esta para a qual a flexibilidade e a indeterminação são dispositivos fundamentais. No meu livro, tentei demonstrar como ela estava profundamente vinculada ao que devemos compreender por “racionalidade cínica”.

IHU On-Line - A que se deve a “estabilização na decomposição” à qual você se refere em sua obra?

Vladimir Safatle - Ela é a descrição deste processo no qual a desagregação normativa, longe de aparecer simplesmente como fonte de angústia e ansiedade, aparece como situação na qual uma certa racionalidade cínica pode operar constituindo formas de vidas que se desenvolvem em situação de anomia social.

IHU On-Line - Podemos falar nessa estabilização na decomposição como uma espécie de niilismo passivo, nos modelos propostos por Nietzsche?

Vladimir Safatle - Esta é uma pergunta interessante porque fui acusado, mais de uma vez, de niilismo por expor uma desconfiança profunda em relação a discursos edificantes que procuram legitimar seus modos de avaliação através do recurso a valores intersubjetivamente partilhados. Pareceu que esta crítica irrestrita a valores seria profissão de fé niilista. No entanto, insistiria que “niilismo” não é uma análise, mas simplesmente uma injúria, um termo impreciso que utilizamos quando se é questão de tentar desqualificar o oponente. Neste sentido, eu diria que sempre se é o niilista de alguém. O niilista é sempre o outro, aquele que não posso reconhecer por colocar em questão a universalidade do meu próprio sistema de avaliação. Por isto, não creio que devemos utilizar o termo em circunstância alguma.

Voltando à sua pergunta, diria que o cinismo nos mostra não exatamente uma posição niilista (já que tenho dificuldades em entender o que afinal isto possa ser), mas uma forma muito peculiar de gozo por situações de anomia e de indeterminação. Insistiria em deslocar o problema para esta esfera onde os modos de satisfação subjetiva aparecem, pois acredito que há uma economia libidinal complexa suportando o cinismo como posição social. Tentei descrevê-la em um capítulo do meu livro intitulado “Para uma crítica da economia libidinal”.  Creio que há ainda muito a ser desenvolvido a respeito deste ponto.

IHU On-Line - Restaurar o trágico em nossas vidas seria uma forma de suplantar essa racionalidade cínica?

Vladimir Safatle - A experiência da tragédia sempre esteve ligada à consciência do caráter instaurador do conflito e da contradição. No campo da estética, há uma forma trágica, pensada como forma habitada pelo conflito entre exigências de expressão e capacidades formais de construção. Neste sentido, a forma trágica é aquela que manifesta a necessidade de sua própria superação, mesmo que ela indique a inadequação dos meios disponíveis para isto. Este ponto certamente deve ser absorvido por todos os que julgam tarefa maior procurar suplantar a hegemonia de uma certa racionalidade cínica. O problema é que temos cada vez mais medo de assumir a superação como tarefa.

Leia mais...

>> Vladimir Safatle já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Ela está disponível na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.

* Totalitarismos: uma reflexão político-social e libidinal. Edição n 265, Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie, de 21-07-2008.

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