Edição 282 | 17 Novembro 2008

Uma análise sobre o poema “O naufrágio do Deutschland”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Anibal Gil Lopes

O poema “O naufrágio do Deutschland” costuma ser visto como o principal poema de Hopkins, pela sua inovação musical e por seu trabalho sofisticado com o verso. Segundo Augusto de Campos, “trata-se, na verdade, de uma extraordinária composição, um compêndio de todas as técnicas do poeta, e a mais completa exposição do seu visionarismo místico”. O médico e padre Aníbal Gil Lopes, que concedeu também entrevista a esta edição da IHU On-Line, avalia algumas das características deste longo poema, no que se refere, sobretudo, aos símbolos religiosos que apresenta.

Comecemos falando sobre a origem de “The wreck of the Deutschland” (“O naufrágio do Deutschland”). Foi só em dezembro de 1875, após ter concluído dois anos de noviciado jesuíta, seguidos de três anos dos estudos de filosofia, um ano como professor de retórica, e estar cursando o segundo ano de teologia, realizado em St. Bueno’s, no País de Gales, que Hopkins, a convite de seu superior, retoma a poesia. O evento deflagrador foi o naufrágio, nas costas da Inglaterra, do vapor Deutschland, da North German Lloyd Co. Como noticiam os jornais da época, às cinco horas da manhã da segunda-feira, dia 6 de dezembro de 1875, durante uma tempestade de neve que impedia totalmente a visibilidade, o navio encalhou num banco de areia em Kentish Knock, na foz do rio Tamisa, a 25 milhas de Harwic, cidade costeira localizada na foz dos rios Stour e Orwell, no nordeste da Essex, Inglaterra, onde se encontra um movimentado porto internacional, importante ao longo dos séculos. Durante todo o dia, a tripulação tentou em vão chamar por socorro, sendo que no entardecer os vigias do farol existente no estuário viram a luz dos foguetes e sinalizaram o acidente para o porto. Todavia, devido ao estado agitado do mar e por não terem embarcação apropriada, não houve tentativa de salvamento. Durante a noite, sob a ação das ondas arremetidas violentamente contra o navio parcialmente submergido, morreram cerca de 60 pessoas. Às dez horas da manhã do dia seguinte, o rebocador Liverpool removeu cerca de 150 sobreviventes. Foi através das descrições amplamente noticiadas pela imprensa da época que Hopkins tomou conhecimento dos detalhes da tragédia. O jornal The Times do dia 10 de dezembro relata que houve 135 pessoas salvas e 78 perdidas. No dia 15, novamente se noticia o acidente e o relato é de que foram salvos 48 homens, 21 mulheres e crianças e 86 tripulantes, sendo que haviam desaparecido 40 passageiros e 20 tripulantes. Na edição do dia 18 de dezembro do The Illustrated London News, por sua vez, são apresentados os mesmos números, salva a indicação de terem se afogado 44 passageiros, o que corresponde a um total de 64 mortos.

As conseqüências dolorosas do Kulturkampf

Entre os passageiros se encontravam cinco freiras franciscanas que se dirigiam ao Canadá em virtude de terem sido exiladas da Alemanha em conseqüência das leis discriminatórias impostas contra os católicos na ocasião. Com o objetivo de consolidar a unidade alemã, Otto von Bismarck (1815-1898), chanceler da Alemanha entre 1871 e 1890, havia obtido o apoio dos liberais nacionalistas contra os católicos, considerados adversários dessa unidade. Através das sanções introduzidas no Código Penal pelo Kanzelparagraf (Lei do Púlpito) em 10 de dezembro de 1871, e vários outros aditamentos, como a lei contra os jesuítas (Jesuitengesetz), de 4 de julho de 1872, diversas ordens religiosas foram banidas do Império Alemão, suas propriedades confiscadas e bispos católicos foram presos. Várias sanções contra os católicos foram estabelecidas, como as relativas ao exercício de Funções Públicas. Essas sanções só foram removidas do Código Penal Alemão pela Lei de Alteração de 4 de Agosto 1953. Para caracterizar a política de Bismarck contra a Igreja Católica, o renomado patologista Rudolf Virchow, membro do Deutsche Fortschrittspartei (Partido Progressista Alemão), cunhou o termo Kulturkampf, usado pela primeira vez em 17 de janeiro de 1873 no parlamento prussiano. As conseqüências dolorosas do Kulturkampf eram do conhecimento de Hopkins, que havia conhecido muitos seminaristas jesuítas expulsos da Alemanha que viviam exilados perto de Widnes, Cheshire. É neste contexto que ocorreu o banimento das cinco freiras que morreram no naufrágio do Deutschland.

O pedido para se escrever “O naufrágio do Deutschland”

Na edição do dia 13 de dezembro do The Times, é relatado que a superiora das franciscanas clamava: “My God, my God, make haste, make haste” (“Meu Deus, meu Deus, vinde depressa, vinde depressa”) e, segundo descrição apresentada na edição do dia 11 de dezembro do mesmo jornal, ela também clamaria: “O Christ, come quickly! (“Ó Cristo, venha depressa!”). No poema de Hopkins esses clamores se fazem presentes.

Como declara Hopkins em seu Diário, o acidente o impressionou “more than any other wreck or accident I had ever read of” (“Mais do que qualquer outro naufrágio ou acidente que já tinha lido a respeito”). Conversando com Hopkins, o Pe. James Jones, Reitor de St. Buenos, disse-lhe que desejava que alguém escrevesse um poema que tratasse dos aspectos religiosos referentes às irmãs exiladas. Escreveu Hopkins em seu diário: “On this hint, I set to work and, though my hand was out at first, produced one. I had long had haunting my ear the echo of a new rhythm which now I realized on paper” (“Com esta dica, fui ao trabalho e, embora a minha mão estivesse enferrujada, produzi um poema. Há muito vinha assombrando meu ouvido o eco de um novo ritmo que agora eu realizei no papel”).

A questão da dupla natureza do Verbo de Deus

Hopkins emprega na elaboração do “The wreck of the Deutschland” a maior parte dos conceitos poéticos sobre os quais vinha trabalhando teoricamente, o que certamente tornou-o excessivamente radical para ser aceito e compreendido na época. Com o objetivo de exemplificar tanto os conceitos religiosos utilizados como o estilo característico da obra, voltemos nossa atenção à Stanza 34 do “The wreck of the Deutschland”, em que Hopkins aborda a questão da dupla natureza do Verbo de Deus, a encarnação do “mid-numbered” (do meio) da Santíssima Trindade: Cristo, o Filho.

34. Now burn, new born to the world, / Double-naturèd name, / The heaven-flung, heart-fleshed, maiden-furled / Miracle-in-Mary-of-flame, / Mid-numberèd He in three of the thunder-throne! / Not a dooms-day dazzle in his coming nor dark as he came; / Kind, but royally reclaiming his own; / A released shower, let flash to the shire, not a lightning of fire hard-hurled.

Essa Stanza foi vertida ao português por Aíla Gomes com beleza e delicadeza associadas a uma perfeição técnica brilhante, como podemos ver:

34. Arde, pois, recém-nato para o mundo, / Nome de dupla valia / Do céu-atirado, coração-de-carne, na / virgem-envolvido, / Milagre-de-chama-em-Maria; / Contado no centro dos três, no trono do trovão! / Não veio em juízo-final, tenebroso, ofuscante; / Veio bondoso, mas imperial, reclamando o que era seu; / Que nos condados baixe uma chuva cintilante, nenhum raio / fulminante no céu.

Associação entre os sons das palavras e o significado que enunciam

Observemos inicialmente a associação entre os sons das palavras e o significado que enunciam, reflexo da teoria onomatopoética, apresentada em diferentes obras da época de Hopkins, como no Essay on the Origin of language (Ensaio sobre a origem da linguagem) de Frederic Farrar, publicado em 1860. Interessante título, que facilmente nos remete à obra mais relevante de Charles Darwin, The origin of species (A origem das espécies), e ao cientificismo.

No diário de Hopkins referente aos anos de 1862-1863, encontramos uma longa lista de sons similares acompanhada de descrições detalhadas de suas raízes etimológicas e suas associações, tais como “grind”, “gride”, “gird”, “grit”, “groat”, “grate”, “greet”; “crook”, “crank”, “kranke”, “Crick”, “cranky”; “flick”, “fillip”, “flip”, “fleck”, “flake”.
 
Formação em línguas clássicas

Sua formação em línguas clássicas certamente lhe dava a base necessária do grego e do latim para estabelecer relações etimológicas. Por outro lado, transparece uma abordagem semelhante à utilizada em várias circunstâncias por Santo Isidoro de Sevilha nas Etimologias, onde estabelece a derivação etimológica a partir de associações simbólicas entre palavras sonoramente semelhantes. Na Stanza que estamos analisando, seria plausível compreender, por exemplo, que a idéia central utilizada por Hopkins deriva da associação entre as palavras “son”, “sun”, “nun” e “burn”, que facilmente permitiria interpretar que o “double-natured name”, Cristo, o Filho de Deus (“son”), a Luz do mundo (“Sun”), que renasce na freira (“nun”) e nela se manifestaria como o sol da manhã nas trevas da noite (“burn”). Assim suplica Hopkins: “Now burn, new born to the world” (“Arde, pois, recém-nato para o mundo”), ou seja, Cristo, o recém-nascido, arde como o sol da manhã. Cabe lembrar que a imagem do “Cristo, sol da manhã” é utilizada em um dos hinos do ofício da manhã da liturgia católica, rezado todos os dias por Hopkins. Mais ainda, vale a pena comparar a Stanza 34 com o início do Evangelho narrado por João (King James version) para nos apercebermos que o “double-natured name” (“Nome de dupla valia”), o “sun/son” (“sol/filho”) se refere à Palavra de Deus, a Luz do Mundo, ou seja, Cristo Jesus, o Filho de Deus:

“In the beginning was the Word, and the Word was with God, and the Word was God. The same was in the beginning with God. All things were made by him: and without him was made nothing that was made. In him was life, and the life was the light of men. And the light shineth in darkness, and the darkness did not comprehend it” (John 1:1-5). [“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus. Ela existia, no princípio, junto de Deus. Tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito de tudo o que existe. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam” (João 1: 1-5).]

A dupla natureza da vida de Cristo

No Credo do Concílio de Nicéia, utilizado pela Igreja Católica, o nome de Cristo está intimamente associado à descrição do nascimento de Cristo com a dupla natureza de Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem. Tomando o texto em português:

“Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, e se fez homem”.

Na liturgia católica, essa passagem é acompanhada de uma inclinação, sinal do profundo respeito ao Mistério da Encarnação, ou seja, o Filho de Deus que se faz homem no seio de Maria. Hopkins o descreve como “The heaven-flung, heart-fleshed, maiden-furled” (“Do céu-atirado, coração-de-carne, na virgem-envolvido”), e a figura de Maria como o “Miracle-in-Mary-of-flame” (“Milagre-de-chama-em-Maria”) — paráfrase do texto do livro do Apocalipse 12:1 que descreve a “woman clothed with the sun, and the moon under her feet, and on her head a crown of twelve stars” (“uma mulher vestida com o sol, tendo a lua sob seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre sua cabeça”).

Também podemos considerar a dupla natureza da vida de Cristo, na qual paixão e morte são razões e conseqüências de sua encarnação, como declara o credo de Nicéia: “Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus”. Assim como o Sol se põe, dando ocasião para a noite, que é superada na aurora com o seu retorno, Cristo Ressuscitado, após o tempo das trevas, irá retornar no final dos tempos, quando a própria morte será superada. A segunda vinda de Cristo é descrita por João no Livro das revelações (19: 11-13): “Vi então o céu aberto, e apareceu um cavalo branco. Aquele que o montava chama-se ‘Fiel e Verdadeiro’. Ele julga e combate com justiça. Seus olhos são como chama de fogo. Na sua cabeça há muitos diademas. Ele traz um nome que ninguém conhece, a não ser ele mesmo. Está vestido com um manto embebido de sangue. Ele é chamado pelo nome de ‘Palavra de Deus’”.

A segunda vinda de Jesus

Hopkins suplica que a segunda vinda de Jesus “to the Shire” (“shire”, terreno especialmente favorecido pela chuva, tomado como sinônimo da Inglaterra) não ocorra no “dooms-day dazzle” (“dia ofuscante do julgamento”, como no terror do Juízo Final) nem no “dark as he came” (como na tenebrosa obscuridade de sua primeira vinda), mas como a liberação da graça, da Divina Bondade, da Divina Ternura. A expressão “dooms-day dazzle” recorda as imagens descritas na profecia do profeta Sofonias 1: 15-16: “Aquele dia será um dia de cólera, dia de angústia e aflição, dia de devastação e ruína, dia de trevas e escuridão, dia nublado e tenebroso, dia de trombeta e gritos de guerra contra as cidadelas fortificadas e torres da muralha”. Baseado neste texto, Tomás de Celano compôs, no século XIII, o Hino intitulado Dies irae, usualmente recitado nas celebrações dos fiéis defuntos, que inicia afirmando: “Dies irae, dies illa, solvet sæclum in favilla” (“Dia da Ira, aquele dia, em que os séculos se desfarão em cinzas”).

Dia do Juízo

No Dia do Juízo, Cristo reaparecerá em seu “thunder-throne” (“Trono do trovão”), revestido de majestade e glória, e como o sol que com sua luz conquista as trevas em cada manhã, estará “royally reclaiming his own” (“imperial, reclamando o que era seu”). Mais uma vez Cristo estará revelando sua dupla natureza, pois, sendo verdadeiro homem e verdadeiro Deus, pela paixão, morte e ressurreição, realiza o mistério da salvação e, como Salvador, é Juiz. De acordo com o Credo de Nicéia: “E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e Seu reino não terá fim”.

Enfim, atentemos para a última linha da Stanza 34, que representa uma das principais chaves de leitura do poema: “A released shower, let flash to the shire, not a lightning of fire hard-hurled” (“Que nos condados baixe uma chuva cintilante, nenhum raio fulminante no céu”). Paralelamente, recordemos o trecho do Evangelho narrado em Mateus 5: 45, onde Jesus afirma que “vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos”. Tudo leva a crer que aos efeitos benéficos da chuva Hopkins associa o desejo (pedido ou súplica de sua oração) de que Cristo possa dar a vida nova que suas águas proporcionam à terra, à Inglaterra, sem que venham os raios fulminantes do julgamento de sua segunda vinda, ou seja, que o Catolicismo possa dar essa vida nova à sua pátria a tempo. Que Cristo, agora nascido ao mundo através do testemunho das freiras, possa antecipar a vinda do Filho do Homem como Juiz. Dessa forma, Hopkins apresenta o sentido sobrenatural do desastre, da vida daquelas que, por causa da fé, estavam no Deutschland buscando o novo lugar para anunciar o Cristo, Luz do Mundo e Senhor da Vida. O mistério da encarnação, morte e ressurreição se revelam no martírio das franciscanas.

Obras consultadas:

Conferir o box ao final da entrevista de Anibal Gil Lopes, nesta edição.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição