Edição 281 | 10 Novembro 2008

Mandela – A luta pela liberdade

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André Dick

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o AeroGuion.

Ficha técnica

Título original: Goodbye Bafana
Gênero: Drama
Tempo de duração: 117 minutos
Ano de lançamento (Alemanha / França / Bélgica / África do Sul / Itália / Inglaterra / Luxemburgo): 2007
Direção: Bille August
Elenco: Joseph Fiennes (James Gregory), Dennis Haysbert (Nelson Mandela), Diane Kruger (Gloria Gregory), Shiloh Henderson (Brett Gregory), Patrick Lyster (Major Pieter Jordaan), Faith Ndukwana (Winnie Mandela)
Sinopse: James Gregory (Joseph Fiennes) é um típico branco sul-africano, que enxerga os negros como seres inferiores, assim como a maioria da população branca que vivia na África do Sul sob o apartheid dos anos 60. Ele atua como carcereiro e espião do governo com a missão de repassar informações do grupo de Nelson Mandela (Dennis Haysbert) para o serviço de inteligência. No entanto, ambos criam uma forte amizade.  

Mudança à margem da história

Na semana seguinte em que, nos Estados Unidos, foi eleito o primeiro presidente negro de sua história, Barack Obama, parece ainda mais relevante tomar contato com o filme Mandela – A luta pela liberdade, sobre o grande líder africano que lutou durante quase toda sua vida contra o apartheid. Não só porque o filme, dirigido por Bille August, o mesmo do clássico Pelle – O conquistador e de obras importantes, a exemplo de As melhores intenções e Os miseráveis, tem uma qualidade singular, mas porque a história de luta contra o apartheid, que pregava a separação entre os brancos e negros, merece ser ainda contada com mais atenção. Não é de hoje que temas como esse são apagados por tabus, referentes, sobretudo, à história de negação de direitos fundamentais aos negros. A verdade é que o ser humano é capaz de muitas atrocidades, e o racismo, que surge para distinguir direitos, como se isso tivesse cabimento, é uma das que mais permanecem – e, na mesma proporção, são muitas vezes encobertas, por interesses políticos.

August selecionou com competência um livro de memórias escrito por Bob Graham e James Gregory, intitulado My prisioner, my friend. Gregory (no filme interpretado por Joseph Fiennes) foi carcereiro de Mandela desde os tempos em que o líder estava preso na ilha de Robben e onde recebia as visitas vigiadas de sua esposa. Líder do Congresso Nacional Africano (CNA), Mandela (vivido por Dennis Haysbert) era, então, visto como o maior terrorista do mundo, que, para ter seus direitos atendidos, vistos como ameaçadores à sociedade sul-africana, sobretudo a branca, utilizaria, sem piedade, a violência. É esse carcereiro o condutor da narrativa do filme, um branco da África do Sul que, adotando as linhas do apartheid, acredita que aos negros está reservado um posto inferior nas relações humanas. No entanto, em razão de falar o dialeto xhosa, ele é selecionado para atuar como espião do governo, tendo como objetivo revelar todos os planos que partem do grupo de Mandela. É responsável, também, junto com um companheiro, por detectar o conteúdo político de cartas endereçadas aos prisioneiros, tendo de prestar contas ao Major Pieter Jordaan (Patrick Lyster). Mora com a esposa Gloria (Diane Kruger, em boa atuação), também extremamente racista, apenas interessada no crescimento profissional do marido, independente do trabalho a que ele se dedica, e um casal de filhos, Natasha e Brent, com participação decisiva na história. É, inclusive, a partir do olhar da criança, que começa a transformação de Gregory, ao perceber a violência cometida e ao se lembrar de sua amizade com um garoto negro na infância, quando aprendeu, inclusive, uma determinada luta e recebeu um presente que guarda. Nessa mudança de Gregory, existe, sobretudo, a conclusão de que atitudes como as que o apartheid pregava são patéticas. Nesse caso, o silêncio da filha menor depois de presenciar uma agressão a uma mulher negra com um nenê aponta a direção de quão absurda é a intolerância racial. É exatamente essa filha que faz com que o carcereiro relembre momentos da infância.

O que Bille August consegue contar, em seu filme, com rara observação, é como a mudança não precisa necessariamente partir de uma corrente, visível, social, histórica, mas de uma única pessoa, a do carcereiro. A discrição, nesse caso, é basilar para o entendimento deste filme sobre Mandela. Ou seja, se o espectador espera grandes movimentações e conflitos, com cenas documentadas ou reproduzidas, com uma reprodução do que seria o movimento coordenado por Mandela e o que ele implicava na relação entre Estados Unidos e Rússia, ou sua caracterização como comunista, certamente sairá decepcionado. Se também espera uma visão de Mandela como um líder explosivo e capaz de agregar multidões, pregando um populismo de libertação, também sairá decepcionado. Não há nada de exatamente histórico no retrato dado, ou seja, não estamos diante de uma figura capaz de levar o espectador ao ápice da descoberta de valores, como se fosse um líder didático. Desse modo, o diretor empresta a Mandela um silêncio singular, sobretudo quando muitas vezes dá as costas ao carcereiro quando está preso numa cela ou na solitária. Ou mesmo quando entrega uma notícia de jornal sobre a prisão da mulher ao carcereiro, afirmando que não poderia, por lei, ter direito a nenhuma notícia externa. Esse distanciamento que Mandela se impõe dá o tom geral de sua personificação na narrativa. O que interessa a August é mostrar a subjetividade da história, o que se passa em lugares em que a História não está sendo acontecendo de forma explícita.

A história subterrânea

Uma das cenas mais emocionantes do filme é certamente aquela em que Gregory, já tendo uma maior amizade com Mandela, resolve ler a “Carta da Liberdade” – vista pelos brancos como um manifesto comunista –, que pedia pela equiparação de direitos entre negros e brancos. A cena é filmada numa biblioteca escura. Como no filme todo, há uma predileção justamente pela tomada de decisão do personagem de maneira escondida, mas ainda assim histórica. É o que está à margem, para August, que justamente interessa, pois ela abre espaço também para a transformação, por mais ínfima que possa ser. Tanto que, em determinado momento, o personagem afirma que não deseja a rotina, mas fazer parte de uma mudança, mesmo que não tenha um papel relevante sobre ela. A própria postura de Mandela na prisão pende para o silêncio, mas não exatamente para a amargura – o que descosturaria o personagem. A noção de distância que Mandela impõe a Gregory e aos próprios companheiros – sem combatividade física ou verbal – acaba fazendo com que o personagem siga um rumo que possivelmente o espectador não espera.

Há, certamente, alguns problemas no processo narrativo de August. Em primeiro lugar, não existe uma maior relação entre os personagens principais, não pelo menos no que a metragem do filme permitiria. Do mesmo modo, as mulheres dos personagens centrais, Winnie Mandela (Faith Ndukwana) e Gloria Gregory (Diane Kruger), apesar das boas atuações, não têm a participação efetiva que poderiam. Outro detalhe: apesar da bela fotografia de Robert Fraisse, por muitas vezes os planos acabam dando a impressão de que a ação poderia ser melhor empregada, lembrando um telefilme. Isso porque Bille August, como cineasta, tem talento para fazer um trabalho mais apurado de montagem e movimentação da câmera, o que já provou em outros momentos.

Os atores que interpretam os personagens principais, por sua vez, estão muito bem. Se Joseph Fiennes é um ator limitado (Shakespeare apaixonado mostrava bem isso), ele converte a perda de certa dramaticidade com uma atuação extremamente contida e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, explosiva. Ele consegue apontar diferentes tons para seu personagem – há uma transformação muito bem conduzida quando ele está com a família, em casa, e quando está na prisão, precisando agir como punidor. Serve de contraponto para o ator Dennis Haysbert, que interpreta Mandela igualmente contido, mas com finalidade, pois August não quer liberar o personagem para um espaço em que o perderia, que seria do retórico, do discursivo, do revolucionário. Haysbert é um dos melhores atores surgidos recentemente no cinema de Hollywood, e prova da sua competência é o papel que desempenhou em Longe do paraíso, o de um jardineiro que se envolve com uma mulher branca (interpretada por Julianne Moore), o que causa um escândalo na sociedade conservadora dos Estados Unidos dos anos 1950 – a mesma que elegeu na semana passada Barack Obama. Ambos os personagens – Mandela e Gregory – parecem, ao longo do filme, atribuir ao movimento da infância a tentativa de mudança, pois a perda que cada um acaba sofrendo mostra que há algo além dessa perda – o regresso à infância. Essa imagem é bem construída sobretudo na última cena em que os personagens se encontram: não há mais espaço para a infância, mas sim para o sonho que ela proporciona de algum dia haver uma transformação.

Se a palavra “revolução” cabe no filme sobre Mandela, seria muito mais ligada a uma discrição – por isso tão importante. Em contraponto com a explosão, neste ano, das eleições americanas, o filme sobre o líder africano parece lembrar que, mais do que o movimento universal pela mudança, é o sonho e a descoberta particular que move qualquer transformação. E que a transformação se dá sempre não só pela figura histórica, em primeiro plano, mas pelos que a cercam e sonham com o mesmo que esta figura – que pode ser entendida não apenas como catalisadora de sentimentos alheios, mas também como o cumprimento e o símbolo de que não há espaço para divisões absurdas.

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