Edição 281 | 10 Novembro 2008

Inclusão excludente

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Márcia Junges e Patricia Fachin

Todos têm direito à educação e trabalho, mas o ensino brasileiro ainda é disponibilizado de forma diferenciada, seguindo parâmetros de classe, o que interfere diretamente na carreira profi ssional

“A inclusão excludente” é a lógica que rege as relações entre trabalho e educação, aponta a pesquisadora Acacia Zeneida Kuenzer, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ela explica que nas sociedades capitalistas, ao contrário do que indica o discurso pedagógico dominante, a dualidade estrutural existente entre ambas as áreas está se aprofundando cada vez mais. Isso ocorre “a partir da relação que se estabelece entre o mercado, que exclui a força de trabalho formal para incluí-la de novo através de diferentes formas de uso precário ao longo das cadeias produtivas, e um sistema de educação e formação profissional, que inclui para excluir ao longo do processo, seja pela expulsão ou pela precarização dos processos pedagógicos que conduzem a uma certificação desqualificada”, argumenta.

Professora aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Acacia Zeneida Kuenzer é doutora em Educaçã, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e atua no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. Ela é autora, entre outros, dos seguintes livros Pedagogia da fábrica (São Paulo: Cortez, 1985), Diagnóstico da formação profissional (São Paulo: Artechip Editora, 1999) e Ensino médio e profissional: as políticas do Estado neoliberal (4. ed. São Paulo: Cortez, 2007).

IHU On-Line - O que é a pedagogia do trabalho?

Acacia Zeneida Kuenzer - A Pedagogia do Trabalho toma por objeto os estudos das relações pedagógicas que se desenvolvem no âmbito das relações sociais e produtivas, ou seja, nos espaços escolares, de trabalho e sociais. Sua base epistemológica é o materialismo histórico, e suas categorias de análise se constituem a partir do método da economia política, tal como sistematizado por Marx em sua obra.

Suas principais referências são Marx e Gramsci,  que articulam a produção das idéias à materialidade que lhes dá origem. Assim é que infra-estrutura e superestrutura se articulam na concepção de princípio educativo, compreendido como os processos pedagógicos que respondem às necessidades de formação dos trabalhadores materiais e intelectuais demandados por cada fase de desenvolvimento das forças produtivas.

Do ponto de vista epistemológico, concebe o conhecimento como a re-criação, ou seja, a reprodução no pensamento, através da atividade humana, da realidade, das coisas, dos processos, dos fenômenos, em decorrência do que adquirem significado. Esta re-criação da realidade no pensamento é um dos muitos modos de relação entre sujeito e objeto, cuja dimensão mais essencial é a compreensão da realidade enquanto relação humano/social. Ou seja, é conhecer objetos que se integram na relação entre o homem e o mundo, ou entre o homem e a natureza, relação esta que se estabelece graças à atividade prática humana.

Se o homem só conhece aquilo que é objeto de sua atividade, e conhece porque atua praticamente, a produção ou apreensão do conhecimento produzido não pode se resolver teoricamente através do confronto dos diversos pensamentos. Para mostrar sua verdade, o conhecimento tem que adquirir corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática, e transformá-la.

Da concepção de conhecimento que fundamenta a Pedagogia do Trabalho, decorre que os processos pedagógicos devem promover situações de aprendizagem que viabilizem o estabelecimento de relações com a ciência, com a tecnologia e com a cultura de forma ativa, construtiva e criadora, substituindo a certeza pela dúvida, a rigidez pela flexibilidade, a recepção passiva pela atividade permanente na elaboração de novas sínteses que possibilitem a construção de condições de existência cada vez mais democráticas e de qualidade.

IHU On-Line - Como se relacionam as relações de produção e a educação do trabalhador?

Acacia Zeneida Kuenzer - São as relações de produção que geram determinadas relações sociais, que educam o trabalhador para atender às formas de produção da existência, que caracterizam cada modo de produção com seus regimes específicos de acumulação. Esta educação ocorre através de processos amplos e especificamente pedagógicos, que se diferenciam pelo seu grau de sistematização. Assim, no regime de acumulação flexível, tanto as relações sociais quanto as produtivas, mediadas por processos pedagógicos escolares e não-escolares, articulam-se para formar subjetividades flexíveis que atendam às necessidades materiais e não materiais que o constituem. Ou seja, que lidem bem com as novas estratégias de organização e gestão do trabalho e de vida individual e coletiva orgânicos à nova forma acumulação mediante a quebra da estabilidade, a intensificação e a precarização do trabalho, para o que contribuem a fragmentação, a ausência de projeto de futuro, a individualização, a competitividade, o espetáculo.
 
IHU On-Line - Em que sentido se pode falar em uma distribuição desigual do saber?

Acacia Zeneida Kuenzer - Em uma sociedade dividida em classes, os meios de produção, e, em decorrência, o conhecimento, a cultura e o poder são distribuídos desigualmente entre quem detém o capital e os que apenas têm sua força de trabalho para vender. Como afirma Marx em A ideologia alemã, não é por coincidência que os que têm a posse do capital material também acumulam o capital intelectual, uma vez que a eles pertencem os instrumentos para sistematizar o conhecimento socialmente produzido. Assim, a educação é disponibilizada de forma diferenciada segundo a origem de classe; há escolas, modalidades, tempos e espaços de aprender de diferentes qualidades para atender a burguesia e os que vivem do trabalho.

IHU On-Line - Os trabalhadores brasileiros continuam a viver em uma situação de inclusão excludente? Por quê?

Acacia Zeneida Kuenzer - Certamente, uma vez que, dada a relação contraditória entre capital e trabalho, não há possibilidade de inclusão de todos no capitalismo.

Como afirma Oliveira, que faz um estudo rigoroso desta categoria nas obras de Marx, no modo de produção capitalista todas as formas de inclusão são sempre subordinadas, concedidas, porque atendem às demandas do processo de acumulação. Ou, como afirma o autor, “o círculo entre exclusão e inclusão subordinada é condição de possibilidade dos processos e produção e reprodução do capital, sendo constitutivo lógico necessário das sociedades capitalistas modernas. Ou seja, são faces inseparáveis da mesma moeda”. (Oliveira, 2004, p. 23)

A partir desta concepção, nossas pesquisas têm levado à compreensão que a relação entre trabalho e educação no regime de acumulação flexível se expressa através de uma diferente forma de materialização da dualidade estrutural. Neste regime de acumulação, ao contrário do que afirma o discurso pedagógico dominante, a dualidade se aprofunda a partir da relação que se estabelece entre o mercado, que exclui a força de trabalho formal para incluí-la de novo através de diferentes formas de uso precário ao longo das cadeias produtivas, e um sistema de educação e formação profissional, que inclui para excluir ao longo do processo, seja pela expulsão ou pela precarização dos processos pedagógicos que conduzem a uma certificação desqualificada.

A inclusão excludente, portanto, é a lógica que rege as relações entre trabalho e educação no regime de acumulação flexível; neste sentido, poderá ser atenuada por efeito dos enfrentamentos políticos, mas jamais resolvida neste modo de produção, que se constitui a partir da propriedade privada dos meios de produção, início e fim de todas as formas e manifestações de desigualdade.

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