Edição 281 | 10 Novembro 2008

A escola moderna é controladora

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Márcia Junges e Patricia Fachin

A partir das refl exões foucaultianas, Alfredo Veiga-Neto diz que, enquanto a escola disciplinar prepara sujeitos dóceis e obedientes, a escola controladora forma indivíduos fl exíveis e estratégicos

“Com Foucault, podemos compreender, de maneira bastante original e detalhada, os processos ou práticas de disciplinamento e controle que a escola moderna vem, há mais de 200 ou 300 anos, colocando em funcionamento”, aponta Alfredo Veiga-Neto, professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, Foucault, “mais do que ninguém, descreveu e mostrou o quanto, na modernidade, as escolas funcionam como as prisões, os hospitais, os quartéis, os asilos, as fábricas”, implantando a lógica disciplinar. Ao projetar mudanças na estrutura educacional, o pesquisador é enfático e afirma que não adianta sanar os problemas “a partir de instrumentos que não deram certo”. Trata-se sim, explica, “de pensar de outro modo”, como propôs o pensador francês. Pensar em mudanças “não se trata de ser contra a modernidade, mas de pensar para além dela”, considera.

Doutor em Educação e autor da tese A ordem das disciplinas, Veiga-Neto é professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde coordena o Projeto de Pesquisa Dispositivos Disciplinares e Educação. De sua produção intelectual, destacamos as seguintes obras, por ele organizadas: Crítica pos-estructuralista y educación (Barcelona: Laertes, 1997), Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzscheanas(Rio de Janeiro: DP&A, 2002) e Foucault & a educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2005).

IHU On-Line – Em que medida o pensamento de Foucault  é útil para compreendermos a educação? De que forma suas teorias ajudam a repensar os métodos educacionais?

Alfredo Veiga-Neto - Michel Foucault notabilizou-se por ter se dedicado intensamente a pensar o presente, procurando traçar o que ele mesmo denominou “uma história do presente”. Investigando a história das formas de pensamento e algumas práticas sociais ao longo da história do mundo ocidental, ele acabou por nos oferecer ferramentas analíticas extremamente úteis para compreendermos principalmente tanto a “fabricação” do sujeito moderno quanto para entendermos melhor a própria modernidade e a contemporaneidade. Na medida em que a escola foi e continua sendo a principal instituição envolvida com aquela fabricação, o pensamento de Foucault parece mais atual do que nunca.

IHU On-Line - O que os estudos de Foucault acerca do poder disciplinar, do biopoder, da biopolítica e da constituição do sujeito moderno revelam sobre as instituições de ensino?

Alfredo Veiga-Neto - Essa pergunta merece uma resposta muito longa. Dado que essa é apenas uma entrevista, tentarei ser sintético. Com Foucault, podemos compreender, de maneira bastante original e detalhada, os processos ou práticas de disciplinamento e controle que a escola moderna vem, há mais de 200 ou 300 anos, colocando em funcionamento. O resultado de tais processos ou práticas é justamente a instituição de um tipo de indivíduos aos quais chamamos de “sujeito moderno”. Foucault, mais do que ninguém, descreveu e mostrou o quanto, na modernidade, as escolas funcionam como as prisões, os hospitais, os quartéis, os asilos, as fábricas. O que une todas essas instituições é, justamente, a lógica disciplinar que elas colocam em funcionamento.

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Foucault sobre a transformação das sociedades contemporâneas em sociedades de controle se refletem na realidade escolar? 

Alfredo Veiga-Neto - Michel Foucault não desenvolveu propriamente teorias sobre a sociedade contemporânea. Ele, de fato usou a expressão “sociedade de controle” para diferenciar a sociedade européia dos anos 1970 e 1980 em relação a um tipo de sociedade que parecia estar desaparecendo e que, até então, havia sido pautada pela lógica disciplinar (e que, por isso, ele chamava de sociedade disciplinar). Foi Gilles Deleuze  que, a partir da expressão criada por Foucault, nos ofereceu valiosas (porém sucintas) elaborações acerca dos mecanismos de controle nas sociedades contemporâneas.

IHU On-Line - Que tipos de sujeitos a educação escolar atual está criando?

Alfredo Veiga-Neto – Essa pergunta exige uma resposta longa demais. Serei sintético (e, desse modo, serei perigosamente superficial).

A partir de alguns insights foucaultianos bastante interessantes, tenho argumentado — junto com alunos e colegas de meu grupo de pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Universidade Luterana do Brasil — que, enquanto uma escola disciplinar prepara, entre outras coisas, sujeitos dóceis/obedientes (o que foi amplamente demonstrado por Foucault), uma escola controladora prepara sujeitos flexíveis/estratégicos. O sujeito dócil, justamente por ser disciplinado, tende a seguir sempre determinados padrões que foram previamente “impressos em sua alma”; uma vez dobrado, ele permanece assim por longos períodos, até ser submetido a outras práticas disciplinares. O sujeito flexível, por não ser disciplinado, é capaz de mudar continuamente seu comportamento, suas ações e reações, adaptar-se estrategicamente a situações diferentes e inesperadas; ele é capaz de dobrar para, logo depois, voltar à situação anterior.

IHU On-Line – Em que medida a “disciplina” referida por Foucault é construtiva e ofensiva para o exercício do discurso?

Alfredo Veiga-Neto - A disciplina, na maneira como é entendida por Foucault, nada tem de ofensiva! Ela é produtiva, isto é, produz determinadas subjetividades, determinados tipos de interações sociais, seja para o bem seja para o mal. O problema, se existe e quando existe, não está propriamente na disciplina, mas no grau em que ela é experenciada e naquilo que se faz a partir dela.

IHU On-Line – O senhor diz que a escola moderna funcionou nos últimos quatro séculos como uma grande máquina de fabricar sujeitos disciplinares. Essa continuará sendo a tendência da educação do futuro?

Alfredo Veiga-Neto - O quanto e por quanto tempo continuarão a vigorar práticas disciplinares efetivas é uma questão de futurologia e, por isso mesmo, uma questão de difícil resposta. Mas o que se sabe é que a disciplina parece ceder, cada vez mais, o lugar para o controle. Assim, o que a escola contemporânea parece estar fazendo aceleradamente é produzir sujeitos flexíveis.

IHU On-Line – Quais suas considerações em relação à frase de Foucault:“Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”?

Alfredo Veiga-Neto – Essa é uma frase bem conhecida e comentada. Ela é auto-explicativa. São evidentes as conexões entre educação, discursos, saber-poder e política. O pensamento de Foucault nos ajuda a transitarmos entre tais conceitos, operarmos produtivamente com eles e a partir deles.

IHU On-Line – Em outra entrevista à IHU On-Line, o senhor afirma que a crise na educação é a manifestação de uma crise maior, de esgotamento de valores. Percebe, na modernidade, alternativas para sanar esse problema? Em que sentido os educadores podem trabalhar para mudar esse cenário?

Alfredo Veiga-Neto – O que chamamos de crise da modernidade corresponde ao incremento da sensação de imprevisibilidade sobre o futuro, o que está correlacionado com a dificuldade que temos para fazer o futuro “obedecer” aos nossos planos, previsões e desejos. A sensação de crise aumenta na medida em que aumenta o diferencial entre o que queremos para o futuro (imediato, mediato ou remoto) e aquilo que de fato acaba ocorrendo.

Como sabemos, a modernidade pode ser definida, dentre outras maneiras, como o período da História ocidental em que mais se planejou um tipo de vida e de sociedade e mais se acreditou que tal planejamento se efetivaria. Ora, vários sociólogos, filósofos, antropólogos, artistas, literatos, historiadores, pedagogos etc. têm nos mostrado o quanto isso não se realizou ou só se realizou parcial e localizadamente.  

Não se trata, portanto, de sanar um problema a partir de instrumentos que não deram certo como queríamos que tivessem dado: trata-se, sim, de tentar, como disse Foucault, “pensar de outro modo”. Isso significa, partir de outras bases filosóficas e metodológicas, mas sem esquecer o que se ganhou na modernidade. Não se trata de ser contra a modernidade, mas de pensar para além dela. Esse pensar de outro modo não significa, portanto, simplesmente abandonar o passado. Bem ao contrário, a tarefa que se coloca é bastante complexa e difícil: tentar pensar radicalmente de outro modo, mas sem esquecer a História. Foucault não é o único capaz de nos ajudar nessa tarefa. Mas é um dos mais vigorosos e importantes.

Leia mais...

>> Veiga-Neto já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Elas estão disponíveis na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.

Entrevistas:

* Repensando a educação a partir de Michel Foucault. Edição n 203, Michel Foucault, 80 anos, de 06-11-2006;

* “Educação e crise são, respectivamente, causa e conseqüência uma da outra”. Notícias do Dia, de 28-01-2008.

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