Edição 281 | 10 Novembro 2008

Lev Vygotsky. A interação social no processo do desenvolvimento infantil

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Patricia Fachin

Segundo Dirléia Fanfa Sarmento, a interação entre parceiros com diferentes níveis de experiências é fundamental para o desenvolvimento. Essa proposta rompe com a idéia de turmas homogêneas, proporcionando maior desenvolvimento

Para Lev Vygotsky, pioneiro na análise de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais, duas linhas se entrecruzam no desenvolvimento da pessoa humana: o desenvolvimento biológico e o desenvolvimento cultural. Isso significa “compreender que a singularidade do ser humano, enquanto um sujeito histórico-social, se constitui através das relações sociais, pela ação do trabalho e pela utilização de elementos semióticos”, esclarece Dirléia Fanfa Sarmento, pesquisadora do Centro Universitário La Salle. Na entrevista que segue, concedida com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, a pesquisadora diz que essa posição defendida pelo psicólogo ainda é atual, pois procura entender “como as trocas sociais estabelecidas pela criança com seu mundo cultural e afetivo causam um impacto ontogênico”.

Dirléia Fanfa Sarmento é mestre em Educação, pela Unisinos e doutora na mesma área pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é docente do Centro Universitário La Salle, em Canoas.

IHU On-Line - Como avalia a teoria da educação de Vygotsky, baseada no materialismo marxista e no desejo de reescrever a psicologia?

Dirléia Fanfa Sarmento – Vários autores discutem se realmente o ideário de Vygtsky constituiu ou não uma teoria. Com base em estudos realizados, penso ser importante destacar que Vygotsky não possui uma teoria educacional. Tal discussão se fundamenta no fato da abertura e o caráter inacabado de vários de seus pressupostos. Ou seja, algumas dimensões presentes em sua obra foram por ele levantadas, mas não chegaram a ser exploradas e, ainda hoje, apontam para várias possibilidades de investigação.

No que se refere a reescrever a psicologia, considero necessário situar as linhas de pensamento que dominavam no cenário científico na época de Vygotsky.  Uma representada pelos trabalhos de Pavlov,  Bekheterev e Watson (adeptos do comportamentalismo) defendia a observação objetiva e externa. Direcionavam-se para o estudo do comportamento, negando o fenômeno subjetivo. Outra, liderada por Chelpanov (adepto da psicologia introspectiva de Wundt,) defendia o método da introspecção. Ele acreditava que o marxismo poderia somente contribuir para a explicação da organização social da consciência, mas não de suas propriedades individuais. Desse modo, focalizava a consciência como objeto de pesquisa da psicologia, mas a partir de uma perspectiva subjetivista. Kornilov (discípulo de Chelpanov), na tentativa de desenvolver uma psicologia coerente com as novas tendências, fazia uma crítica às duas vertentes anteriores. Procurava uma síntese entre essas duas perspectivas, propondo um novo enfoque para estudar objetivamente as reações humanas no ambiente social, isto é, uma teoria psicológica comportamental marxista. Esse enfoque foi denominado por Kornilov como reactologia. Desse modo, havia uma polêmica instaurada entre os subjetivistas e os objetivistas.

A psicologia de Vygotsky

No entanto, no entender de Vygotsky, nenhuma dessas duas concepções eram condizentes com aquilo que se desejava naquele momento, que era criar uma psicologia que substituísse essas concepções que vigoravam até então. A nova psicologia, para o autor, deveria ter como referência a filosofia do materialismo dialético e histórico, havia de se converter numa psicologia marxista. Para Vygotsky, a construção dessa nova psicologia não deveria ter como instrumento metodológico o método das citações, isto é, a simples compilação de citações relativas às ideais de Marx  e Engels  relativas ao fenômeno estudado. Com base nisso, ele desenvolveu o método genético-experimental como forma de compreender o desenvolvimento humano enquanto parte do desenvolvimento histórico-cultural. O desenvolvimento humano, nesta perspectiva, compreende um processo dialético marcado por mudanças qualitativas e quantitativas que vão ocorrendo de forma gradual, articulando fatores internos e externos e progredindo para níveis cada vez mais complexos. Assim, Vygotsky refuta as concepções evolucionista e o determinismo ambiental. Esclarece que no desenvolvimento da pessoa estão presentes duas linhas de desenvolvimento que se entrecruzam: o desenvolvimento biológico (ou natural) e o desenvolvimento cultural. Isso significa compreender que a singularidade do ser humano, enquanto um sujeito histórico-social, se constitui através das relações sociais, pela ação do trabalho e pela utilização de elementos semióticos.

IHU On-Line - A questão central do pensamento de Lev Vygotsky, a construção de conhecimentos através da interação do sujeito com o meio e com o outro, é atual para compreender o processo de aprendizagem contemporâneo?

Dirléia Fanfa Sarmento – Certamente é atual, pois Vygotsky preocupa-se em entender - e isto constitui o núcleo de suas propostas de método e pesquisa - como as trocas sociais estabelecidas pela criança com seu mundo cultural e também afetivo causam um impacto ontogênico. Mais do que estudar os processos de interação da criança com o ambiente e as repercussões destas trocas no desenvolvimento cognitivo, é a análise sociogenética que complementará vitalmente a compreensão dos rumos tomados pela ontogenia infantil. Ele salienta a influência do contexto social, histórico e cultural no desenvolvimento dos processos mentais superiores. Considera que o modo de pensar e agir do sujeito desenvolve-se a partir das interações sociais e culturais que ele estabelece com o meio circundante.

A posição desse autor sobre o papel do ambiente no desenvolvimento da criança rompe com a idéia acerca da determinação do primeiro sobre o segundo, pois tanto a criança quanto o ambiente estão num constante processo de mudança e, desse modo, se influenciam mutuamente. As mesmas condições ambientais - em crianças diferentes e em diferentes fases de desenvolvimento - podem exercer diferentes tipos de influências, assim como provocar diferentes atitudes, dependendo também do significado que cada criança atribui às situações vivenciadas e do nível de consciência que ela possui em relação aos acontecimentos. Enfim, cada criança interpreta, vivencia e se relaciona com as situações de forma particular. Já é consenso que quanto mais a criança tiver condições de estabelecer interações com o outro, com o seu entorno físico e sociocultural, maior será seu potencial de desenvolvimento e aprendizagem.

IHU On-Line - Segundo Vygotsky, a escola desempenha uma função importante no processo de construção dos conceitos científicos.  Atualmente, a escola está desempenhando esse papel fundamental e transformador na vida dos estudantes?

Dirléia Fanfa Sarmento - De acordo com Vygotsky, é na infância que inicia o processo de formação de conceitos, sendo estes entendidos como um sistema de relações e generalização contidas nas palavras. Ele categoriza os conceitos em dois grupos: os cotidianos e os científicos. Os conceitos cotidianos são provenientes da experimentação direta da criança sobre o mundo real, ou seja, são construídos a partir de suas experiências cotidianas. Já os conceitos científicos decorrem de conhecimentos sistematizados, não sendo passíveis de serem construídos simplesmente através da ação direta. Ressalto que, apesar de suas especificidades, a compreensão dos conceitos científicos pressupõe a consolidação dos conceitos cotidianos, pois estes últimos se configuram em suporte dos primeiros. Os conceitos científicos, por sua vez, dão abrangência e maior poder de generalização, aos conceitos cotidianos. Sendo assim, ambos são imprescindíveis e complementares para o processo de desenvolvimento dos conceitos, em primeira instância, e da própria inteligência, em uma análise mais aprofundada.

A escola no processo de formação dos indivíduos

A escola possui um papel fundamental no processo de formação conceitual. No entanto, torna-se necessário destacar que esse processo de construção implica o desenvolvimento de operações mentais complexas e, sendo assim, não é aprendido por meio de um treinamento mecânico ou transmitido pelo professor ao aluno.  Muitas vezes, ocorre uma descontextualização dos conceitos trabalhados no contexto escolar, pois não se consideram os conhecimentos e experiências prévias que a criança construiu paulatinamente no contexto extra-escolar. Estes deveriam servir como suporte para a construção de novos conhecimentos. Por isso que se evidencia a relevância do professor ter conhecimento do universo cultural e vocabular das crianças e o sentido que cada uma delas atribui aos instrumentos lingüísticos.

Enquanto construções culturais, a linguagem e os conceitos precisam ser construídos pelas crianças num constante processo de (re)significação e apropriação. Isso ocorre através das interações que a criança estabelece com outras pessoas e com o mundo circundante. Sendo o desenvolvimento humano constituído pelas e nas relações interpessoais, os instrumentos simbólicos ganham relevância, pois são eles que viabilizam a comunicação, a abstração, a generalização, a partilha de nossas experiências, pensamentos e emoções, enfim, a capacidade de agir mentalmente sobre o meio físico e social.

IHU On-Line - Vygotsky se destacou, entre outros motivos, por ser pioneiro na noção de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais. De que maneira o pensamento do autor atribui um papel preponderante às relações sociais no desenvolvimento intelectual?

Dirléia Fanfa Sarmento - Com base no referencial vygotskyano, o processo de interação pressupõe a existência de uma ação partilhada entre os sujeitos na qual ambos se constituem em sujeitos ativos neste processo. Tal processo, de cunho essencialmente social, precisa ser compreendido dentro de uma dinâmica entre os sujeitos, na qual os significados emergem em decorrência de uma ação conjunta, resultante dos (des)encontros de diferentes níveis de conhecimento. O desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos vão sendo potencializados pelas divergências, pela comparação e defesa de hipóteses e por (des)acordos. Portanto, é necessário assegurar que os espaços e as práticas educativas viabilizem a interação entre parceiros com diferentes níveis de experiências. Isso rompe com a idéia de turmas homogêneas e aponta para a heterogeneidade como mecanismo propulsor de desenvolvimento. Nesse sentido, o professor possui um papel primordial. A idéia do professor mediador implica concebê-lo como alguém que possui a função de organizar, selecionar, planejar e propor situações de aprendizagem, as quais instiguem a interlocução e a partilha de experiências e conhecimentos.

É importante retomar a idéia de que, quando se fala em interação no contexto escolar, temos presente, além da relação professor-aluno, também a que ocorre entre pares como um momento ímpar para o desenvolvimento dos sujeitos. Interação essa que compreende um processo cooperativo entre os sujeitos envoltos numa situação comum. Entretanto, é necessário romper com uma visão simplista de que todas as interações provocam ou desencadeiam processos de desenvolvimento e aprendizagem, ou até mesmo possuem um valor formativo, independentemente se essas acontecem no contexto escolar ou no contexto social mais amplo.

IHU On-Line - De que maneira o conceito “Zona de desenvolvimento proximal” se torna importante para a aprendizagem do individuo?

Dirléia Fanfa Sarmento – Este conceito aponta para uma visão prospectiva do desenvolvimento humano e traz também a idéia de que tal processo é coletivo e, portanto, pressupõe a participação do outro. Vygotsky considera existir uma inter-relação entre o desenvolvimento e aprendizagem, sendo que esta inicia antes do ingresso da criança no universo escolar. No seu entender, para compreendermos essa inter-relação, é necessário considerar um nível de desenvolvimento real e uma área (ou zona) de desenvolvimento proximal. O desenvolvimento da criança seria constituído, assim, pelo contínuo movimento de competências desenvolvidas e em processos de desenvolvimento, num contínuo processo dialético entre as condições de amadurecimento e interação do organismo humano e as relações psicológicas social e culturalmente estabelecidas pela criança. No que tange à aprendizagem, Vygotsky salienta que ela, por si só, não é desenvolvimento, mas, se ela for organizada corretamente, poderá conduzir ao mesmo, pois ela coloca em ação vários processos de desenvolvimento, os quais não poderiam ocorrer e se desenvolver sozinhos. Assim, conceito Zona de Desenvolvimento Proximal rompe com a idéia tradicional no âmbito da educação de que o ensino deve se direcionar exclusivamente para aquelas competências já consolidadas no repertório cognitivo da criança. Nas palavras do próprio autor: “Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele [...] o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento”

É importante salientar que a efetivação das competências em vias de consolidação está condicionada também às condições materiais desse sujeito. A existência de um ser humano construtor de sua história individual, a qual é gestada a partir de uma coletividade, na qual as condições materiais e práticas sociais são fundamentais para o desenvolvimento tanto individual quanto coletivo é um dos elementos-chave do pensamento vygotskyano. Portanto, não podemos nos eximir da tarefa de discutir as diferenças sociais, econômicas e culturais presentes em nossa realidade brasileira e de que forma tais diferenças se refletem no sistema educacional e nos processos de ensino-aprendizagem. Faço tal ressalva por entender que, no âmbito educacional, essa discussão é imprescindível, pois caso contrário corremos o risco de termos a visão ingênua de que todos os alunos possuem as mesmas condições de se desenvolver, apesar de todos terem um potencial de aprendizagem que lhes viabilizaria tal desenvolvimento.

IHU On-Line - Em que sentido os ensinamentos do autor podem atuar como fonte de inspiração para os pedagogos?

Dirléia Fanfa Sarmento - Acredito que os pressupostos vygotskyanos são de grande valia para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estão comprometidos com os processos educativos. Seus pressupostos teóricos são decorrentes do seu interesse pelas questões pedagógicas e da articulação deles a uma dimensão teórica e investigativa, buscando estabelecer uma interface entre a psicologia e a educação. Por fim, saliento a necessidade de haver uma leitura em profundidade do conjunto das produções de Vygotsky como um dos caminhos que viabiliza situar o seu pensamento e obra. Ou seja, uma leitura descontextualizada e fragmentada pode ser uma das origens de uma gama variada de interpretações, aproximações e distanciamentos até certo ponto equivocados, que circulam nas produções acadêmicas e científicas desenvolvidas no cenário brasileiro sobre os pressupostos teóricos deste autor.

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