Edição 280 | 03 Novembro 2008

Lutero. Reformador da Teologia

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Graziela Wolfart

O teólogo e professor Martin Dreher prefere encaixar Martinho Lutero no grupo daqueles que pediam uma reforma da Teologia

Na opinião do teólogo luterano Martin Dreher, “mesmo que o Catolicismo Romano sempre tenha assumido posturas claras, buscando diferenciar-se de Lutero, é inegável que toda uma série de decisões do Concílio de Trento só pode ser entendida a partir do debate travado com o pensamento de Lutero”. Quando perguntado sobre a herança de Lutero para a educação, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Dreher destaca que “a Teologia de Lutero aparece na rede de escolas luteranas, buscando acentuar a gratuidade do amor de Deus, revelado em Jesus Cristo, de quem brota o compromisso da colocação de sinais desse amor no mundo em que professores e estudantes estão inseridos”. Para ele, essa mensagem tem atualidade, “pois sob a égide no neoliberalismo não há gratuidade: paga-se por tudo”. E, quando o tema foi o diálogo inter-religioso a partir do pensamento de Lutero, Martin Dreher é enfático: “O mundo do século XVI não se presta para o diálogo; nele, está o nascedouro do discurso absolutista, também do discurso da fé cristã como ‘absoluta’”.

Martin Dreher é professor e pesquisador no PPG em História da Unisinos, possui graduação em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), e doutorado em Teologia com Concentração em História da Igreja, pela Ludwig Maximilian Universitat München. Recentemente, o professor da Unisinos organizou, juntamente com os pesquisadores Imgart Grützmann e J. Feldens, o livro A imigração alemã no Rio Grande do Sul. Recortes (São Leopoldo: Oikos, 2008). Além desse, Dreher publicou outras obras, dentre as quais destacamos Populações rio-grandenses e modelos de Igreja (Porto Alegre: EST; São Leopoldo: Sinodal, 1998), História do povo luterano (São Leopoldo: Sinodal, 2005) e A Igreja no mundo medieval (São Leopoldo: Sinodal, 2005).

IHU On-Line - Quais as principais contribuições de Lutero para a história da Igreja Cristã?

Martin Dreher - No período que designamos de Reforma e que não devemos considerar restrito à Reforma Luterana, pois engloba movimentos como a Reforma Suíça, liderada por Ulrico Zwínglio,  o Movimento Anabatista,  o calvinismo  e a própria Reforma Católica, sob a liderança da Companhia de Jesus, além do surgimento do Anglicanismo, muitas foram as tentativas de renovação do Cristianismo ocidental, a começar pela iniciativa de Isabel, a Católica,  e Cisneros,  na Espanha. Enquanto algumas iniciativas buscavam moralizar, isto é, realizar uma reforma moral da Igreja, profundamente comprometida pelo comportamento da Cúria e, em especial, de papas como VI  (1492-1503), Júlio II  (1503-1513) e Leão X  (1513-1521), mas também de cardeais, como Alexandre Farnese, neto de Paulo III,  outros dentre aqueles que buscavam responder ao clamor por uma reforma “na cabeça e nos membros da Igreja” pediam um reforma da Teologia. Permito-me enquadrar Lutero nesse grupo. 

Incertezas teológicas

O período anterior à Reforma foi de grandes incertezas teológicas. Na historiografia, buscou-se subsumir essas incertezas na expressão “justificação por graça e fé”. Contudo, a expressão não abarca o todo. Havia grandes incertezas no tocante à imagem de Deus e esta incerteza levava a incertezas relativamente à figura do próprio Cristo, decorrentes de questões não resolvidas e relacionadas com a Doutrina da Penitência, que culminaram no final da Idade Média na discussão em torno da venda de indulgências, estopim para a eclosão do movimento reformatório luterano, em 1517. Mas as indefinições relativas à Penitência estavam a mostrar que maiores ainda eram as indefinições em relação à Doutrina de Pecado e Graça, apesar das contribuições de Santo Agostinho,  o que preparava grandes discussões em torno da Eucaristia e do Batismo. Todas essas indefinições, contudo, concentraram-se na temática da eclesiologia. De fato, é bom lembrar que só existe uma eclesiosologia romano-católica uniforme desde o Concílio Vaticano II, o qual privilegiou a formulação que fala do “povo de Deus”. Lutero procurou dar resposta a essas indefinições. Por isso, sua maior contribuição para a história da Igreja Cristã está na sua tentativa de dar respostas teológicas a essas questões.

IHU On-Line - Qual a importância das pregações de Lutero para o tema do diálogo inter-religioso? 

Martin Dreher - Nos dias de Lutero (ele viveu de 1483 a 1546), a outra religião conhecida era o islã. Era a “religião do turco” que na época chegou até as portas da cidade de Viena. Na Europa, estava presente também o judaísmo. No tocante ao islã, não podemos falar de diálogo e, no tocante ao judaísmo, a postura de Lutero deve ser vista de forma distinta. Se durante os anos iniciais de sua atividade acentuou que jamais se deveria esquecer que “Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu judeu”, em sua velhice, sob a influência de leituras apocalípticas do final do mundo, produziu textos injustificáveis, como “Acerca dos judeus e de suas mentiras”, prenhe de discurso anti-semita. O mundo do século XVI não se presta para o diálogo; nele, está o nascedouro do discurso absolutista, também do discurso da fé cristã como “absoluta”. Podemos tirar a contraprova disso no que aconteceu com aqueles missionários jesuítas  que buscaram conviver com religiões diferentes na Índia e na China.

IHU On-Line - Como o senhor vê que as demais religiões cristãs assimilam até hoje a reforma conduzida por Lutero?

Martin Dreher - É inegável a influência que Lutero teve no calvinismo e no anglicanismo. Mesmo naquelas igrejas resultantes dos dissidentes ingleses (dissenters), que se rebelaram contra a Igreja da Inglaterra (anglicanos), há marcas indeléveis do legado de Lutero, mesmo que nelas, mais tarde, tenham surgido aspectos que as tornam distintas do luteranismo, como o fundamentalismo. Inegável é a presença do legado de Lutero entre os Metodistas. Mesmo que o catolicismo romano sempre tenha assumido posturas claras, buscando diferenciar-se de Lutero, é inegável que toda uma série de decisões do Concílio de Trento só podem ser entendidas a partir do debate travado com o pensamento de Lutero. No entanto, o legado de Lutero que perpassa todas as denominações cristãs é, sem dúvida, o canto coral, por ele produzido em parceria com Johann Walther  e, depois, tornado bem comum na cultura universal através do trabalho de Schein,  Scheid e Schütz,  alcançando seu ápice em Johann Sebastian Bach. 

IHU On-Line - Qual a principal herança de Lutero em relação ao papel da mulher na Igreja?

Martin Dreher - Lutero viveu em uma sociedade patriarcal; isso é inegável. Como é sabido, em 1525, casou-se com Catarina de Bora, outrora monja cisterciense. A partir de sua convivência com Catarina, definiu o objetivo do matrimônio na formulação de que nele, homem e mulher “deveriam tornar-se amigos em Cristo”. Não viu a sexualidade como mera função de procriação, mas como complementação de mulher e homem. Partindo do batismo, por ele entendido como ordenação da pessoa cristã, para o sacerdócio de todos os crentes, o serviço da comunidade cristã em relação ao mundo, situou também a mulher nessa função sacerdotal. Ele, no entanto, não chegou a divisar a mulher na função de “pastora”, de presidente da comunidade. Em uma oportunidade, no entanto, chega a afirmar que, caso em um mosteiro feminino não exista sacerdote, mulheres podem presidir a eucaristia, o que não deixa de ser uma formulação “avançada” para o século XVI. Se, hoje, mulheres luteranas são ordenadas pastoras, isso se deve, sem dúvida, à Teologia do Batismo formulada por Lutero.

IHU On-Line - Qual a principal importância de Lutero enquanto figura histórica e política?

Martin Dreher - Cada geração tem atribuído um “papel importante” para Lutero. Foi visto como o exemplo clássico do “herege”. Em minha adolescência, ainda tive de ouvir, em uma escola católica, que no dia de sua morte “toda a Alemanha cheirava a enxofre”: enxofre era cheirado por onde o diabo passava. É raro encontrar-se, hoje ainda, leitura semelhante, mas continuam a existir “tradicionalistas”, que jamais ouviram falar de Joseph Lortz, SJ nem de Erwin Iserloh e de suas leituras católicas de Lutero. Um dos primeiros textos de Lutero traduzidos para o português, sua interpretação do Cântico de Maria, o Magnificat, foi publicada pela Editora Vozes, de Petrópolis, em 1968, e louvado como exemplo de espiritualidade cristã. No mundo protestante, Lutero foi louvado como “campeão” ou como “herói da fé”. Ele mesmo se qualificou de “mísero saco de vermes”. Os românticos alemães viram nele o precursor do nacionalismo alemão e, depois, o nacional-socialismo. Prefiro ver Lutero como filho de seu tempo. Não tinha hábitos refinados; não era pessoa barroca. Estava entre a Idade Média e a Idade Moderna. No entanto, foi catalisador de anseios medievais que buscavam por uma Reforma na “cabeça e nos membros”. Foi teólogo e pensador de porte. Viveu em um contexto de humanismo e de renascimento. Atraiu humanistas e influenciou artistas. Foi visto como possível liderança por cavaleiros e por camponeses, mas desapontou a ambos. Foi poeta e compositor. Como tradutor foi gênio criador de linguagem. Sua tradução da Bíblia consegue reproduzir linguagem poética. Soube ser conselheiro de príncipes, mas também um de seus mais ferozes críticos. Como figura histórica e política, Lutero foi um ser humano, com erros e acertos. Por ocasião de sua morte, em Eisleben, a 18 de fevereiro de 1546, encontrou-se, entre seus pertences, o seguinte bilhete, anotação sua: “Ninguém consegue entender a Virgílio  nas Bucólicas e nas Geórgicas, a não ser que tenha sido pastor ou agricultor por cinco anos. Ninguém compreenderá Cícero em suas cartas (assim penso eu), a não ser que tenha se movimentado por 40 anos em um importante Estado. Ninguém pense haver experimentado suficientemente as Sagradas Escrituras, a não ser que tenha dirigido as Igrejas por cem anos com os profetas. Por isso, trata-se de uma coisa grande e maravilhosa: primeiro, no que toca a João Batista; segundo, no que toca a Cristo; terceiro, no que toca aos apóstolos. Não intentes a Eneida divina, mas inclina-te profundamente, adorando, ante seus vestígios. Somos mendigos. Esta é a verdade”.

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>> Confira outras entrevistas concedidas por Martin Dreher à IHU On-Line. Acesse nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu

Entrevistas:

* “A alegria como tema dominante em Mozart”, publicada na IHU On-Line nº 174, de 03-04-2006, cujo tema de capa é Wolfgang Amadeus Mozart. Jogo e Milagre da vida.

* “O mundo secularizado carece, desesperadamente, dos sinais da fé”, publicada na IHU On-Line nº 209, de 18-12-2006, cujo tema de capa é Por que ainda ser cristão?.

* Há entre os pomeranos uma ética de trabalho muito acentuada, publicada na IHU On-Line nº 271, de 01-09-2008, cujo tema de capa é Pomeranos: 150 anos de histórias e contradições

* A morte foi privatizada, publicada na IHU On-Line nº 279, de 27-10-2008, cujo tema de capa é Morte. Resiliência e Fé.

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