Edição 279 | 27 Outubro 2008

As contribuições de Lutero para a economia, a ética e a sociedade

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Bruna Quadros

Tema será discutido na próxima edição do evento IHU Idéias

No dia 30 de outubro, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU debaterá as contribuições de Martinho Lutero para a economia, a ética e a sociedade. O debate será coordenado pelo Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth que, na última semana, conversou, por e-mail, com a revista IHU On-Line. Ele afirmou que o método seguido por Lutero para formular um juízo ético na perspectiva da ética cristã acerca de questões econômicas pode servir de inspiração. “Lutero contrapõe as práticas econômicas e suas motivações ao mandamento de Cristo. Nesse ponto, não oferece receitas prontas, mas desafia as pessoas envolvidas a formularem juízos éticos que correspondam ao direito vigente e, além disso, sejam coerentes com a fé que dizem professar.” O professor destacou, também, que do ponto de vista teológico, um impulso importante de Lutero para os tempos que o sucederam foi a relativização do papel de instâncias intermediadoras de salvação.

Ricardo Willy Rieth possui graduação em Ciências Sociais, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, graduação em Teologia, pelo Seminário Concórdia/IELB, de Porto Alegre, doutorado em História da Igreja (Kirchengeschichte), pelo Instituto de História da Baixa Idade Média e da Reforma da Universidade de Leipzig, Alemanha, e pós-doutorado pela mesma instituição. Atualmente, é professor titular no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Escola Superior de Teologia, São Leopoldo. É, também, professor adjunto na Ulbra, em Canoas, nos Cursos de Teologia, História-Licenciatura e Ciências Sociais.

IHU On-Line - Quais as contribuições de Lutero  para a ética, economia e a sociedade?

Ricardo Willy Rieth - A primeira contribuição reside no fato de Lutero, como teólogo e pessoa comprometida com o evangelho, ter se ocupado com o assunto. Muita gente na história da Igreja e da teologia cristã não considerou ou considera as questões econômicas merecedoras de atenção. Lutero, com freqüência, era procurado e consultado sobre os mais diferentes temas por pessoas que tinham suas consciências pesadas em razão de práticas delas exigidas no cotidiano. Foi o caso de muitos comerciantes e de gente envolvida com o sistema de crédito no pré-capitalismo há cerca de meio milênio. Lutero então, sem renunciar à sua vocação de teólogo, mas assumindo-a efetivamente, tentava ajudar as pessoas dentro de suas possibilidades. Sua reflexão ética tinha a Bíblia como referência fundamental. Ao mesmo tempo, levava em consideração as tradições antigas e medievais do pensamento cristão a respeito. Digno de destaque, contudo, é o esforço que empregou para entender a realidade do trabalho, dos negócios, e identificar as intenções e conseqüências das práticas aí reinantes.

IHU On-Line - Em seus estudos, o senhor afirma que o pensamento de Lutero acerca da economia e ética pode trazer inspirações a quem pretende ocupar-sedo assunto. Que inspirações seriam estas?

Ricardo Willy Rieth - Não podemos simplesmente transpor os juízos de Lutero ao nosso tempo, isso é certo. Nosso contexto histórico é completamente diferente daquele em que ele viveu. No entanto, penso que o método por ele seguido para formular um juízo ético na perspectiva da ética cristã acerca de questões econômicas pode servir de inspiração. Este método compreendia três passos básicos. Em primeiro lugar, Lutero tentava analisar cuidadosamente a respectiva situação ou transação econômica, recorrendo muitas vezes à supervisão de especialistas no comércio, no sistema de crédito e na administração pública. Assim, legou-nos escritos onde identifica e descreve em detalhes práticas como: preferência por vendas a crédito e de agiotagem, formação especulativa de estoques (monopsônio e monopólio), dumping, corretagem, abusos na fixação de preços, formação de cartel, deságio, falência fraudulenta, empréstimos a juros fixos com risco exclusivamente para o empreendedor, comércio fraudulento e outras mais. Em um segundo passo, Lutero busca afirmações do evangelho sobre o modo de lidar com os recursos materiais. Não se constrange em confrontar as pessoas com a radicalidade das exigências éticas feitas por Jesus no sermão da montanha, por exemplo. Finalmente, Lutero contrapõe as práticas econômicas e suas motivações ao mandamento de Cristo. Nesse ponto, não oferece receitas prontas, mas desafia as pessoas envolvidas a formularem juízos éticos que correspondam ao direito vigente e, além disso, sejam coerentes com a fé que dizem professar.

IHU On-Line - Qual a importância de Lutero em relação à tradução da Bíblia?

Ricardo Willy Rieth - Muito cedo, Lutero passou a defender que a Bíblia deveria ser a principal autoridade nas questões que envolvem a teologia e a vida na igreja. Isso teve fortes conseqüências no campo político. Muitos postulavam que a interpretação da Bíblia deveria ser exclusiva de algumas instituições apenas e que o povo simples se confundiria ao estudá-la sem a intermediação destas instituições. Daí também o status elevado atribuído à Bíblia latina, incompreensível para quem não era do meio acadêmico. Lutero discordou disso e julgou urgente disponibilizar a Bíblia em língua popular, ou seja, o alemão. Seu trabalho veio a público a partir de 1522, com a tradução do Novo Testamento diretamente do grego, e prosseguiu com a tradução do Antigo Testamento do hebraico e do aramaico. A primeira edição da Bíblia completa saiu em 1534. Lutero considerava que uma língua se transforma permanentemente, como a cultura na qual está inserida. Também achava que a tarefa de tradução precisa ser coletiva. Por isso, sempre trabalhou em equipe, traduzindo e revisando o texto bíblico até a sua morte, em 1546. Especialistas em língua e literatura atribuem um lugar central à tradução de Lutero no que tange à padronização do alemão escrito em meio aos múltiplos dialetos germânicos de seu tempo.

IHU On-Line - Quais as mudanças mais significativas que ocorreram no cristianismo, a partir da postura protestante de Martinho Lutero?

Ricardo Willy Rieth - A palavra “protestante” vem de “protestação”, que era um requerimento formal dirigido por príncipes dos vários territórios ao imperador por ocasião das assembléias do Sacro Império Romano Germânico. Em 1529, príncipes de territórios ligados ao movimento evangélico protocolaram uma “protestação” pelas ingerências do império em seus assuntos internos, com destaque para a questão religiosa. Pessoalmente, não concordo com leituras historiográficas que consideram uma pessoa isolada capaz de mudar os rumos da história pelo que fez, disse ou escreveu. O “evento” Lutero seria impossível sem fatores decisivos de seu contexto histórico. O avanço técnico na imprensa, a intensa participação de pregadores populares, os diversos movimentos sociais e anticlericais, a configuração de estados nacionais e o surgimento de formas pré-absolutistas de governo na contramão do universalismo medieval, apenas para citar alguns desses fatores, precisam ser necessariamente considerados. Do ponto de vista teológico, um impulso importante de Lutero para os tempos que o sucederam foi a relativização do papel de instâncias intermediadoras de salvação. A pessoa crente é confrontada diretamente com Deus e sua palavra, sendo esta palavra simultaneamente de juízo e graça. Também a noção de que a pessoa para nada contribui com sua própria salvação a desafia a tirar seus olhos de um Deus nas alturas e da vida eterna e a dirigi-los às pessoas próximas, à profundidade da realidade que a cerca e à vida cotidiana, lugar primordial onde se revela o Deus encarnado. O ensino da justificação por graça e fé tem um inegável componente ético.

IHU On-Line - O que esta reforma representou para os seguidores do cristianismo?

Ricardo Willy Rieth - Posteriormente à Reforma, pessoas, famílias, grupos, políticos e estados tiveram necessariamente que posicionar-se em relação ao movimento. Tais posicionamentos variaram desde aqueles frontalmente contra ou decididamente a favor, passando pelos que parcialmente se abriram a impulsos da Reforma. É inegável que o cristianismo ocidental transformou-se profundamente a partir daí. Na chamada era confessional, a Europa e o mundo sujeitado a seu colonialismo dividiram-se em católico-romanos, luteranos, calvinistas, anglicanos, anabatistas e outros mais. O argumento religioso foi habilmente usado por aristocracias interessadas em consolidar formas absolutistas de poder, manipular o clero em seu benefício, a fim de controlar o povo e incorporar seu próprio patrimônio os bens eclesiásticos. Por outro lado, é certo também que muitas pessoas tiveram suas vidas transformadas e plenas de sentido com a pregação evangélica. A Reforma, como outros movimentos anteriores e posteriores na história do cristianismo, reivindicou uma forte autocrítica no que diz respeito ao compromisso pessoal e institucional com as bases da fé cristã. Nesse sentido, teve conseqüências tanto para seus adeptos como para seus opositores.

IHU On-Line - Qual o reflexo da Reforma Protestante para a economia dos países onde o culto ao cristianismo é mais intenso? No Brasil, em particular, de que maneira a Reforma repercutiu, economicamente?

Ricardo Willy Rieth - Não podemos explicar mudanças econômicas exclusivamente pelo aspecto religioso, mas sou da opinião de que ele é, sim, um dos fatores de incidência. Uma tese clássica, que foi e segue sendo muito debatida, é a de Max Weber,  que procura relacionar de algum modo o que ele chama de “a ética protestante” e “o espírito do capitalismo”. Para Weber, teria sido marcante e de grande repercussão o modo como Lutero reinterpretou o conceito de “vocação/profissão”, transportando-o do ambiente religioso, em especial monástico, e vinculando-o ao âmbito secular e cotidiano do trabalho, das relações sociais e políticas. O culto divino e o sacerdócio das pessoas leigas nas atividades cotidianas seriam tão relevantes perante Deus como a atividade contemplativa de religiosos e clérigos nos ambientes eclesiásticos. Também a compreensão acerca da predestinação pela segunda geração de calvinistas, que associava o sucesso na vida econômica à eleição divina, teria segundo Weber contribuído como um dos vários ingredientes formadores do que denominou de “espírito do capitalismo”. No Brasil, a Reforma começa a incidir diretamente apenas a partir do século XIX. Ela veio com imigrantes europeus, o que é muito presente no Sul do país, e com missionários norte-americanos e ingleses, que desenvolveram práticas proselitistas. Políticos liberais na época do Império, que defendiam sua entrada no país, julgavam que contribuiriam decisivamente para a modernização da sociedade e das instituições. Faziam-no por associarem a modernidade e o capitalismo ao protestantismo, observando o exemplo dos países economicamente mais influentes, como a Inglaterra e os Estados Unidos. Por certo, o ethos desses protestantes teve e tem suas incidências sobre a economia nos contextos em que estão inseridos. Os pentecostais, por exemplo, que não deixam de ser herdeiros da Reforma, têm moldado de forma consistente o mercado de trabalho no Brasil. Ainda com relação ao mercado de trabalho, são inúmeros os estudos sociológicos e econômicos relacionando o analfabetismo funcional e a baixa escolaridade com o desemprego. Nesse sentido, o aporte histórico dos protestantes com suas escolas, colégios e universidades, pode ser objeto de análise quanto a seu impacto na economia e na sociedade desde meados do século XIX.

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