Edição 279 | 27 Outubro 2008

Resiliência e a dinâmica da vida em busca da plenitude

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Márcia Junges

A fé cristã nos faz esperar para além da morte, e nos mostra que existe uma dinâmica na vida que não termina com o corpo físico. Todas as nossas contribuições à vida é que nos dão o sentimento de que a existência tem sentido, menciona Stefan Vanistendael

Para o sociólogo holandês Stefan Vanistendael, “se uma pessoa é verdadeiramente muito querida, não podemos verdadeiramente compensar a sua morte. O ferimento de sua perda pode cicatrizar, mas a cicatriz fica. Todavia, com o tempo, nós podemos também descobrir pouco a pouco, em muitos casos, que a vida continua sendo possível para os sobreviventes, ou melhor, que esta vida vale a pena ser continuada e vivida. Tal descoberta é um processo de resiliência, um crescimento humano diante das grandes dificuldades”. Ele acredita que é a fé cristã que nos faz ir além dos limites materialistas, e esperar algo após a morte. “Não se trata de uma fé aleatória ou ingênua. Ao contrário, a resiliência nos mostra que existe na vida uma dinâmica que busca a plenitude, mesmo através de situações muito difíceis e de ferimentos. A fé cristã indica simplesmente que não há razão para que esta dinâmica cesse com a morte”. A entrevista foi concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em Sociologia, pela Louvain Flemish, cursou mestrado em Demografia em Louvain Wallon. Desde 1979, atua no International Catholic Child Bureau (Bice-Iccb), em Genebra, Suíça. Especialista no tema resiliência em conexão com a espiritualidade cristã, Vanistendael já proferiu mais de 100 conferências e workshops sobre esses assuntos em quatro continentes. De suas publicações, citamos Le bonheur est toujours possible. Construire la résilience (Paris: Bayard, 2000) e La felicidad es posible (Espanha: Gedisa, 2006), em co-autoria com Jacques Lecomte.

IHU On-Line - Quais são os principais recursos de afrontamento com os quais o sujeito pode enfrentar situações de perda por morte de um ente querido?

Stefan Vanistendael – Se uma pessoa é verdadeiramente muito querida, não podemos verdadeiramente compensar a sua morte. O ferimento de sua perda pode cicatrizar, mas a cicatriz fica. Todavia, com o tempo, nós podemos também descobrir pouco a pouco, em muitos casos, que a vida continua sendo possível para os sobreviventes, ou melhor, que esta vida vale a pena ser continuada e vivida. Tal descoberta é um processo de resiliência, um crescimento humano diante das grandes dificuldades. Trata-se de um crescimento paradoxal, na medida em que nós conseguimos assim integrar e positivar a fragilidade humana em nossas vidas – o que constitui um enriquecimento e um aprofundamento importante da vida. Em tal processo de resiliência, damo-nos conta de que a plenitude da vida é fundamentalmente diferente de uma vida sem problemas, muito mais profunda do que o perfeccionismo humano.

IHU On-Line - Em que sentido a resiliência que desenvolvemos após a perda de um ente querido nos ajuda a evoluir como seres humanos?

Stefan Vanistendael - A negação da morte é efetivamente problemática. Com a finalidade de superar esta negação, devemos compreender que é o desafio da fronteira da morte que dá à vida sua densidade e sua dimensão. Sem este limite, a vida seria paradoxalmente insuportável e sem impulso: se eu vivo indefinidamente, para que me levantar de manhã? Posso fazer tudo mais tarde. Santo Inácio,  fundador dos jesuítas, tinha compreendido bem isto, e propõe que meditemos sobre este limite da morte para melhor captar o que é verdadeiramente importante em nossas vidas.

IHU On-Line - A morte é um tema tabu em nossos dias. Como é possível sermos resilientes se a maioria das pessoas nega a morte?

Stefan Vanistendael - É o estado de espírito de uma pessoa que contribui para a sua resiliência, ou é a resiliência que resulta em certo estado de espírito? Na verdade, os dois devem ser considerados, pois a resiliência se situa em uma rede não linear de causas e efeitos, com muitos efeitos em retorno também. Causa ou efeito, pouco importa, trata-se de um estado de espírito positivo e essencial para a resiliência, pois se trata de encontrar os pontos positivos que vão permitir a construção de algo. Enquanto repararmos somente nos estragos – uma coisa muito importante –, não construímos nada. As famílias de refugiados que centralizam sua atenção nas novas possibilidades de sua nova situação se saem melhor do que aquelas que centralizam a sua atenção no que perderam.

IHU On-Line - De que maneira a espiritualidade cristã, a fé e resiliência se entrelaçam na experiência da morte?

Stefan Vanistendael - Em primeiro lugar, a fé cristã nos inspira a ir além dos limites do materialismo puro e simples, e a esperar além da morte. Não se trata de uma fé aleatória ou ingênua. Ao contrário, a resiliência nos mostra que existe na vida uma dinâmica que busca a plenitude, mesmo através de situações muito difíceis e de ferimentos. A fé cristã indica simplesmente que não há razão para que esta dinâmica cesse com a morte. Esta fé postula a completude desta dinâmica após a morte, à imagem do Cristo muito ferido e ressuscitado. Transformado em nova vida. Trata-se aqui de uma esperança muito profunda, e no fundo – eis uma grande surpresa! – muito coerente com a vida como nós já a conhecemos antes da morte, com seus altos e baixos.

IHU On-Line – Para Heidegger, o ser humano é um “ser-para-a-morte”. Como é possível transcender essa constatação e dar um sentido para a existência?

Stefan Vanistendael – Poder-se-ia dizer que o ser humano é “um ser para a vida”. Por que reduzir tudo e focalizar sobre o fim físico? Por que fazer da morte não somente um fim físico, mas também um fim no sentido de uma orientação última? Não há nisto uma redução que desgasta a vida? A vida nos é dada e ela tende à plenitude, mas integrando a ela nossas fragilidades, nossas derrotas, nossas feridas. Eis o profundo sentido do ícone do Cristo ressuscitado. Esse sentido, infinitamente mais rico e mais humano, vai bem além dos perfeccionismos humanos. O sentido da vida se descobre buscando esta plenitude, através de pequenos passos, no cotidiano. São todas as nossas contribuições à vida, minúsculas, banais, cotidianas ou mais brilhantes, que deveriam nos dar o sentimento que nossa vida tem verdadeiramente um sentido.

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