Edição 278 | 20 Outubro 2008

“A literatura é um direito do cidadão, um usufruto peculiar”

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André Dick, Graziela Wolfart e Márcia Junges

Para o professor Flávio Aguiar, Antonio Candido vê a literatura como uma práxis de iniciação à vida e à própria arte. Ao falar sobre a importância de Antonio Candido, ele lembra que a grandeza da arte, para o autor, “está em abrir horizontes e porões, os desvãos do espírito humano e sua capacidade para o vôo, e não a de fechá-lo em preconceitos e prejuízos”.

“O mundo da arte tem suas exigências próprias, e não pode ser reduzido a lições panfletárias ou receitas ideológicas, que, em geral, só o empobrecem”, declara o professor de Literatura Flávio Aguiar. Ao falar sobre a importância de Antonio Candido, ele lembra que a grandeza da arte, para o autor, “está em abrir horizontes e porões, os desvãos do espírito humano e sua capacidade para o vôo, e não a de fechá-lo em preconceitos e prejuízos”. Flávio Wolf de Aguiar possui graduação em Letras e mestrado e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Professor aposentado da USP, é pós-doutor pela Université de Montreal e autor de, entre outros, José de Alencar - Comédias (São Paulo: Martins Fontes, 2004), e organizador de Antonio Candido: pensamento e militância (São Paulo: Humanitas/Fundação Perseu Abramo, 1999). Atualmente vive em Berlim, na Alemanha, de onde respondeu as questões que seguem, por e-mail, com exclusividade, à IHU On-Line

IHU On-Line - Quais são as principais qualidades que podemos ver em Antonio Candido enquanto crítico de literatura? Ele colaborou de que modo na formação da crítica brasileira moderna?

Flávio Aguiar - Antonio Candido  aliou desde sempre uma firme formação teórica com uma sensibilidade para a linguagem comunicativa. Ele escreve de modo simples, sem se apoiar no uso abusivo do jargão cerrado do linguajar acadêmico. A formação como crítico de revista (Clima) e de jornal (Folha da Manhã) deu-lhe este traço hoje raro na crítica brasileira, e ajudou-o também a formular um perfil de crítico como um publicista, isto é, alguém que tem consciência de que atua num espaço público.  

IHU On-Line - Muitos estudos de Candido são referenciais nas universidades brasileiras. Na sua visão, como ele contrabalança sua visão literária com sua visão sociológica?

Flávio Aguiar - Candido formou-se em Ciências Sociais, mas seu grande estudo nesse campo foi de cultura caipira, Os parceiros do rio Bonito.  A visão sociológica contribuiu para desenvolver-lhe uma consciência de mão dupla. A primeira mão vai no sentido de trabalhar a crítica sobre uma obra ou um conjunto de obras com a consciência de que ela e ele estão emoldurados, por assim dizer, por um contexto social que é parte inerente de seu significado. A segunda mão vai no sentido de que a moldura nunca explica inteiramente o quadro, e que esse contexto só se torna significativo porque é internalizado dentro da obra. Esta não “reflete” o campo social, mas o espelha, de modo criativo, “distorcido”, digamos, pela visão particular do autor, do grupo a que ele pertence ou com que se identifica, e pelas particularidades próprias da linguagem artística, suas convenções, inovações.

IHU On-Line - De que maneira Candido alia sua visão de literatura com sua militância no campo das idéias políticas?

Flávio Aguiar - Candido vê a literatura como uma práxis de iniciação à vida e à própria arte. A literatura é assim um direito do cidadão, além de ser um uso particular, um usufruto peculiar etc. Faz parte da cidadania e de seu exercício ter o direito de aceder a todo o mundo das criações do espírito (não ser obrigado a isso, evidentemente). Isto posto, o mundo da arte tem suas exigências próprias, e não pode ser reduzido a lições panfletárias ou receitas ideológicas, que, em geral, só o empobrecem. A grandeza da arte, para Candido, está em abrir horizontes e porões, os desvãos do espírito humano e sua capacidade para o vôo, e não a de fechá-lo em preconceitos e prejuízos.

IHU On-Line - Uma de suas principais obras, Os parceiros do Rio Bonito, mostra uma reflexão sobre o mundo caipira de São Paulo. Como o senhor enxerga essa ligação estabelecida por Candido entre campo e cidade?

Flávio Aguiar - Até a década de 1930, o Brasil era um país eminentemente agrário com alguma expressão urbana. 70% da população brasileira vivia nas zonas rurais. Candido cresceu neste mundo. Ao mesmo tempo, presenciou, viveu e influenciou a majestosa, complicada, contraditória, dramática, épica e trágica urbanização do Brasil, até os dias de hoje, em que os números de inverterem: 80% da população brasileira vive nas cidades. Algo dessa passagem se espelha sempre na sua obra, pois as raízes do Brasil antigo estão sempre presentes nela, ora como raiz, ora como recordação, ora como prisão.

IHU On-Line - De que modo uma obra como Formação da Literatura Brasileira é referencial para entender as obras feitas no país?

Flávio Aguiar - Candido estudou a formação da literatura brasileira não como um processo “natural”, ou de “aclimatação” do português e de suas expressões estéticas a uma “nova paisagem”. Ele a estudou enquanto um desejo, o desejo dos intelectuais brasileiros, a partir de certo ponto, de criar uma literatura que desse expressão ao país. Ao mesmo tempo, ele estudou o processo de formação de uma literatura no país, isto é, ele primeiro formulou o conceito de literatura e depois viu como e quando ela se formou no Brasil. Na época, e até hoje, isso permanece uma abordagem muito original, e que influenciou pensadores na América Hispânica e na África, além de uma abordagem que pode nos fazer entender muito das literaturas de outras latitudes.

IHU On-Line - É possível explicar as obras literárias a partir de um sistema como faz Candido? Em que pontos isso lhe chama mais atenção?

Flávio Aguiar - É possível explicar a sua função. Por exemplo, A moreninha, de Macedo, não é um grande romance, no sentido de que Dom Casmurro o é. Mas foi A moreninha que abriu o caminho para Machado e outros autores adquirirem consciência de que eram parte de um “sistema” chamado “literatura brasileira”, que era um conceito inexistente, por exemplo, pelo menos no sentido atual, no século XVII ou mesmo no XVIII. A crítica sistemática, cumulativa, pode explicar também a inteligibilidade da formação de certas obras de arte, por exemplo, que Machado de Assis não criou no vazio; há toda uma trajetória coletiva que leva até ele, e que ele reconhece. Uma das páginas mais belas da ensaística brasileira é o elogio fúnebre de Alencar, feito por Machado, em que este diz que aquele era grande mesmo quando exagerava, ou algo assim. Há aí reconhecimento solene, até porque parte de um ponto de vista crítico, de seu débito para com seu antecessor.

IHU On-Line - Quais são as obras ou ensaios mais referenciais de Candido em sua visão?

Flávio Aguiar - Todas. Mas A Formação vem em destaque. Aprecio (aí é uma questão de gosto pessoal) muito também Brigada ligeira, Teresina & etc., e penso que “O homem dos avessos”, leitura de Grande sertão: veredas, está entre os momentos culminantes do ensaio brasileiro e universal.

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