Edição 278 | 20 Outubro 2008

O capitalismo ainda não morreu

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Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Para o economista Claus Magno Germer, o atual momento de crise representa apenas uma certeza: a continuidade da barbárie capitalista

“As crises não constituem anomalias do capitalismo, mas são uma das suas características mais fundamentais”, diz o economista Claus Magno Germer, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Seguindo a orientação marxista, ele lembra que o economista alemão Karl Marx já advertia: “As crises financeiras não podem ser evitadas, embora possam ser atenuadas, ou acentuadas, em certa medida, pelo Estado”. Segundo Germer, a crise financeira em curso é prova concreta dos ensinamentos de Marx, a respeito da impossibilidade de reverter quadros como o apresentado no decorrer dos últimos meses. Mesmo com a adoção de inúmeras medidas para conter colapsos financeiros, explica, “as crises sucedem-se porque fazem parte da natureza do capitalismo, e são por esta razão inevitáveis”. Marx dizia ainda “que medidas que se destinam a atenuar as contradições do capitalismo em nível, apenas as projetam para um nível mais elevado, no qual explodem em crises mais graves”. Nesse sentido, a atual crise financeira, embora assustadora, é seqüência de outras crises monetárias, bancárias e financeiras do capitalismo.

Graduado em Agronomia, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mestre em Economia Agrária, pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, e doutor em Ciências Econômicas, pela Universidade Estadual de Campinas, Germer é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Experiente na área econômica, com ênfase em teoria monetária e financeira, o pesquisador escreveu a tese de doutorado Dinheiro, capital e dinheiro de crédito – O dinheiro segundo Marx.

IHU On-Line – De que maneira Marx pode ser visto como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista?

Claus Magno Germer - A teoria econômica de Marx distingue-se das demais pelo fato de reconhecer o caráter transitório, em termos históricos, do capitalismo. Ou seja, concebe o capitalismo como uma forma de sociedade que não é eterna, mas que nasce e chega a um fim como resultado da ação de causas objetivas que se desenvolvem espontaneamente no seu interior. O enfoque dialético de Marx o levou a procurar identificar as forças motrizes da mudança, e as encontrou nas contradições residentes no âmago do capitalismo, cujo núcleo é a oposição de interesses entre as classes fundamentais – a burguesia e a classe trabalhadora –, que se desdobra em um conjunto de contradições em diferentes níveis e dimensões da sociedade capitalista. No plano especificamente econômico, Marx foi o primeiro autor a conceber as crises periódicas não como fenômenos estranhos ao capitalismo, mas como momentos constituintes do desenvolvimento do mesmo. Portanto, a teoria de Marx nos mostra o capitalismo como uma forma de sociedade que se transforma e se move, de modo cíclico, em uma direção determinada – a sua própria superação – movida por tensões intrínsecas à sua estrutura.

IHU On-Line - Qual a importância de Marx para fazermos uma crítica à economia política? Como ele contribui para entendermos a crise financeira atual?

Claus Magno Germer - Há duas linhas de crítica de Marx no campo da teoria econômica. Uma delas, a mais importante, é a crítica da economia política clássica, representada principalmente por Ricardo, à qual se refere o subtítulo da sua obra-prima – O capital: crítica da economia política. Marx tinha em alta conta os autores mais destacados desta teoria, como Smith  e Ricardo, embora deles divergisse em aspectos fundamentais. A outra linha crítica foi endereçada por Marx ao que denominou economia vulgar. Esta era representada, na sua época, pelos precursores do que viria a ser a escola neoclássica. Marx a denominava vulgar porque, ao invés de uma teoria, constituía, no essencial, na sua opinião, um esforço de justificação do capitalismo. Este esforço tinha como núcleo central a negação de características fundamentais do capitalismo, principalmente o trabalho como fonte da riqueza, a instabilidade intrínseca e a propensão a crises periódicas, o caráter transitório do capitalismo, entre outras. A primeira linha crítica foi concluída por Marx e encontra-se consubstanciada em O capital e está, neste sentido, superada. Conseqüentemente, a importância atual da obra de Marx, no terreno da polêmica teórica, reside na sua crítica à economia vulgar, hoje materializada na teoria neoclássica, como expressão do esforço continuado de justificação do capitalismo e não de compreensão científica das suas características.

No terreno específico das crises do capitalismo, Marx afirmou com clareza e rigor o caráter cíclico do capitalismo, isto é, que este desenvolve-se através de uma sucessão de fases de expansão e de retração ou crise. Foi o primeiro autor a rejeitar vigorosamente a chamada lei de Say,  uma das pedras angulares da ideologia de justificação neoclássica, que implica que crises gerais são impossíveis. Uma das alavancas da acumulação e uma das causas fundamentais das crises é o sistema de crédito. Marx distinguiu dois tipos de crises: as crises do setor produtivo, ou crises gerais, e as crises bancárias ou financeiras, que podem ocorrer separada ou conjuntamente. As crises são momentos necessários, porque constituem a solução de contradições inerentes ao processo de acumulação, que se avolumam durante a fase de expansão precedente, até o momento da inevitável explosão. Assim sendo, as crises são vistas como momentos de restabelecimento das condições que viabilizam a continuidade da acumulação, mas que ao mesmo tempo fragilizam moral e politicamente o sistema, porque expõem as suas contradições e fomentam o florescimento das potências teóricas e práticas, transformadoras da sociedade.

IHU On-Line - Em que medida a interferência do Estado pode evitar colapsos como este que está abalando o sistema financeiro atual?

Claus Magno Germer - A resposta marxista a esta pergunta é que as crises financeiras não podem ser evitadas, embora possam ser atenuadas, ou acentuadas, em certa medida, pelo Estado e o Banco Central, como se pode observar na contundente crítica de Marx à lei bancária inglesa da sua época. Esta resposta decorre do exposto acima: as crises não constituem anomalias do capitalismo, mas são uma das suas características mais fundamentais. Elas não resultam de defeitos do capitalismo, mas das suas maiores virtudes. A acumulação, que é a virtude suprema e a razão de ser do capitalismo, conduz periódica e inevitavelmente a crises, crises de superacumulação ou crises financeiras. Uma prova de que as crises não podem ser evitadas é a própria crise financeira em curso, que ameaça converter-se em uma das mais graves crises da história do capitalismo, a despeito da grande quantidade de supostos mecanismos de prevenção de crises, elaborados a partir da grande depressão dos anos 1930 e continuamente aperfeiçoados. Os bancos centrais foram dotados do poder de “regular” a oferta monetária e o crédito, de supervisionar e intervir no sistema bancário; leis foram elaboradas com a finalidade de “disciplinar” o sistema bancário e os mercados de capitais; criaram-se mecanismos automáticos de “contenção” dos pânicos financeiros nas bolsas de valores, assim como órgãos encarregados de supostamente assegurar a “transparência” destes mercados; elaborou-se uma lista interminável de indicadores econômicos e financeiros e de modelos econométricos, com a finalidade de antecipar o futuro e prevenir crises etc. A despeito de tudo isto, as crises sucedem-se porque fazem parte da natureza do capitalismo, e só deixarão de existir quando o próprio capitalismo deixar de existir.

Uma crise sem fim

Marx insistiu em afirmar que todas as medidas que se destinam a atenuar as contradições do capitalismo em um nível apenas as projetam para um nível mais elevado, no qual explodem em crises ainda mais graves. A experiência das últimas décadas parece uma comprovação desta afirmação. Muitos dos mecanismos que impedem a eclosão da crise em dado momento têm apenas o efeito de adiá-la, permitindo com isto que o seu potencial destrutivo cresça mais. Deve-se lembrar que a crise atual é apenas mais uma de uma seqüência de crises monetárias, bancárias e financeiras que acometem o capitalismo, na nossa época, desde os anos 1960, com intensidade crescente.

IHU On-Line - Se Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, 150 anos antes, que espécie de previsões podemos fazer para nossa economia a partir da sociedade que temos hoje, baseada em valores consumistas e na autonomia?

Claus Magno Germer - Marx foi um cientista, não um profeta. Elaborou uma representação teórica do capitalismo. Se a teoria de um fenômeno o representa adequadamente, ela permite antecipar a ocorrência das principais características do desenvolvimento do fenômeno. A teoria de Marx sobre o capitalismo é uma teoria deste tipo, motivo pelo qual lhe permitiu não só explicar a natureza do capitalismo e do seu funcionamento, como ainda antecipar características que só se tornaram visíveis mais tarde. Além do seu pioneirismo na admissão e explicação teórica das crises, Marx explicou e antecipou o processo geral de centralização do capital que está na base da fase monopolista do capitalismo, inaugurada no final do século XIX; explicou a tendência, amplamente comprovada, de queda cíclica da taxa média de lucro; antecipou e fundamentou teoricamente a existência permanente do desemprego no capitalismo; antecipou o processo de proletarização crescente da população, que pode ser ilustrado pelo crescimento contínuo da proporção do proletariado industrial na população, que passou de apenas cerca de 5% da população mundial no início do século XX para mais de 30% no início do século XXI; antecipou o processo de aumento da polarização entre uma minoria de ricos e uma maioria de pobres, que é ilustrada cotidianamente nos meios de comunicação pelas estatísticas da pobreza e da miséria em escala continental, abarcando pelo menos dois terços da população mundial atual. Estes dados ilustram a antecipação mais importante que decorre da teoria de Marx: de que a intensificação progressiva, embora cíclica, da contradição entre a socialização crescente do trabalho e da produção, isto é, da riqueza, e a privatização crescente desta riqueza e sua concentração nas mãos de uma minoria cada vez mais diminuta, representa o crescimento das potências transformadoras inerentes ao capitalismo e conducentes ao seu fim. Esta contradição se resolverá, por imposição das circunstâncias, através da abolição da propriedade privada dos meios de produção e a instituição da propriedade social, e da conseqüente abolição do motivo egoísta do lucro como base da regulação do trabalho e da produção social e sua substituição pelo critério do atendimento das necessidades da coletividade, em uma palavra, através do socialismo.

Portanto, embora não se possa fazer previsões precisas, dada a complexidade do processo histórico, o que se pode dizer com base na teoria de Marx é que o capitalismo continuará apresentando uma seqüência de expansões e crises, ao longo das quais as contradições enumeradas acima se acentuarão, também de modo cíclico, ampliando a instabilidade global do sistema.

IHU On-Line - Qual a importância do Estado e da regulação dos mercados para recuperação da ordem financeira internacional?

Claus Magno Germer - O marxismo não é ingênuo em relação à natureza e funções do Estado. O Estado e o mercado são, juntamente com a economia, componentes do sistema integrado que é a sociedade capitalista. O Estado é um órgão do capital, isto é, de representação dos interesses da classe capitalista. Conseqüentemente, os instrumentos de regulação que utiliza destinam-se a preservar os interesses e o domínio desta classe e do processo de acumulação de capital. Nas crises, a ação do Estado consiste em socializar os custos, isto é, “sanear” a contabilidade de bancos e empresas mais atingidos, lançando o passivo sobre a sociedade, especialmente sobre os trabalhadores e pobres em geral. É o que está ocorrendo atualmente: os dois ou três trilhões de dólares das operações de salvamento articuladas até este momento pelos governos dos países capitalistas centrais destinam-se a salvar instituições financeiras, mas nada ou muito pouco se diz sobre o destino dos devedores não-capitalistas e dos trabalhadores lançados no desemprego, ou sobre a origem destes recursos.

IHU On-Line – A crise financeira pode suscitar uma renovação na política mundial?

Claus Magno Germer - Uma mudança substancial na esfera política mundial é possível e desejável. Mas a renovação mais importante não consistiria em uma nova instrumentalização da intervenção do Estado capitalista na economia. Quaisquer que sejam as características desta intervenção, ela destina-se sempre a assegurar os interesses da classe capitalista e da acumulação, em detrimento dos da classe trabalhadora e da população em geral. A renovação desejável é de outra natureza. As últimas duas décadas, pelo menos, foram palco do desfile triunfal, sem contestação significativa possível, da ideologia das excelências do mercado, isto é, do capital. A classe trabalhadora e suas necessidades e aspirações viram-se reduzidas a um apêndice sem importância. A intensificação da exploração da força de trabalho e o aumento do empobrecimento em massa atingiram todos os continentes. O desemprego em massa provocado pelo processo geral de reestruturação técnica e econômica do capital, a nível mundial, jogou os trabalhadores na defensiva e os condenou a assistir, com pouca ou nenhuma resistência possível, à abolição de direitos duramente conquistados em quase dois séculos de lutas renhidas. A expectativa otimista é que o fracasso das promessas grandiloqüentes de abundância e felicidade eternas, por parte dos ideólogos do “livre mercado”, nas últimas décadas, expresso em uma crise catastrófica mundial como pode ser a atual, poderá reabrir o debate crítico, teórico e político, sobre a natureza real do capitalismo, sobre as suas imensas contradições, e fazer renascer a consciência da necessidade, e mais ainda da possibilidade real, da sua superação.

Com efeito, manifestações explosivas de descontentamento popular com o capitalismo na sua configuração atual surgem em todos os continentes nos últimos anos. Elas ainda não adquiriram a densidade suficiente para converter-se em um movimento consciente de transformação em direção ao socialismo, mas sua potencialidade neste sentido é indubitável e crescente. Esta é a única renovação política real que se pode vislumbrar. Fora ela, o que se pode vislumbrar é apenas a continuidade da barbárie capitalista atual.

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