Edição 277 | 14 Outubro 2008

Lévinas e Derrida: pensamentos da alteridade “ab-soluta”

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Márcia Junges

Proximidades e diferenças entre a obra dos dois filósofos, cujo “rastro incandescente de seus pensamentos” continua atual, são analisadas por Fernanda Bernardo, da Universidade de Coimbra

Na entrevista exclusiva a seguir, concedida por e-mail pela filósofa portuguesa Fernanda Bernardo, docente na Universidade de Coimbra, são discutidas as proximidades e diferenças entre o pensamento de Lévinas e Derrida. Uma das diferenças é que o pensamento derridiano “irrompeu logo inteiro”. Assim, não se pode falar de uma evolução, ou de um primeiro e segundo Derrida. Por outro lado, um dos traços que une ambas as filosofias é sua hiper-radicalidade, comenta a estudiosa: “Tanto a meta-ética levinasiana como a desconstrução derridiana são, de fato, pensamentos da alteridade ab-soluta: pensamentos ditados, inspirados, magnetizados e afetados pelo ‘absolutamente outro’”. Fernanda Bernardo é organizadora de Derrida à Coimbra – Derrida em Coimbra (Viseu: Palimage, 2005).

IHU On-Line - Como Lévinas influencia Derrida em sua filosofia da desconstrução?

Fernanda Bernardo - Pergunta imensa que pressupõe ou solicita um trabalho de investigação e de reflexão que, no essencial, está ainda por fazer e se apresenta como uma inadiável e formidável tarefa para o “futuro” – para o “futuro” e para o “futuro” da própria filosofia onde hoje reina um pesado silêncio…

Mas, em relação a estes dois nomes maiores da contemporaneidade filosófica, eu não falaria de “influência” – antes de singular herança (no sentido em que Derrida no-la dá a pensar, em Espectros de Marx, (1993) nomeadamente) e de proximidade eletiva. Ambos os filósofos falam, aliás, do seu encontro filosófico como tendo sido da ordem do “prazer de um contato no coração de um quiasma”: um “contato tangencial” (passe a manifesta tautologia) entre dois idiomas ou entre duas grandes singularidades filosóficas que abre, no entanto, para um sem número de diferenças.

Antes, porém, de muito, de demasiado sucintamente tentar salientar e a proximidade e os diferendos deste “contato tangencial”, não deixarei de referir também ainda aqui que o próprio Derrida (em D. Janicaud, Heidegger en France I, p. 106) elege Heidegger, Lévinas e Blanchot como os seus próximos eleitos. Próximos com os quais não cessou nunca de “dialogar” – e próximos (ainda assim, e como ele mesmo o disse, mais outros do que todo e qualquer outro), cuja admirável grandeza (de pensamento, de obra e de escrita), no meu entender, ele excede, excedendo em ousadia, em radicalidade, em finura, em inventividade e em justiça o rastro incandescente dos seus pensamentos.

O que é dizer que, abraçando o gesto daqueles próximos-eleitos no árduo exercício da sua “fidelidade a mais de um”, Derrida nos dá de novo e diferentemente a repensar o “todo” da nossa ocidentalidade filosófico-cultural, na miríade das suas manifestações (religiosas, filosóficas, poético-literárias, éticas, políticas, jurídicas…), para além mesmo da sua memória judaico-greco-européia, detectando nesse “todo” o indesvendável e profético-messiânico segredo da différance. Não sem justiça e sem pertinência, de Derrida se poderá igualmente também dizer que o seu pensamento, dito “desconstrução”, abalou a “paisagem sem paisagem do pensamento” desde que no mundo há pensamento e pensamentos do mundo: o próprio Lévinas soube, aliás, reconhecer, já no início da década de 70 – quer dizer, quando se contavam ainda pelos dedos de uma só mão as obras editadas de Derrida –, que, com ele, com Jacques Derrida, tudo era “tout autrement” (cf. Lévinas, Nom Propres).

Proximidade pela hiper-radicalidade

Dito isto, eu diria que a extraordinária proximidade (de pensamento) entre Derrida e Lévinas se marca precisamente ao nível da hiper-radicalidade ou da extra-vagância do seu pensamento e daquilo que os apelou e/ou lhes deu a pensar: a saber, o outro, o absolutamente outro (tout autre). Tanto a meta-ética levinasiana como a desconstrução derridiana são, de fato, pensamentos da alteridade ab-soluta: pensamentos ditados, inspirados, magnetizados e afetados pelo “absolutamente outro” (o “separado” ou “santo”, dirá Lévinas na tradição do kaddoch hebraico).

Uma hiper-radicalidade que ambos os filósofos, notemo-lo também de passagem, herdam singularmente da fenomenologia husserliana – mais precisamente, da épokê husserliana. Uma épokê (redução) agora ocupada, já não, como acontecia em Husserl, com o delineamento da redução fenomenológico-transcendental e com os olhos postos na descoberta da apodicidade do “ego” constituinte aquém do mundo e aquém do ser; mas uma épokê agora exercitada naquilo que Emmanuel Lévinas designará de redução inter-subjectiva, a qual, para além de testemunhar o quanto a singular primazia do “outro” chega demasiado tarde à fenomenologia husserliana – assim desvelando o seu registro autonômico ou egológico-egocrático –, dá também conta do fato de a sua inevitável chegada ditar pura e simplesmente a impossibilidade da própria fenomenologia transcendental (cf. Lyotard e Alliez). Com efeito, o outro, que não por acaso Husserl designará de alter-ego, vem perturbar e impossibilitar o exercício do princípio dos princípios (a intuição) sobre o qual a fenomenologia transcendental se alicerça.

Fidelidade e resistência

No entanto, esta extra-ordinária proximidade de pensamento e quanto ao que os apelou e/ou lhes deu a pensar será também aquilo a partir do qual e em nome do qual Lévinas e Derrida se separam. O que é dizer que esta singular proximidade de pensamento compreende (e singular proximidade porque é uma proximidade na diferença ou na separação, de acordo, aliás, com o sentido do filosofema “proximidade” em ambos os filósofos), da parte de Derrida, e a fidelidade e o diferendo. E a fidelidade e a resistência. A resistência e o diferendo na própria proximidade – apesar da proximidade e em nome da proximidade. Um diferendo ditado mesmo pela extra-ordinária fidelidade, na extra-ordinária fidelidade e em nome da extra-ordinária fidelidade ao pensamento audacioso do “absolutamente outro” de Lévinas que, no dizer confesso de Derrida, o terá incondicionalmente obrigado (cf. “En ce moment même dans cette ouvrage me voici” in Psyché). Para vislumbrar e compreender neste diferendo a fidelidade da proximidade de Derrida a Lévinas, pense-se apenas no que, na sua obra, Lévinas diz da “Obra”; a saber, da relação ou do movimento para o outro [a própria “ética” ou a “justiça” para Lévinas – de que “Obra” é um outro nome] que não retorna mais ao “eu-mesmo” e que, enquanto tal, exige uma infidelidade absoluta do outro – que, justamente, assim se queda outro, “separado” ou “santo”, na terminologia reinventada de Lévinas.
A fim de muito sumariamente tentar agora explicitar esta proximidade de pensamento entre Derrida e Lévinas, lembremos muito sucintamente que, pensamento da différance, da vez, do evento ou da singularidade, Derrida também “define” a desconstrução [nomeadamente em “Psyché. Invention de l’autre” (in Psyché. Inventions de l’autre, p. 26-27)], como um pensamento ou como uma certa experiência do impossível: isto é, explicitará Derrida, do “outro”, do “absolutamente outro” (tout autre), da invenção ou do porvir.

E lembrarei também ainda que todos os “incondicionais” ou “impossíveis” da desconstrução derridiana [a saber, o pensamento (que Derrida faz questão de singularmente distinguir de filosofia), o dom, a justiça, a tradução, o amor, a amizade, a democracia por vir, a decisão, a resposta, a responsabilidade, o testemunho, a hospitalidade, o perdão, o poema, a morte, a literatura…] traduzem e testemunham a hiper-radicalidade deste pensamento do impossível (um pensamento que tem implícito, notemo-lo também, um repensar da tradição do possível (dynamis, potentia, possibilitas) de Aristóteles a Heidegger, inclusive) e, na radicalidade da sua impossibilidade, encontram as irrespiráveis paragens da meta-ética levinasiana: dando assim conta do Dever absoluto diante do outro e para com o outro que magnetiza a hipérbole e a aporia do “pas au-delà” da desconstrução derridiana. Inversamente, este mesmo registro da incondicionalidade ou da impossibilidade não deixa também de salientar o registro hiper-ético da própria desconstrução (um registro marcado pelo recorrente e indecidível “il faut”) desde o primeiro passo do seu ousado, insistente e todavia vacilante “pas au-delà”, assim atestando a inexistência de qualquer “viragem” ética ou política no pensamento e na obra de Derrida. Dele se poderá dizer (e é também uma diferença em relação a Lévinas!) que o seu pensamento irrompeu logo inteiro – com efeito, dele não se poderá dizer que teve uma evolução, que se foi precisando no decurso do tempo e da obra, como acontece com o pensamento de Lévinas. O que não pode deixar de surpreender… Com efeito, não há um primeiro e um segundo Derrida!

Declaração de impossibilidade

Esta proximidade de pensamento entre Derrida e Lévinas testemunha-se também ainda a dois níveis: por um lado, Derrida confessar-se-á capaz de subscrever tudo quanto Lévinas disse a respeito da sua “ética”: em Altérités, (1986), nomeadamente, o filósofo admitirá que, “diante de um pensamento como o de Lévinas nunca tem qualquer objeção”.

Por outro lado, e do lado da “ética” levinasiana, Derrida (Derrida que define a desconstrução como um pensamento do impossível) declarará também que ela é impossível – que ela só é, de fato, possível como impossível. E isto, não só para a subtrair ao empirismo e ao hegelianismo, como paradoxalmente para, na pureza da sua incondicionalidade, ela não cair no risco da violência do egotismo narcisista, incapaz de discernir o bem do mal, o amor do ódio, a hospitalidade incondicional do fechamento egoísta (cf. Derrida, “Le mot d’accueil”, p. 66).

Uma declaração de impossibilidade que, em vez de lhe decretar o dobre a finados, salientará antes o seu caráter irremediavelmente contraditório – caráter que lhe afinará a ênfase do seu hiperbolismo e da sua exigência, e a distanciará não só do gesto hegeliano, como de todo e qualquer moralismo, o qual, como o próprio Lévinas sublinhou, “tem má reputação”. E uma declaração que a distanciará também ainda de um “levinasianismo” fácil e encantatório na litania da sua pregação do outro: da “abertura ao outro”, do respeito e da responsabilidade fáceis pelo outro… Fáceis, isto é, ideológicas.

Notemos também que esta proximidade de pensamento se revela mesmo numa inaudita proximidade lexical: com efeito, na sua comum desconstrução do registro determinantemente ontológico da filosofia ocidental, ambos os filósofos recorrem, no decurso dos anos 60, ao quase-conceito de “trace” (“rastro”). Um recurso que, atestando embora a proximidade de pensamento entre os dois filósofos, atestará já também o muito que os separará na sua proximidade (uma proximidade enquanto pensamentos da alteridade e, enquanto tal, de desconstrutores da ontologia): é que, em Derrida, “trace” vai muito para além do registro ainda antropocêntrico que ele não deixa ainda de ter no seio do pensamento de Lévinas. Com efeito, na sua desconstrução do “próprio” do homem e da axiomática metafísica da filosofia ocidental, “trace” concerne diferencialmente em Derrida todos os viventes e todas as relações do vivente ao não vivente – e não apenas, como acontece em Lévinas, as relações humanas, somente humanas no rastro da transcendência.

Limites e insuficiências da ética levinasiana

E muito sumariamente referida à proximidade de pensamento entre Derrida e Lévinas, salientemos muito sumariamente também agora os diferendos que nesta proximidade se manifestam: diferendos que não deixam de marcar os limites e as insuficiências da “ética” de Lévinas, sem dúvida uma das mais ousadas, exigentes e justas da nossa contemporaneidade. Diferendos que não deixarão também de revelar que, na loucura da sua hiper-radicalidade, a desconstrução derridiana vai ainda mais longe na sua vigília e na sua fome de “ética”, de “justiça”, de “responsabilidade” e de “desejo de invenção” do que a ética levinasiana, a quem marcará inauditos e surpreendentes limites: limites que, pelo essencial, revelarão o “carno-falogocentrismo” do “humanismo” profundo da “ética” levinasiana – uma ética assumidamente sacrificial.

Diferendos que, no essencial, provêm da resposta dada à questão: como bem pensar o outro e quem é “outro”? Quem é o “absolutamente outro” da ética levinasiana? Quem é o “absolutamente outro” que dita e locomove o pensamento destes dois filósofos? Questões que, para além de sublinharem o caráter ab-soluto do “outro”, põem também em cena a difícil questão do “terceiro” (terstis, testis), outro do outro e outro outro. Questões a que, é sabido, Lévinas responderá: “o outro homem”. O “absolutamente outro” é “o outro homem”: a saber, o outro como humano e o humano como homem. Derrida, por sua vez, responderá, assim respondendo à radicalidade do pensamento da alteridade de Lévinas, que complexifica, ditando-lhe a im-possibilidade, isto é, o seu irremediável registro contraditório: “Tout autre est tout autre” “Absolutamente outro é absolutamente (todo e qualquer) outro”.

Uma “pedrada” à ética levinasiana

“Tout autre est tout autre” é, de fato, a “pedrada” que o próprio Derrida diz ter atirado à ética levinasiana a quem, a par da inestimável grandeza, elevação e dificuldade, lembra a impossibilidade da sua pureza, assim problematizando, em primeiro lugar, o modo como Lévinas deseja pensar a transcendência ou a exterioridade – a saber, de todo não contaminada pelo ser ou pela imanência. O sintagma que lança esta “pedrada”, para além de concentrar, em toda a sua amplitude e aporeticidade, a “melancolia” do idioma derridiano (cf. Derrida, Carneiros), não deixa também de nos lembrar a sua intraduzibilidade – uma intraduzibilidade que metaforiza a do idioma ou a da própria alteridade ou singularidade absolutas –, e que nós “mal” traduzimos por “absolutamente outro é absolutamente (todo e qualquer) outro”, a fim de tentarmos deixar quase ouvir a homonímia que, para além da tautologia, abre esta fórmula ao enunciado da heterologia mais irredutível lembrando-a à sua im-possibilidade – que o mesmo é dizer, lembrando o pensamento do “absolutamente outro” à inevitabilidade da contradição, da contaminação, da aporia ou do perjúrio quase-transcendental (cf. «Le mot d’accueil»). E, ipso facto, lembrando a “ética” ou a “justiça” (“a justiça para além da justiça”, precisemos, em razão do duplo sentido da “justiça” que atravessa o pensamento e a obra levinasianos) à inevitável injustiça da sua justiça. Nunca um justo é pacífica e suficientemente justo… A tranquilidade da boa consciência do dever cumprido não está nunca ao seu alcance.

Um ateísmo que se lembra de Deus

Para além de também significar o singular ateologismo da desconstrução derridiana ou (num sintomático dizer do filósofo que o aproxima do léxico e do pensamento levinasiano desejoso de pensar um Deus sem o ser, isto é, “transcendente até à ausência”) o seu “ateísmo que se lembra de Deus” (um “ateísmo” que, note-se, é a condição para um muito exigente repensar da fé – de uma fé sem dogma nem religião – e, ipso facto, para um muito sério repensar, tanto da dita guerra das religiões, como do diálogo inter-religioso), este sintagma “Tout autre est tout autre” pretende lembrar a Lévinas que, na sua unicidade de eleito, o “ absolutamente outro” é “absolutamente todo e qualquer outro”: não importa o quê ou quem (quiconque, n’importe qui, enfatizará Derrida, radicalizando a responsabilidade do pensamento diante de tudo e de todos), e não apenas o “outro homem” na sua condição de próximo, de semelhante ou de irmão. Um lembrar que revela o lugar do diferendo entre Derrida e Lévinas. Mas, e insistimos, o lugar do diferendo a partir da proximidade e da fidelidade de Derrida ao pensamento de Lévinas. Isto é, a partir da sua comum paixão pelo “absolutamente outro”, que é, para ambos, aquilo que apela o pensamento a pensar.

Um diferendo introduzido com a difícil questão do terceiro (terstis, testis) [ao mesmo tempo prévio e posterior ao face-a-face ético] que se marca e se revela através de um sem número de diferenças entre os dois filósofos. Diferenças de entre as quais, num modo necessariamente telegráfico, lembrarei aqui as seguintes:

1ª A questão da estratégia e da economia discursivas de Lévinas: uma questão que se manifesta nomeadamente na frontalidade da oposição de Lévinas ao registro privilegiadamente ontológico da filosofia ocidental (ora, lembrará Derrida, já em 1963, “Violence et Métaphysique”, quando nos opomos, damos de antemão razão a Hegel!), e ao modo como pensa a exterioridade ou o absoluto de uma alteridade não contaminada pelo ser.

À frontalidade levinasiana, contraporá Derrida a figura do oblíquo, do viés, do desvio (na retidão (droiture), apesar da retidão e mesmo em nome da retidão), da destinerrância do envio, do “double bind”, da contradição, da contaminação e da aporia: figuras que salvaguardam a “ética” levinasiana, como um pensamento da alteridade respeitada, da argumentação hegeliana. E, em parte, Lévinas parece ter escutado as objecções de Derrida porque, em Autrement qu’être, diá que o ético é obrigado a viver na “contradição” (mas nunca na contaminação!), na “traição” e na “hipocrisia” pelo pouco de justiça de que, no mundo, o homem tem a força de ser capaz.

2ª A questão do humanismo (repensado, é certo, mas ainda assim um “humanismo) da “ética” levinasiana: “humanismo” que Derrida grafará “humainisme” a fim de denunciar a aliança do fonocentrismo e do logocentrismo através de um certo privilégio da mão, da mão do homem (humain) – nomeadamente no pensamento levinasiano do contato e da carícia – bem como da relação da mão à linguagem e ao pensamento. Lembremos de passagem que, embora crítico do velho “humanismo” que, no seu entender, não soube estar à altura do humano, a ética levinasiana se quer, no dizer de um dos títulos da sua obra, um «Humanismo do Outro Homem» (do outro como humano – no esquecimento do vivente animal, portanto – e do humano como homem – no esquecimento e na secundarização do “feminino”);

3ª Em estrita conexão com a questão anterior, a questão dita do animal – “eu descrevo a ética”, assume Lévinas, ela “é o humano enquanto humano”. Ora, se Lévinas inverteu de fato a tendência ontológica da filosofia e do sujeito, cuja enigmática humanidade se plasmará e o plasmará como rosto (visage); se Lévinas submeteu de fato o sujeito a uma heteronomia radical; se ele fez do sujeito um sujeito sujeito à lei da substituição; e se diz que o sujeito é antes de mais um “hóspede” (em Totalité et Infini) e um “refém” do absolutamente outro (em Autrement qu’être), verdade é, porém, que este “sujeito ético” é, antes de mais, um rosto humano e fraterno. Jamais o outro é, no pensamento de Lévinas, um vivente animal. Que para este filósofo não tem rosto. Jamais o animal é, para Lévinas, um rosto. Nem mesmo um terceiro.

Nestes termos, se para Lévinas só há responsabilidade diante de um rosto, e se a responsabilidade atesta a incondição do sujeito ético ou humano, temos necessariamente de concluir que a humanidade do “sujeito ético” não se atesta nem se testemunha também na sua responsabilidade diante do animal – diante do sofrimento e do mal infligido ao animal.

Eis a razão pela qual Derrida – o primeiro filósofo que se viu visto pelo animal e que não se limitou apenas a vê-lo, o filósofo para quem o “absolutamente outro é absolutamente todo e qualquer outro” –, detectará e mostrará como o “falogocentrismo” do humanismo levinasiano se agrava num inquietante “carno-falogocentrismo”, isto é, num sacrifício do vivente animal.

O dito animal, o animal antes de nós, diante de nós e em nós fora de nós (cf. J. Derrida, L’animal que donc je suis), é pois um grande esquecido da ética levinasiana. Um estranho esquecimento da parte de uma ética dissimetricamente heteronômica que diz dever incondicionalmente assumir a sua obrigação diante do “primeiro vindo” – ora, no dizer do Génesis, o animal, no qual Derrida vê uma figura da alteridade absoluta, terá chegado ao mundo primeiro do que o homem. Que deverá também assim responder responsavelmente diante dele e por ele.

4ª A questão do “feminino” e das “diferenças sexuais”: não sem deixar de saudar a coragem e o mérito insigne de Lévinas por este ter assumido a masculinidade da sua assinatura filosófica – coisa que (apesar da ambigüidade que consigna, uma vez que implica um posicionamento na própria diferença sexual, que assim se vê rasurada e/ou economizada) é, como muito bem sabemos, raríssima em filosofia! – bem como pelo seu empenho na temática fenomenológica de eros e do feminino [cf. Lévinas, Le l’existance à l’existant; Le temps et l’autre, Totalité et Infini], Derrida denuncia no pensamento e na obra de Lévinas a violência de uma certa dissimetria falocêntrica. Um falocentrismo ou um androcentrismo marcados, por exemplo, no privilégio do Il e da Illéité na designação do “tout autre”; no privilégio do Pai e do Filho na sua alusão à filiação (cf. Totalité et Infini); na sua distinção entre rosto feminino (equacionado ao Tu de Buber) e rosto magistral (equacionado ao Vós – altura, magistralidade,  vulnerabilidade, imperatividade e resistência ética) (cf. Totalité et Infini); numa certa alusão à Amada, à feminilidade da Amada estranhamente associada, em Totalité et Infini, à infância, à irresponsabilidade, à coquetterie e à animalidade, … Um privilégio que, reatando com a poderosíssima tradição abraâmica, é indissociável do privilégio da fraternidade na ética levinasiana. Um privilégio a ser devidamente repensado, dado o seu liame à genealogia familiar e ao sangue.

Por outro lado, numa extraordinária atenção à textura do texto levinasiano, Derrida não deixará de saudar também (é, aliás, o único a fazê-lo!) a possibilidade de pensar o “feminino” em Lévinas no sentido de um certo “femininismo avant la lettre” – quer dizer, e como Derrida no-lo dá a pensar, prévio à própria “diferença sexual”. Uma leitura que o filósofo nos dá em «Le mot d’accueil» a partir da sua leitura do “feminino” em Totalité et Infini (D. La demeure) pensado como “acolhimento por excelência”, como “linguagem silenciosa” ou como “expressão no segredo”. Uma leitura, no entanto, só compreensível a partir dos pressupostos do pensamento da arqui-escrita derridiana.

5ª A questão do perdão: o perdão em Lévinas implica sempre arrependimento e, conseqüentemente, a sua solicitação. Diferentemente, para Derrida o perdão é “uma loucura do impossível” – modo de dizer que um perdão que merece o nome é sem condições (cf. Derrida, “Le siècle et le pardon”);

6ª A questão do judaísmo: Apesar do repensar ético do judaísmo por Lévinas (para quem Deus, “transcendente até a ausência”, vem à idéia na relação inter-humana, ou seja, para quem a relação a Deus é inconcebível fora da relação ética com os homens), as diferenças entre Derrida e Lévinas a este nível são mais do que muitas e passam sobretudo pela sua diferente concepção da importante noção de “eleição” (cf. Derrida, “Abraham, l’autre”): não sendo nenhum privilégio, mais ou menos folclórico, nem nenhum particularismo, mas uma eleição pela responsabilidade e para a responsabilidade  infinita e universal, um certo exemplarismo judaico não está de todo ausente do pensamento levinasiano da “eleição” para quem o “judeu” é, por excelência, a figura do humano. Fragilizando e indeterminando a eleição, Derrida desconstrói a idéia de pertença, de comunidade, de propriedade etc.

Daí que, se é certo que, ao repensar eticamente o judaísmo, foi desejo de Lévinas traduzir na linguagem (grega) da filosofia a mensagem de uma espiritualidade ou de uma humanidade, rebelde às formas do saber, Derrida irá ainda mais longe – na verdade, ele vai para além e do “judaísmo” (não sem ironia, diz-se, aliás, o último e/ou o primeiro dos judeus) e do “helenismo”, mostrando como eles próprios, na sua pretensa unidade una, se auto-desconstroem, e como todos os pensamentos do mundo são uma tradução de tradução…

7ª A questão do messianismo e do político: no muito que haveria a dizer sobre estas questões, referirei aqui apenas que Derrida repensa o messianismo levinasiano em termos de messianicidade [que o filósofo traduzirá em Spectres de Marx, na sua leitura de Marx, na “nova Internacional” por vir: uma internacionalidade que terá a sua novidade, o seu motor e o seu porvir no espírito de justiça, o imperecível espírito do marxismo, tanto para Derrida como para Lévinas] e que, para além de assumir uma total proximidade a Lévinas em questões como as da hospitalidade incondicional ou de visitação, das cidade-refúgio e do “político depois!” [questões que, por si mesmas, são o gérmen para um repensar revolucionário do político, da democracia, da própria idéia de revolução e do direito (nacional e internacional)], um abismo o separa de fato da cultura e da praxis política do filósofo da ética como prima philosophia. No entanto, apesar destas diferenças, importa notar que ambos os filósofos são sem álibis em relação a Israel, fazendo Derrida seu o veredito de Lévinas que diz ter como uma verdadeira lição de política, em Israel, na Palestina ou seja lá onde for: “A pessoa é mais santa do que uma terra, mesmo quando é uma terra santa, porque diante de uma ofensa feita a uma pessoa, esta terra santa aparece, na sua nudez, como um amontoado de pedras e bosques”.

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