Edição 277 | 14 Outubro 2008

Alteridade: um a priori de carne e osso

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Márcia Junges

Para além do formalismo kantiano, a ética levinasiana considera o outro como ponto de partida e de chegada. Apenas assim é possível dar espaço à dignidade do outro enquanto radicalmente diferente do eu e, também, doador de sentido para esse eu

Aproximando o pensamento de Emmanuel Lévinas com o de Emmanuel Kant, Luiz Carlos Susin mencionou que há uma clara “prioridade”, comparável aos a priori kantianos, “do outro, portanto da alteridade na relação com a subjetividade”. A diferença, destaca, é que o postulado levinasiano seria “de carne e osso”, uma vez que “tem a ver com a sensibilidade sem abandoná-la e da qual a razão é servidora”. Entrevistado por e-mail pela IHU On-Line, Susin falou, ainda, sobre como aparece na obra desse autor a memória dos 6 milhões de judeus assassinados no Holocausto: “Sartre foi até o ‘nada’ e a ‘náusea’, mas Lévinas foi além do nada, até o caos e o horror, e foi além da náusea, até o mais puro sofrimento físico e psíquico, aquele da vítima diante do prazer do algoz com um revólver em sua nuca. E como se ergue daí? Através da compaixão e da responsabilidade que incluem quem faz sofrer, maternidade com dores de parto por um mundo cruel que pode ser resgatado”. No que tange à ética, diferentemente da aristotélica, que “aceitava tranquilamente o desnível de tratamento entre homens livres e homens escravos, entre cidadão gregos e bárbaros, entre varões e mulheres”, a ética de Lévinas toma como partida o outro. E é somente uma ética nesses moldes que “pode abrir espaço para a dignidade do outro enquanto radicalmente diferente do eu e, no entanto, doador de sentido para o próprio eu”.

Susin é graduado em Teologia pela Universidade de Ijuí (Unijuí) e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Cursou mestrado e doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (PUG), Itália. Sua dissertação intitulou-se A subjetividade e alteridade em Emmanuel Lévinas, e a tese O homem messiânico em Emmanuel Lévinas. Leciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, entre as quais citamos O homem messiânico no pensamento de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre: EST/Vozes, 1984) e Teologia para outro mundo possível (São Paulo: Paulinas, 2006). É um dos organizadores de Éticas em diálogo: Lévinas e o pensamento contemporâneo: questões e interfaces (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003).

IHU On-Line - Como aparece o homem messiânico em Lévinas?

Luiz Carlos Susin - Lévinas elaborou uma nova interpretação da subjetividade: nem o “sujeito absoluto” hegeliano, nem apenas o sujeito imerso no mundo para bem e para mal, na forma como a filosofia da existência o apresenta, mas o sujeito “submetido” constitutivamente à responsabilidade pelo mundo (este era o conceito medieval de “sujeito a”). A responsabilidade provém de uma “assignação”, ou seja, uma “eleição” que cria a subjetividade com um caráter de unicidade no “envio à responsabilidade” de forma única e insubstituível. É uma antropologia filosófica enquanto se move na tradição de filosofia ocidental contemporânea, mas é de origem judaica, de fundo bíblico. É uma interpretação do messianismo que constitui a subjetividade humana.

IHU On-Line - De que forma esse conceito é ainda atual?

Luiz Carlos Susin - A história do Ocidente, em cujos componentes há elementos marcantes das tradições judaica e cristã, é uma história marcada pelo messianismo. Em termos mais seculares e modernos, trata-se do “sujeito histórico”: quem é o “eleito” para conduzir ou levar sobre seus ombros a história até sua consumação ou redenção? O Imperador e o Rei, ou o Papa e a Igreja, ou o Estado, os partidos? Ou ainda os nobres cavaleiros, ou os burgueses empreendedores ou os proletários e a revolução do povo? Às vezes, tal impulso messiânico da história recebeu o nome de alguém, às vezes de uma classe, de um movimento, de uma revolução. Ora teve caráter religioso, ora secular e mesmo anti-religioso, mas é sempre algo “messiânico”, ainda que metamorfoseado.  Evidentemente, até o nazismo foi considerado por Heidegger, mestre de Lévinas, com uma áurea messiânica, portador de um projeto histórico, ao menos por um rápido tempo que logo levou Heidegger ao desencantamento. Depois do comunismo há uma rejeição a toda forma de movimento messiânico. Mas, da mesma forma, estamos numa crise sem precedentes do “sujeito”. Mais que “pós-modernidade”, seria um “pós-Ocidente”. Lévinas leu o messianismo pela sua constituição ética: o sujeito só é autêntico sujeito quando é eticamente bem fundado e aberto a uma responsabilidade por outros, universalmente. O debate sobre o sujeito, hoje, se decide na ética.

IHU On-Line - Como alteridade e subjetividade se colocam em sua problemática filosófica?

Luiz Carlos Susin - Há uma clara “prioridade” – algo comparável aos a priori kantianos – do outro, portanto da alteridade, na relação com a subjetividade. Mas substancialmente diferente de Kant porque é de carne e osso, tem a ver com a sensibilidade sem abandoná-la e da qual a razão é servidora. Embora a consciência subjetiva comece em si mesma como uma causa sui desde a sensibilidade, aparentemente ex nihilo ou fonte de si mesma, há alguma ocasião traumática em que acontece inversão, que é ao mesmo tempo retidão e justificação da subjetividade a partir do outro que então resplandece desde sua fragilidade e apelo ético. Há também uma nova irreciprocidade em que o outro passa a ser o referente maior, ao qual a subjetividade está sujeita como condição de sua própria existência e liberdade.

IHU On-Line - Em que sentido Lévinas reconstrói a subjetividade?

Luiz Carlos Susin - Embora os textos de Lévinas sejam reiterações, com retomadas cada vez mais profundas, pode-se estabelecer um percurso linear de passos e de níveis, ao menos em sentido lógico, não necessariamente existencial. Diante da irrupção da alteridade, a subjetividade sofre um primeiro movimento de desconstrução ou deposição no questionamento de sua soberania e na vergonha de sua enormidade, para se tornar então aprendiz e diaconal, posta a serviço do outro. É nesse movimento que a vontade deixa de ser virtualmente violentadora para se tornar “boa vontade”, assim como a liberdade ganha autoridade até para a transgressão em vista da diaconia ao outro. Mas, numa relação sem reciprocidade que desloca o centro da subjetividade para a alteridade, a subjetividade se carrega de responsabilidade cada vez mais abismal, como se tornando o pedestal onde repousa o mundo inteiro. O que salva desta “loucura messiânica” é o fato de que o outro é sempre plural, é muitos, e por isso é necessário também se encarregar das medidas, das mediações, de mais outros para cumprir a tarefa da subjetividade em relação a todo outro. Ou seja, no final há uma “correção” da subjetividade no sentido etimológico: o outro mesmo, enquanto plural, ampara retamente a subjetividade para que não resvale no delírio.

IHU On-Line - Que contribuições Lévinas oferece à teologia, sobretudo no contexto latino-americano?

Luiz Carlos Susin - Um grupo de estudantes latino-americanos, em memorável encontro com Lévinas em Lovaina/Bélgica, perguntou sobre a possibilidade de incidência de sua filosofia na realidade latino-americana. Ele simplesmente disse que não saberia responder diretamente a isso, mas o fato de que lá estivesse um grupo preocupado com o destino da América Latina comprovava que haveria esperança, e que era este grupo quem deveria examinar tal contribuição. Enrique Dussel  foi o primeiro a desenvolver um pensamento latino-americano com categorias levinasianas. Mas hoje, em suas categorias, desde sua avaliação crítica do Ocidente até suas propostas, a teologia reconhece amplamente, em toda parte, o horizonte bíblico, a contribuição judaica para entendê-lo e quanto isso ilumina também as categorias cristãs tomadas do Novo Testamento. E algumas delas, exatamente em tempos de crise de sujeito histórico e descrença no Sujeito Absoluto, ajudam uma melhor compreensão do que seja “messias”, “eleição”, “expiação”, “substituição”, profetismo. Ele coloca à disposição de todos, universalmente, a substância dessas categorias. Uma paráfrase que dá o que pensar depois de Lévinas é que, assim como “a ética é a filosofia primeira”, portanto a metafísica primeira, também “a ética é a teologia primeira”, o lugar e a linguagem da transcendência e do divino.

IHU On-Line - Como aparece na obra de Lévinas a memória dos 6 milhões de judeus mortos no Holocausto?

Luiz Carlos Susin - Ao lado dos textos rigorosamente filosóficos, em excelente linguagem fenomenológica, Lévinas nos deixou comentários talmúdicos e numerosos pequenos textos de caráter tipicamente judaicos, frutos de suas intervenções em programas para o público judeu-francês. É necessário ler juntos os dois gêneros de textos para entender o quanto o Holocausto moldou o seu pensamento e a sua filosofia. Sartre  foi até o “nada” e a “náusea”, mas Lévinas foi além do nada, até o caos e o horror, e foi além da náusea, até o mais puro sofrimento físico e psíquico, aquele da vítima diante do prazer do algoz com um revólver em sua nuca. E como se ergue daí? Através da compaixão e da responsabilidade que incluem quem faz sofrer, maternidade com dores de parto por um mundo cruel que pode ser ainda resgatado. Evidentemente dito assim, de chofre, pode dar a impressão de uma monstruosa manipulação do sofrimento absurdo. Mas é necessário ler o seu livro Autrement qu’être ou au-délà de l’essence para compreender o absurdo e a graça ou santidade da subjetividade. Ele elabora o luto do Holocausto e encontra o sentido em meio ao sofrimento, algo talvez comparável a Victor Frankl  com sua logoterapia.

IHU On-Line - O mundo pode ser diferente a partir da concepção do outro como um ser que merece respeito e consideração?

Luiz Carlos Susin - A importância do outro, o “humanismo do outro homem”, conforme o título de uma obra de Lévinas, não é uma necessidade biológica e nem mesmo lógica. A ética de Aristóteles aceitava tranquilamente o desnível de tratamento entre homens livres e homens escravos, entre cidadãos gregos e bárbaros, entre varões e mulheres. Somente uma ética que parta do outro mesmo pode abrir espaço para a dignidade do outro enquanto radicalmente diferente do eu e, no entanto, doador de sentido para o próprio eu. E agora a inversão: de certa forma, seguindo o pensamento de Lévinas, o outro é a condição de possibilidade para que o eu mereça respeito de si mesmo: à luz do outro o eu ganha consideração e é exaltado para além de si mesmo na resposta e responsabilidade por um mundo de convivência e paz. A pergunta acima está correta, é a melhor pergunta que costumamos fazer, mas Lévinas inverteria os termos da pergunta, como busquei fazer aqui. Só nesta inversão o mundo pode ser também diferente, pois só então está salvo da arbitrariedade e da injustiça que perseveram nos juízos que partem do eu em relação ao outro.

IHU On-Line - Em que medida Lévinas nos fornece elementos para pensar o mundo em sua dimensão sagrada, divina?

Luiz Carlos Susin - Lévinas teve dificuldade com a categoria de sacralidade, sobretudo sacralidade do mundo. Em comentário à antropologia cultural que encontrava a sacralidade do mundo na forma de fusão da subjetividade com o todo da realidade, ele contrapôs, a esta sacralidade que ele considerou violenta, a categoria de santidade e relação de absolutamente distintos, o paradoxo de uma “relação de absolutos”, no plural. De modo geral, pensamos o Absoluto platonicamente e hegelianamente: Um e Todo. Este monismo e este holismo podem ser perigosos, pois como parte do todo se pode ser também amputado quando necessário ao todo. Assim surgem as minorias expiatórias em vista da saúde de todos. Lévinas “recupera” o sentido do mundo na relação entre absolutos, em que o mundo é dom e contra-dom. Nesse sentido, o mundo é possibilidade de “liturgia” no sentido técnico que os gregos davam ao termo: um dom público, inteiramente gratuito e às expensas do doador. Mas, antes de tudo, é dom que se recebe, portanto o mundo tem aliança indesvendável com a alteridade indesvendável: me é ofertado. Assim se torna também ocasião de contra-dom que não vai em direção ao que não posso desvendar, mas ao que posso socorrer: o outro em sua nudez. O mundo entra na trama ética, no desígnio da justiça, e assim é visto como um mundo justo e firme, e também santificado eticamente. Lévinas leva ontologicamente a sério o dito do salmo que reza: A injustiça “abala todos os fundamentos da terra” (cf. Sl 82,5).

IHU On-Line - Qual é a situação da pesquisa desse autor no Brasil?

Luiz Carlos Susin - A recepção veio sendo muito lenta, como foi lenta também na Europa. É inclusive coerente que seja lenta e com muita resistência. Não é um pensamento espetacular e não obedece o rigor da filosofia analítica e formal. É uma filosofia que necessita de uma experiência revolucionária, dolorosa e esperançosa, e sobretudo disposição a uma desmedida generosidade. Todo o percurso do Ocidente anda pelo outro lado, pelo pensamento que se quer auto-certificar e se auto-assegurar. É a diferença entre a viagem de Ulisses e a viagem de Abraão. A primeira é a odisséia da identidade, a segunda é alteração sem retorno, ao infinito. Não há meio termo possível. E isso cria conflito. Também no Brasil há quem pense que Lévinas é um teólogo transvestido de filósofo, mas pode-se perguntar se não há sempre algo de teológico em toda filosofia, até a mais “atéia”. Além disso, o método de Lévinas não prima pela formalidade, mas pela descrição fenomenológica da experiência, o que também representa uma dificuldade de recepção. Finalmente, sua falta de linearidade, seu modo recursivo de pensar, parece hermético à primeira leitura. É necessário lê-lo com o esforço do insight, da intuição.
No entanto, há hoje um número respeitável de teses e dissertações em torno de seu pensamento no Brasil, além de publicações cada vez mais numerosas. O interesse se estende por todo o território brasileiro, com muito intercâmbio e trabalho conjunto, inclusive com países vizinhos. Há uma curiosidade e depois um real interesse por parte de estudantes de filosofia na aventura a que lança Lévinas. Há um Centro Brasileiro de Estudos sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas (CEBEL), que pode ser contatado através dos sites:
http://www.pucrs.br/ffch/filosofia/pos/cebel/; http://www.cebelonline.hpg.ig.com.br/index.htm; e
http://www.cebelonline.kit.net


Leia mais...

Luiz Carlos Susin já concedeu outras entrevistas e depoimentos à revista IHU On-Line e ao site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. O material pode ser acessado em www.unisinos.br/ihu

* Uma visão idealista e uma afirmação muito identitária. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, em  11-07-2007;
* II Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Entrevista publicada nas Notícias do Dia, em 09-02-2007;
* Depoimento sobre a notificação do Vaticano a Jon Sobrino, publicado nas Notícias do Dia, em 15-03-2007;
* Teologia da Libertação e Aparecida: realmente uma volta ao fundamento?. Entrevista concedida com Erico Hammes à IHU On-Line nº 261, de 09-07-2008;
* A vivacidade das experiências de chegada e encontro com Cristo na história gaúcha. Entrevista publicada na IHU On-Line nº 238, de 01-10-2007.

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