Edição 274 | 22 Setembro 2008

A autonomia é uma ilusão

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Márcia Junges

Estímulos exteriores ao ser humano exercem força persuasiva em nossas ações, e paradoxalmente nos faz pensar que somos autônomos. A saída para esse imperialismo epistêmico passa pela controvérsia, pondera o filósofo brasileiro Marcelo Dascal

Momentos antes de proferir a aula inaugural do curso de Filosofia da Unisinos, o Prof. Dr. Marcelo Dascal conversou pessoalmente com a revista IHU On-Line. Viabilizada pela Profa. Dra. Anna Carolina Krebs Pereira Regner, a entrevista com o filósofo brasileiro radicado em Israel adianta alguns dos aspectos que discutirá em 22 de outubro no IHU Idéias, evento promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, cujo tema é Globalização: descolonização ou colonização das mentes?. As declarações foram sérias, e nada reconfortantes: a autonomia é uma ilusão. Com seu jeito pausado de falar, o pensador assegura que as sociedades contemporâneas vivem sob o jugo de um novo imperialismo, o epistêmico. Nos pensamos autônomos, sujeitos de nossos atos e escolhas, mas essa é uma ilusão. “O mundo está repleto de pessoas sequiosas de controlar as mentes que estão ‘soltas’. Estamos tão acostumados a isso que temos a impressão de que a sociedade não funcionaria sem essas imposições”. Segundo Dascal, somos bombardeados por uma massa de estímulos auditivos e visuais, e por isso questiona como é possível pensar autonomamente: “Seu pensamento está sendo controlado de fora, virtualmente determinado por estímulos exteriores. Esses estímulos dizem a você o que fazer”. Para ele, “vivemos numa ilusão de autonomia que não se coaduna com o fato de que a maioria dos nossos pensamentos, preferências e desejos são determinados socialmente por forças alheias a nós. Assim, a idéia de autonomia é um paradoxo, uma ilusão”. A solução dascaliana para burlar o imperialismo epistêmico, saindo da situação de colonização permanente de nossas mentes passa pela controvérsia: devemos “fomentar nossa capacidade natural de não estar de acordo”. E é justamente pela controvérsia, um de seus focos principais na pesquisa acadêmica, junto da pragmática, que Dascal é internacionalmente conhecido.

Graduado em Filosofia e em Engenharia Elétrica, pela Universidade de São Paulo (USP), estudou Lingüística e Epistemologia em Aix-em-Provence, na França. É doutor em Filosofia pela Universidade de Jerusalém, com a tese Aspectos da semiótica de Leibniz. Desde 1967, leciona na Universidade de Tel Aviv, e é professor visitante de mais de uma dezena de universidades mundo afora. De suas obras, citamos Leibniz’s Semiotics (Paris: Aubier Montaigne, 1978), Pragmatics and the philosophy of mind - Volume 1: Thought in language (Amsterdam: John Benjamins, 1983) e Interpretação e compreensão (São Leopoldo: Unisinos, 2006).

IHU On-Line - Qual é a sua definição para imperialismo epistêmico?

Marcelo Dascal - Imperialismo epistêmico é impor ou transferir para outras pessoas ou grupos uma determinada forma de pensar que é a forma de pensar de outro grupo. Episteme, em grego, significa saber. Cada comunidade ou cultura humana tem seus conteúdos de saber, mas, principalmente, seus métodos de obtenção para chegar ao saber, ao conhecimento. O método de saber ou conhecer não é universal. Muitas vezes se procura transferir e impor aos outros um método de saber sob o pretexto de que ele é universal. Desse ponto de vista, os outros, que têm formas diferentes de chegar ao saber e descobrir coisas, estão errados. Isso é imperialismo epistêmico.

IHU On-Line - Quais são as principais manifestações desse imperialismo epistêmico, responsável pela colonização das mentes?

Marcelo Dascal - Para dar um exemplo bem próximo, eu mencionaria o sistema de educação. Acredita-se que alguém possui o saber e que tem direito, e até mesmo o dever de transmiti-lo aos demais. Entretanto, a questão de se realmente essa pessoa que acredita que possui o saber realmente o possui, e, mais, que tem o direito de impô-lo ou transmiti-lo aos demais é questionável. O sistema educativo está construído, na maior parte das vezes, com base no pressuposto que há alguém que possui o método certo, forma professores, educa as crianças e jovens fixando os currículos da educação. Nessa lógica, há alguém que sabe, e alguém que não sabe. É um poder muito forte de impor aos outros idéias, formas de pensar e, conseqüentemente, formas de agir, se comportar. O que estou dizendo é forte, tenho consciência disso. Mas ainda antes das instituições escolares quem faz esse trabalho é os pais, a família. Supõe-se que uma criança não sabe de nada, e os pais é que devem transmitir a ela o saber, bem como as coisas básicas para a vida. Mas será que é assim mesmo?

IHU On-Line - Quem ou o quê tem o controle dessa colonização das mentes do ponto de vista político e econômico? No caso de Israel, país onde o senhor vive há décadas, como o senhor identificaria esse imperialismo?

Marcelo Dascal - O imperialismo epistêmico existe em todos os países e culturas, e não apenas em um deles, em específico. Sempre há pessoas que reconhecem o valor em termos de poder político e econômico de impor nas mentes das pessoas valores, crenças, opiniões que são as suas. No caso de um produto, se você consegue fazer as pessoas acreditarem que ele é útil e melhor do que outro, pagando por ele, esse é um ganho importante. A lógica do sistema econômico é baseada nessas tentativas de, mais do que convencer, fazer com que as pessoas acreditem, de uma forma ou de outra, que elas precisam de coisas que, na maior parte das vezes, não precisam.

IHU On-Line - O senhor se refere à criação de necessidades fomentada, sobretudo, pela publicidade?

Marcelo Dascal - Sim, exatamente. O mundo está repleto de pessoas sequiosas de controlar as mentes que estão “soltas”. Estamos tão acostumados a isso que temos a impressão de que a sociedade não funcionaria sem essas imposições. Esse afã consumista, por exemplo, faz parte do jogo.

IHU On-Line - O homem contemporâneo se pensa muito livre e capaz de fazer o que quiser. A partir do conceito de imperialismo epistêmico que o senhor menciona, como é possível conciliarmos autonomia do sujeito frente a esse quadro de colonização em diferentes aspectos? Não lhe parece um paradoxo?

Marcelo Dascal - A palavra certa é exatamente essa: um paradoxo. Como um homem que tenha sua mente colonizada de tantas formas e por tantos meios e agentes pode ser autônomo? Vindo para a Unisinos, de Porto Alegre, havia um congestionamento na estrada por causa da chuva. Ao entrar no carro, ligamos o rádio e dessa vez ouvimos outra “chuva” de notícias e propagandas. Isso nos parece perfeitamente natural. Depois das notícias vêm os comerciais, que sustentam a fábrica de notícias. Tudo isso nos bombardeia constantemente. É difícil desligar o rádio, a TV. Há pessoas que deixam a TV ligada o dia inteiro. Nessas condições, bombardeado por tantos estímulos auditivos e visuais (para onde você olha há outdoors), como é que você pode pensar autonomamente? Seu pensamento está sendo controlado de fora, virtualmente determinado por estímulos exteriores. Esses estímulos dizem a você o que fazer.

IHU On-Line - Então o senhor acredita que a autonomia é uma falácia?

Marcelo Dascal - A autonomia é uma ilusão. O que acontece na história da humanidade é muito curioso. Nas sociedades tribais antigas, havia uma grande medida de imposição aos indivíduos do grupo dizendo o que cada um devia fazer. Cada um tinha sua posição definida dentro do grupo, sabia-se o que era permitido e proibido fazer. Os limites eram claros, mas fortes. Nessa época nem se falava na noção de autonomia. Desde o seu nascimento, a pessoa já pertencia a um clã e seu futuro, desenvolvimento, ações e posição social estavam definidos de antemão. Não havia a ilusão de autonomia. O indivíduo não tinha escolha. Com a evolução da sociedade mais aberta e a mobilidade dos indivíduos, com a possibilidade de se escolher com que casar a partir de suas próprias tendências e sentimentos, com a chance de escolher sua profissão, lugar onde viver, lugares para conhecer, comprar livros ou usar a internet, temos a impressão de que somos livres, de que podemos escolher. Hoje, parece que a vida tem um curso aberto e que os indivíduos determinam, escolhem esse curso. Em inglês, há uma palavra bem específica para isso: bullshitt. Tente localizar as pessoas que realmente são autônomas nesse sentido, que agem em função de algo que vem de dentro delas, de suas concepções. Não estou dizendo que não existem estímulos que vêm de dentro, de sensações, preferências, tendências. Mas em que medida essas preferências e tendências influenciam e são o fator determinante sobre seus atos? Em segundo lugar, em que medida suas idéias vêm realmente de dentro, e não de imposições externas que dizem o que fazer, que já viraram uma espécie de segunda natureza?

O paradoxo da autonomia

Vivemos numa ilusão de autonomia que não se coaduna com o fato de que a maioria dos nossos pensamentos, preferências e desejos são determinados socialmente por forças alheias a nós. Assim, a idéia de autonomia é um paradoxo, uma ilusão. Pelo menos as sociedades mais antigas (não digo primitivas, porque deveríamos perguntar, em última instância, quem é mais primitivo, nós ou elas) não viviam nessa ilusão. As sociedades modernas criaram o conceito de autonomia, inventaram-no.
Popper  escreveu um livro chamado Sociedade aberta e seus inimigos (Lisboa: Editorial Fragmentos, 1993), no qual ele contrasta as sociedades tribais fechadas, nas quais não havia liberdade, a essa autonomia dos indivíduos do nosso tempo das sociedades abertas. Falo no sentido de uma crítica a esse conceito de uma sociedade aberta, democrática. Antes de Popper quem falou autonomia como um ideal foi Kant.  Naquela época havia, realmente, o ideal de autonomia. Mas, se nós realmente realizamos esse ideal, aí já é outra história.

IHU On-Line - Nesse sentido, o homem contemporâneo perdeu o senso crítico, está massificado? Por que isso está acontecendo? Não há como se desvencilhar desse mecanismo que coloniza nossas mentes?

Marcelo Dascal - Esse é o grande problema. Os termos colonização e descolonização são tomados do fenômeno político do colonialismo e a luta pela libertação das nações subjugadas pelas potências. O episódio colonialista mais recente e de grande amplitude é o que aconteceu com a África. As potências coloniais que controlavam toda a África e a dividiram em fragmentos de forma totalmente arbitrária, pois não correspondiam às formas naturais das diferentes nações, foram contestadas de uma forma política. E a maioria das nações africanas se livrou, pelo menos politicamente, do jugo das nações coloniais. É interessante observar, contudo, o que se passou depois da libertação política formal. Outra forma de colonização, então, se estabeleceu: a colonização das mentes. Os países libertos adotaram, em larga escala, os valores, formas de pensar e organização política dos países colonizadores. Então, em que medida podemos falar sobre descolonização? Nesse caso, estava se tentando imitar não apenas a forma de comportamento, mas os desejos, ideais, escala de valores importados. Há pessoas, nesses países, que percebem isso muito bem. Então, elas procuram reencontrar, reconstruir e salvar os valores tradicionais que, com a colonização, foram suprimidos e colocados de lado. Entretanto, em muitas circunstâncias, se cria no indivíduo africano uma espécie de esquizofrenia, porque não é garantido que aqueles valores tidos como tradicionais são compatíveis com os novos valores. Por isso há conflitos.

Há, contudo, um problema ainda mais grave, e que tem um interesse filosófico e prático muito grande, que é o fato de que o processo de reconstrução dos valores antigos e da sua transformação em valores dominantes é também um processo de colonização das mentes, uma imposição de valores que alguém na sociedade entende como corretos e preponderantes sobre os outros. Por que acreditar que os valores antigos, tribais, seriam melhores do que os impostos agora? Quais são os critérios de comparação entre diferentes formas de pensar para dizer que essa forma é melhor do que aquela?

Na África, uma pessoa que anda pela rua usando roupas ocidentais, e não as africanas antigas, reconstituídas ou reinventadas, é suspeito de ser agente de idéias erradas. Onde fica a autonomia, aí? Se nós realmente tivéssemos autonomia, não haveria uma pressão social que nos obrigasse a suprimir nosso ponto de vista.

IHU On-Line - Em sua fala aqui na Unisinos, o senhor aponta direções para superar, ou ao menos contornar, os paradoxos conceituais e práticos que estão por trás do imperialismo epistêmico. Que direções seriam essas? Elas passam pela pragmática e pela controvérsia?

Marcelo Dascal - É preciso reconhecer o valor da discussão, da controvérsia, do desacordo, e não do acordo. Há muita ênfase sobre o acordo, a uniformidade do comportamento e das idéias. Existe uma pressão imensa sobre a uniformidade social, uma tentativa constante de convencer as pessoas, forçá-las a agir e pensar de certas formas desejáveis. Se houvesse essa uniformidade de uma maneira total, não haveria nenhum desenvolvimento do pensamento humano, nenhum progresso. Estaríamos na situação das sociedades tribais. Para sair dessa situação de colonização permanente das nossas mentes, devemos fomentar nossa capacidade natural de não estar de acordo.

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